São Paulo, domingo, 30 de abril de 2006

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O PÃO E A CIDADE

De origem familiar, Basilicata, Italianinha, São Domingos e 14 de Julho são redutos da Itália

Padarias da Bela Vista somam 404 anos de tradição

Fernando Donassi/Folha Imagem
Lingüiças vendidas na italianinha, inaugurada em 1896


JANAINA FIDALGO
DA REPORTAGEM LOCAL

Elas são pequenas e familiares. No teto, queijos, lingüiças e salames pendurados dão um quê de rusticidade ao ambiente. Uma porção de vasilhas com sardela, patês e berinjelas grelhadas aguçam o apetite, que aumenta à medida que o cheiro de pão recém-saído do forno à lenha toma o ar.
Na Bela Vista, há quatro padarias assim. Em comum, elas têm ainda a origem italiana, a resistência ao processo de degradação do bairro e muitos, muitos anos de história. A mais antiga, a Italianinha (originalmente batizada de Luccania), completa em setembro 110 anos e, como a Basilicata (1914), foi fundada por Filippo Ponzio, um imigrante de Lucânia, cidade no sul da Itália. Construída por Domenico Albanese, em 1913, a São Domingos está há quatro gerações na mesma família. Já a 14 de Julho, erguida em 1897 por Rafael Franciulli, só voltou ao clã há dez anos. Levando em conta as datas de inauguração, informadas pelos proprietários, o quarteto de padarias soma 404 anos.
Atenta à tradição, a clientela é fiel. Muitos não se importam de vir de longe só para comprar um pão italiano -cerca de 90% do público dessas padarias são de outros bairros.

Em busca do pão perfeito
Duas vezes por semana, o marchand italiano Arnaldo Ruschioni, 74, sai de Arujá (Grande São Paulo), onde mora há 25 anos, e dirige até o Bixiga para... comprar pão italiano. "É distante, mas eu vou porque os produtos são muito bons", conta Ruschioni, que chegou ao Brasil há 55 anos e há mais de 40 é cliente da Basilicata. "É um tipo de pão que se fazia na Itália há uns cem anos."
Desde que foi apresentado à padaria por conterrâneos, o marchand diz que nunca mais comprou pão em outro lugar. Fidelidade assim confere a ele status de cliente preferencial. "Eles fazem para mim uma barca especial de três ou quatro quilos. Agora, estou tentado convencê-los a fazer um pão redondo, baixo, de farinha de trigo grano duro. Falei para tentarem porque esse é o verdadeiro pão da região da Basilicata. Aqui [no Brasil], não sei se vão gostar. É um pão duro, precisa ter dentes bons", brinca.
Pois foi por "culpa" do pão que os sócios da Basilicata Vittorio Lorenti e Toninho Laurenti certa vez tiveram de organizar um mutirão e, literalmente, colocar a mão na massa. Na virada de 1984 para 1985, nenhum padeiro apareceu para trabalhar. "Naquele ano, usei no Réveillon uma camisa amarela e uma calça branca porque me disseram que essas cores davam sorte, e eu, que não sou supersticioso, acreditei. Foi virar o ano, e a notícia do cano coletivo chegou", diverte-se Lorenti, 52. "Tivemos que fazer os pães. Não saíram com a qualidade normal porque, embora saibamos fazer, não temos a prática necessária. Os clientes mais assíduos notaram que tivemos algum problema."
Fundada por Fillipo Ponzio, tio-bisavô dos atuais sócios, e passada para o tio-avô Domingos Laurenti, a Basilicata nasceu como um híbrido de padaria e secos e molhados. O armazém de anos atrás, com seus sacos de feijão e quirera para alimentar galinha, cedeu espaço a requintados produtos importados: macarrão grano duro, arroz arbóreo, vinhos e até utensílios de cozinha. Entre os mais de 250 itens vendidos lá, há preciosidades como a sopressata (embutido feito com a carne magra do porco; R$ 45 o quilo) e o pecorino com tartufo (queijo feito com leite de ovelha e trufa; R$ 298 o quilo).

Muda a família, fica o forno
A troca de nome da padaria mais antiga da Bela Vista veio junto do alargamento da Rui Barbosa, no final da década de 60. Na mesma época, e após passar pelas mãos de outros donos, a Luccania foi comprada pelos Franciulli.
"A antiga padaria era muito grande. O que hoje é a Italianinha antes era apenas o depósito da Luccania", diz Sandra Franciulli, 26, herdeira, com as três irmãs, do negócio que já foi do avô e do pai.
O nome, o dono e o espaço mudaram, mas o forno ainda é o mesmo desde a inauguração em 1896. É dele que saem fornadas e mais fornadas de roscas e tortas. Só do pão recheado com calabresa, mais de mil unidades são vendidas por mês. "Aqui a produção é artesanal, e a fermentação não é química. É diferente da padaria portuguesa, onde a massa é colocada na modeladora e dividida em partes iguais", alfineta Sandra.
As degustações de antepastos, pães, vinhos e até de massas prontas já criaram situações constrangedoras na Italianinha. "Uma vez, duas senhoras pediram para pesarmos um pouco de patê para elas comerem ali mesmo no balcão. Pouco depois, outra cliente entrou e começou a se servir da porção delas, achando que eram as amostras de degustação que servimos", ri Sandra.
Na 14 de Julho, recomprada há dez anos pelo irmão de Sandra, Alexandre Franciulli, 35, além dos famosos crostoli (doce típico italiano), logo na entrada o cliente se depara com preparos como uma perna de cabrito assada, vendida por R$ 92,80 o quilo.
A poucos passos de distância, fica a São Domingos, que já teve entre seus frequentadores assíduos o compositor Adoniran Barbosa. Tocada pelos irmãos Felipe e Silvio Albanese, tem uma convidativa vitrine de doces como o sfogliatelle (R$ 2,50), além do famoso pão de calabresa (R$ 9). "Aos sábados e domingos aparecem muitos saudosistas. Teve uma vez que a filha de um cliente, um senhor que já estava bem doente, o trouxe aqui só para ele matar a saudade", relembra Silvio, 46.


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