São Paulo, Quarta-feira, 30 de Junho de 1999
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CINEMA
"Kapò" aborda o Holocausto ainda "virgem"

NELSON ASCHER
da Equipe de Articulistas

A fama do cineasta italiano Gillo Pontecorvo se deve, ao menos em termos de grande público, a uma única obra: "Queimada" (1969). Censurado em 71 pela nossa ditadura militar, esse filme sobre uma revolta de escravos numa ilha caribenha do século passado tem sido desde então regularmente exibido na televisão brasileira.
Um público bem mais restrito conhece outra obra do italiano, "A Batalha de Argel" (1965), um filme que, rodado pouco depois dos acontecimentos que aborda, ou seja, a guerra de independência dos argelinos e a repressão cruel dos colonizadores franceses, transformou-se, mais que no de público, num sucesso de escândalo, pois a direita francesa, inconformada com a perda da Argélia, manteve por muito tempo o hábito de colocar bombas nas salas parisienses que o exibissem.
Na escassa filmografia do diretor, há, porém, um filme que precede os anteriores e é, no mínimo, tão importante quanto ambos: "Kapò" (59). Trata-se de uma história simples: durante a ocupação alemã da França, uma adolescente judia, após sair de sua aula de música, é capturada e mandada, com sua família, para os campos de concentração nazistas.
Destinada à câmara de gás, pois demasiadamente jovem e, portanto, inadequeda para o trabalho pesado, ela é salva por um médico-prisioneiro, que lhe dá o uniforme, o número tatuado e, assim, a identidade de outra, que acabara de morrer. Esta era uma "kapo" (palavra de origem italiana que, significando "cabeça", "chefe", foi usada pela primeira vez em Dachau), uma prisioneira escolhida pela SS para desempenhar a função de capataz ou feitora e com autoridade absoluta sobre todas, podendo inclusive matá-las se quisesse.
A jovem Edith converte-se em Nicole e, pressionada pelo frio, fome e exaustão, depois de se prostituir para os alemães, passa a trabalhar como "kapo". Conforme as tropas russas se aproximam, o campo, situado na Polônia e reservado a mulheres, recebe prisioneiros de guerra russos.
Edith/Nicole envolve-se com um deles, Sasha, e, quando o fim da guerra já está à vista e os alemães, prestes a evacuar o campo, não sem antes executarem sumariamente seus habitantes, os russos articulam uma revolta na qual a jovem desempenha papel central.
"Kapò" é uma narrativa-de-formação convencional, que principia pela inocência perdida e culmina com a maturidade e o caráter encontrado, embora trágica e precocemente, pelo amor e o heroísmo. Essa trama bastaria em princípio para fazer do filme uma obra ingênua demais, excessivamente apegada à necessidade de contar uma história construtiva de moral e proveito no meio da pior adversidade e, dessa forma, dificilmente merecedora de qualquer atenção.
A questão, porém, não é tão simples. "Kapò" foi realizado quando o Holocausto ainda era, e não apenas no cinema, um tema quase virgem, algo cuja abordagem, se não chegava a ser tabu, era sem dúvida considerada irrelevante ou de mau gosto. Foi só nos anos 60, depois da publicidade que cercou o julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém, que a situação começou a se alterar e foi necessário esperar até a presente década para que o tema penetrasse de fato o "mainstream" cinematográfico, notavelmente com "A Lista de Schindler" (93), de Steven Spielberg.
O que Pontecorvo fez deve ser visto, a rigor, como uma tentativa pioneira e contra a corrente. Num filme dessa natureza, além da habilidade do diretor e das virtudes de uma filmagem sóbria e seca, de sua opção (deética) de mostrar o mínimo possível de violência, convém levar em consideração fatores -que raramente vale a pena examinar em obras de outra natureza como as intenções e a honestidade.
Pesá-las não é fácil, mas, nesses quesitos, o resultado depõe a favor do cineasta, enquanto, em tantos outros, o pioneirismo do filme e a resistência do tema a ser tratado de acordo com quase tudo que se conhece em termos de padrões narrativos podem ser considerados como atenuantes. Talvez o que de mais justo haja para se dizer é que as dificuldades enfrentadas pelo italiano não parecem hoje mais próximas do que estavam 40 anos atrás de uma solução satisfatória.


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