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CINEMA
"Kapò" aborda o Holocausto ainda "virgem"
NELSON ASCHER
da Equipe de Articulistas
A fama do cineasta italiano Gillo
Pontecorvo se deve, ao menos em
termos de grande público, a uma
única obra: "Queimada" (1969).
Censurado em 71 pela nossa ditadura militar, esse filme sobre uma
revolta de escravos numa ilha caribenha do século passado tem sido
desde então regularmente exibido
na televisão brasileira.
Um público bem mais restrito
conhece outra obra do italiano, "A
Batalha de Argel" (1965), um filme
que, rodado pouco depois dos
acontecimentos que aborda, ou seja, a guerra de independência dos
argelinos e a repressão cruel dos
colonizadores franceses, transformou-se, mais que no de público,
num sucesso de escândalo, pois a
direita francesa, inconformada
com a perda da Argélia, manteve
por muito tempo o hábito de colocar bombas nas salas parisienses
que o exibissem.
Na escassa filmografia do diretor, há, porém, um filme que precede os anteriores e é, no mínimo,
tão importante quanto ambos:
"Kapò" (59). Trata-se de uma história simples: durante a ocupação
alemã da França, uma adolescente
judia, após sair de sua aula de música, é capturada e mandada, com
sua família, para os campos de
concentração nazistas.
Destinada à câmara de gás, pois
demasiadamente jovem e, portanto, inadequeda para o trabalho pesado, ela é salva por um médico-prisioneiro, que lhe dá o uniforme,
o número tatuado e, assim, a identidade de outra, que acabara de
morrer. Esta era uma "kapo" (palavra de origem italiana que, significando "cabeça", "chefe", foi usada pela primeira vez em Dachau),
uma prisioneira escolhida pela SS
para desempenhar a função de capataz ou feitora e com autoridade
absoluta sobre todas, podendo inclusive matá-las se quisesse.
A jovem Edith converte-se em
Nicole e, pressionada pelo frio, fome e exaustão, depois de se prostituir para os alemães, passa a trabalhar como "kapo". Conforme as
tropas russas se aproximam, o
campo, situado na Polônia e reservado a mulheres, recebe prisioneiros de guerra russos.
Edith/Nicole envolve-se com um
deles, Sasha, e, quando o fim da
guerra já está à vista e os alemães,
prestes a evacuar o campo, não
sem antes executarem sumariamente seus habitantes, os russos
articulam uma revolta na qual a jovem desempenha papel central.
"Kapò" é uma narrativa-de-formação convencional, que principia pela inocência perdida e culmina com a maturidade e o caráter
encontrado, embora trágica e precocemente, pelo amor e o heroísmo. Essa trama bastaria em princípio para fazer do filme uma obra
ingênua demais, excessivamente
apegada à necessidade de contar
uma história construtiva de moral
e proveito no meio da pior adversidade e, dessa forma, dificilmente
merecedora de qualquer atenção.
A questão, porém, não é tão simples. "Kapò" foi realizado quando
o Holocausto ainda era, e não apenas no cinema, um tema quase virgem, algo cuja abordagem, se não
chegava a ser tabu, era sem dúvida
considerada irrelevante ou de mau
gosto. Foi só nos anos 60, depois da
publicidade que cercou o julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém, que a situação começou a
se alterar e foi necessário esperar
até a presente década para que o tema penetrasse de fato o "mainstream" cinematográfico, notavelmente com "A Lista de Schindler"
(93), de Steven Spielberg.
O que Pontecorvo fez deve ser
visto, a rigor, como uma tentativa
pioneira e contra a corrente. Num
filme dessa natureza, além da habilidade do diretor e das virtudes de
uma filmagem sóbria e seca, de sua
opção (deética) de mostrar o mínimo possível de violência, convém
levar em consideração fatores
-que raramente vale a pena examinar em obras de outra natureza
como as intenções e a honestidade.
Pesá-las não é fácil, mas, nesses
quesitos, o resultado depõe a favor
do cineasta, enquanto, em tantos
outros, o pioneirismo do filme e a
resistência do tema a ser tratado de
acordo com quase tudo que se conhece em termos de padrões narrativos podem ser considerados
como atenuantes. Talvez o que de
mais justo haja para se dizer é que
as dificuldades enfrentadas pelo
italiano não parecem hoje mais
próximas do que estavam 40 anos
atrás de uma solução satisfatória.
Avaliação:
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