São Paulo, sábado, 30 de outubro de 2004

Próximo Texto | Índice

"TERRORISMO"

Encenado pela Visceral Cia., espetáculo dos irmãos Presnyakov é obra-prima da nova dramaturgia russa

Peça incorpora tragédia da pós-modernidade

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

O aeroporto está fechado porque uma mala foi abandonada na pista. Um passageiro se indaga: haveria algum político entre eles? Não: agora o alvo terrorista é o homem comum. Escrita pelos irmãos russos Presnyakov (o psicólogo Vladimir e o professor de literatura Oleg), a peça "Terrorismo" foi escrita em 2000, antes, portanto, do 11 de Setembro de Nova York e dos atentados no teatro e na escola russos.
Como um diagnóstico sinistramente preciso da modernidade, esta obra-prima da nova dramaturgia russa (fomentada, ela também, pelo Royal Court de Londres) ganhou nos últimos tempos montagens por todo o mundo. Além do tema urgente, isso se explica pelo seu humor sutil e profundo e a grande habilidade da narrativa.
De fato, o encadeamento de cenas curtas, variando cenários, parece querer traçar um painel sobre as várias formas de terror (na infidelidade, no trabalho, na família), um pouco como o "Terror e Miséria no Terceiro Reich", de Brecht. Mas aos poucos o público vai montando o quebra-cabeças: o marido traído é o executivo que não embarca, que surge no parque onde as velhinhas tramam a morte do genro, esbaforido porque surpreendeu a mulher, e por isso na origem de um novo atentado.
O fato de tudo se encaixar demonstra com maestria a tese de que o terrorismo faz hoje com que todos sejam não só vítimas mas cúmplices: além da liberdade, perde-se o sentido da vida.
O primeiro mérito de Cristina Cavalcanti é o de ter percebido a importância deste texto. Levada a dirigi-lo ela mesma, acumulando funções (o que pode ter prejudicado sua performance enquanto atriz, um pouco tolhida) sua encenação é meticulosa e promissora, denunciando a inexperiência apenas em um excesso de esquematismo.
Amparado em um cenário ágil e luz precisa, o espetáculo ganharia com uma direção de atores mais aprofundada, o que em parte é compensado pela cancha de Lilian Blanc e uma bela cena de Marcos Cesana, na qual o comandante do esquadrão anti-bomba expõe a fragilidade do mundo imitando o "happy birthday" de Marlyn Monroe para Kennedy.
Momentos assim, com uma surpreendente mistura de lirismo e grotesco, impõem "Terrorismo" como um gênero novo: uma tragédia da pós-modernidade. Sem retórica, faz seu diagnóstico incômodo e devastador da globalizada onda de atentados: "Por que, afinal de contas, não se trata de quantos morrem... é coisa mais assustadora. É o início de uma reação em cadeia... pessoas inocentes são mortas; assim os inocentes se contaminam e os pacifistas vão fazer violência com o zelo de convertidos". Bem-vindo ao século 21.


Terrorismo
   
De: Oleg e Vladimir Presnyakov
Direção: Cristina Cavalcanti
Com: Visceral Cia. (Eduardo Semerjian, Marcos Cesana, Marcelo Góes, Lilian Blanc, Tatiane Daud, Maristela Chelala, Vera Kowalska, Marcelo Pacífico, Rogério Rizzardi e Cristina Cavalcanti)
Onde: Viga Espaço Cênico (r. Capote Valente, 1.323, Pinheiros, tel. 3801-1843)
Quando: ter. e qua., às 21h; até 15/12
Quanto: R$ 20



Próximo Texto: "Tormento": Caouette usa vídeo digital para unir cinema e cotidiano
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.