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Crítica/teatro/"A Obscena Senhora D"
Texto de Hilda Hilst serve como cartão de visita de uma atriz rara
Suzan Damasceno assume monólogo, no Sesc Consolação,
com iluminação precisa, figurino discreto e ausência de trilha
SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
"Ninguém sairá ileso", escreveu Caio
Fernando Abreu
sobre "A Obscena Senhora D",
de Hilda Hilst (1930-2004).
Poeta do desamparo e do desejo, do sagrado e do cotidiano,
como um Joyce nascido em
Jaú, Hilst viveu o bastante para
ver sua prosa levada ao teatro
pela nova geração -mas apenas a última parte de sua obra,
iniciada com a "Senhora D",
quando declara seu "adeus à literatura séria": curiosamente,
a maioria das oito peças que escreveu para teatro permanecem inéditas.
Obscena, isto é, que não pode
ser levada à cena, a verve de
Hilst vem sendo encenada enquanto desafio: como transgredir o bom gosto sem cair no
vulgar, como expressar o grotesco sem perder o sublime?
Assim, a triste e terrível viúva D sai do seu vão de escada
para subir ao palco em Coimbra (Companhia do Morcego,
2006) ou em Brasília (destaque
do "Janeiro de Grandes Espetáculos", com Catarina Accioly,
que também a levará ao cinema, contracenando com
William Ferreira).
Mínimo de cenário
Na montagem paulistana,
sob direção de Donizeti Mazonas e Rosi Campos, Suzan Damasceno assume o texto inteiro sob forma de monólogo,
com um mínimo de cenário, façanha permitida àqueles que
se prepararam pelo severo crivo do "Prêt-à-Porter", de Antunes Filho.
Em sua adaptação, em parceria com Germano Mello, Damasceno se multiplica em personagens secundários, dos vizinhos caipiras ao misterioso pai
incestuoso, expressando assim
a lúcida esquizofrenia que obcecava Hilst (ela deixou de ter
filhos para que ninguém herdasse o mal de seu pai).
O espetáculo mostra claramente sua derivação dos laboratórios antunianos, nos quais
o ator-criador é senhor absoluto do espetáculo, criando seu
universo unicamente a partir
da sua performance, de seus
gestos e de suas entonações.
Uma iluminação precisa, um
figurino discreto e a ausência
de trilha deixam toda a responsabilidade para a atriz, e é belo
que seja assim.
Damasceno surge como um
anjo ao avesso, uma bruxa ridícula e iluminada, louca de uma
aldeia que cultua Deus em sua
forma mais carnal: o menino-porco.
Assim, nenhum palavrão é
concessão, nada pornográfico é
apelativo. Todo adereço grotesco é indicado pelo texto e essencial a ele. Um escárnio que
não se dissolve em escracho.
Pelo contrário, o angustioso
desabafo soa como um ritual
escatológico dionisíaco, que a
atriz leva com rigor até o desconforto. Em respeito à minúcia da proposta, é preciso notar
que a partitura gestual às vezes
se sobrecarrega de detalhes, e a
monotonia paira sobre o ritmo
e o tom: desfaz-se o fascínio da
personagem, ofuscada pela admiração pela técnica da atriz.
De todo modo, esta "Senhora
D" serve como cartão de visita
de uma atriz rara.
A OBSCENA SENHORA D
Quando: qua. a sex., às 21h (exceto feriados). Até 29/2
Onde: Sesc Consolação (r. Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, região central,
tel. 3234-3000)
Quanto: R$ 2,50 a R$ 10
Avaliação: bom
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