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"AS BODAS DE DEUS"
João Monteiro cria ode anarquista aos prazeres do mundo
JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas
O cineasta e ator português João
César Monteiro, 60, é um planeta
à parte no cinema contemporâneo. Já tentaram enquadrá-lo sob
o epíteto de "Woody Allen português", mas Monteiro escapa por
todos os lados: é um dos criadores
mais estranhos e originais de nossa época.
Blasfemo e refinado, anárquico
e hedonista, seu cinema desconcertou o público brasileiro há
quatro anos, quando aportou por
aqui sua "Comédia de Deus".
Agora seu alter ego João de
Deus (interpretado pelo próprio
Monteiro) está de volta em "As
Bodas de Deus", uma espécie de
continuação da "Comédia".
No filme anterior, João era um
empregado de sorveteria que acabava preso e internado num manicômio por conta de sua receita
muito pessoal de sorvete: o leite
de que se servia era colocado numa banheira onde se lavavam belas adolescentes.
Em "As Bodas de Deus", João
mantém a mesma rebeldia e a
mesma tara: guardar os pêlos pubianos de lindas mulheres.
Desta vez, convertido em vagabundo, vestido com a camisa da
seleção brasileira de futebol, comendo pão amanhecido e atum
estragado à beira de um lago, ele
recebe de um emissário de Deus
uma maleta repleta de dólares.
Quando ainda está contando as
notas, no parque, percebe que
uma moça está se afogando e
mergulha no lago para salvá-la.
Leva-a para um convento, onde é
tratado como um santo.
Retoma o dinheiro e vai deleitar-se nos prazeres da carne e do
espírito na "Quinta do Paraíso".
Chega de contar a história. Basta saber que haverá um príncipe
árabe, cuja esposa João de Deus
conquistará num jogo de dados,
uma revolução abortada, nova
prisão do herói, o reencontro com
a moça salva das águas etc.
Celebração da beleza
Nos filmes de João César Monteiro as coisas mais estranhas
acontecem como que naturalmente, sem preparação e sem ênfase. Um casamento ou uma ária
de ópera, uma cópula ou um jogo
de pôquer, tudo é filmado com o
mesmo vagar e a mesma aparente
indiferença.
Em "As Bodas de Deus", ao sensualismo polimórfico do protagonista corresponde, por parte da
câmera, uma celebração pura e
simples das belezas do mundo:
uma mulher nadando nua, uma
ramagem à beira do lago, uma
inscrição rupestre, um quadro,
uma sinfonia.
O mundo de João de Deus/João
Monteiro é o mundo do prazer
-físico e espiritual. E é só porque
o impedem de desfrutá-lo plenamente que ele se revolta -contra
Deus, pátria, família e qualquer
outro obstáculo que se apresente.
João é um profeta da imanência:
seu emissário de Deus é tão fajuto
quanto a princesa árabe. Seu paraíso será aqui e agora ou não será
em lugar nenhum.
O que há de mais belo em "As
Bodas de Deus" é que a revolta e a
poesia são inseparáveis.
Expulso de seu paraíso, preso
numa cela minúscula, João pendura-se nas barras de sua janela,
magro e retorcido feito um Nosferatu, e cantarola uma ária como se
a música animasse cada uma de
suas fibras e nervos.
É uma das cenas inesquecíveis
deste filme sublime. Mas há outras: a trepada com a "princesa"
(uma das mais grotescas e corajosas cenas de sexo do cinema), o tirano anão cercado de manequins
num camarote de teatro, o reencontro de João com a moça salva
(homenagem à "Pickpocket").
Há ainda os diálogos impagáveis, as brincadeiras com Mallarmé, Proust e Dante, as irresistíveis
blasfêmias. Para quem está habituado à "junk food" do cinema
americano, um tal banquete pode
até fazer mal.
Avaliação:
Filme: As Bodas de Deus (As Bodas de
Deus)
Direção: João César Monteiro
Produção: Portugal, 1999, 150 min
Quando: hoje, às 14h, no Cinearte
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