São Paulo, Quinta-feira, 28 de Outubro de 1999
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"AS BODAS DE DEUS"
João Monteiro cria ode anarquista aos prazeres do mundo

JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

O cineasta e ator português João César Monteiro, 60, é um planeta à parte no cinema contemporâneo. Já tentaram enquadrá-lo sob o epíteto de "Woody Allen português", mas Monteiro escapa por todos os lados: é um dos criadores mais estranhos e originais de nossa época.
Blasfemo e refinado, anárquico e hedonista, seu cinema desconcertou o público brasileiro há quatro anos, quando aportou por aqui sua "Comédia de Deus".
Agora seu alter ego João de Deus (interpretado pelo próprio Monteiro) está de volta em "As Bodas de Deus", uma espécie de continuação da "Comédia".
No filme anterior, João era um empregado de sorveteria que acabava preso e internado num manicômio por conta de sua receita muito pessoal de sorvete: o leite de que se servia era colocado numa banheira onde se lavavam belas adolescentes.
Em "As Bodas de Deus", João mantém a mesma rebeldia e a mesma tara: guardar os pêlos pubianos de lindas mulheres.
Desta vez, convertido em vagabundo, vestido com a camisa da seleção brasileira de futebol, comendo pão amanhecido e atum estragado à beira de um lago, ele recebe de um emissário de Deus uma maleta repleta de dólares.
Quando ainda está contando as notas, no parque, percebe que uma moça está se afogando e mergulha no lago para salvá-la. Leva-a para um convento, onde é tratado como um santo.
Retoma o dinheiro e vai deleitar-se nos prazeres da carne e do espírito na "Quinta do Paraíso".
Chega de contar a história. Basta saber que haverá um príncipe árabe, cuja esposa João de Deus conquistará num jogo de dados, uma revolução abortada, nova prisão do herói, o reencontro com a moça salva das águas etc.

Celebração da beleza
Nos filmes de João César Monteiro as coisas mais estranhas acontecem como que naturalmente, sem preparação e sem ênfase. Um casamento ou uma ária de ópera, uma cópula ou um jogo de pôquer, tudo é filmado com o mesmo vagar e a mesma aparente indiferença.
Em "As Bodas de Deus", ao sensualismo polimórfico do protagonista corresponde, por parte da câmera, uma celebração pura e simples das belezas do mundo: uma mulher nadando nua, uma ramagem à beira do lago, uma inscrição rupestre, um quadro, uma sinfonia.
O mundo de João de Deus/João Monteiro é o mundo do prazer -físico e espiritual. E é só porque o impedem de desfrutá-lo plenamente que ele se revolta -contra Deus, pátria, família e qualquer outro obstáculo que se apresente.
João é um profeta da imanência: seu emissário de Deus é tão fajuto quanto a princesa árabe. Seu paraíso será aqui e agora ou não será em lugar nenhum.
O que há de mais belo em "As Bodas de Deus" é que a revolta e a poesia são inseparáveis.
Expulso de seu paraíso, preso numa cela minúscula, João pendura-se nas barras de sua janela, magro e retorcido feito um Nosferatu, e cantarola uma ária como se a música animasse cada uma de suas fibras e nervos.
É uma das cenas inesquecíveis deste filme sublime. Mas há outras: a trepada com a "princesa" (uma das mais grotescas e corajosas cenas de sexo do cinema), o tirano anão cercado de manequins num camarote de teatro, o reencontro de João com a moça salva (homenagem à "Pickpocket").
Há ainda os diálogos impagáveis, as brincadeiras com Mallarmé, Proust e Dante, as irresistíveis blasfêmias. Para quem está habituado à "junk food" do cinema americano, um tal banquete pode até fazer mal.


Avaliação:     


Filme: As Bodas de Deus (As Bodas de Deus) Direção: João César Monteiro Produção: Portugal, 1999, 150 min Quando: hoje, às 14h, no Cinearte

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