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Aguilar propõe desordem no ventre da "mama arte"
CELSO FIORAVANTE
da Reportagem Local
As 29 telas que José Roberto
Aguilar apresenta a partir de hoje
na sede da Pinacoteca do Estado
no parque Ibirapuera guardam
relação com performance, videoarte, "nouveau réalisme", "action painting", arte eletrônica, colagem, poesia, antropofagia.
O processo de confecção prática
dos trabalhos foi o seguinte. Depois de realizar um vídeo em que
três atrizes e um ator nus se movimentavam livremente e se acariciavam, Aguilar decidiu que eles
deveriam também se lambuzar de
tinta, com a sua ajuda. "Coloquei
tinta onde faltava", disse à Folha.
Esse procedimento final remete
às pinturas antropomórficas de
Yves Klein (1928-1962), expoente
do "nouveau réalisme", movimento francês dos anos 60, e à
"action painting" (pintura de
ação), de Jackson Pollock (1912-1956), maior expoente do expressionismo abstrato, movimento
norte-americano dos anos 40 (leia
texto menor acima).
Em seguida, Aguilar selecionou
cenas dos vídeos, interferiu nelas
com o uso do computador e "ploteou-as" (imprimiu-as) sobre as
telas, para depois aplicar-lhes diretamente mais tintas. Por fim,
criou poesias que servem de título
para as obras e que estarão na
mostra (irregular, diga-se, como
quase tudo, na vida e na arte).
O acúmulo de tintas e linguagens de Aguilar, porém, não é
francês e racionalizado como o de
Arman, construído com a reinterpretação de objetos do cotidiano e
com a recuperação de resquícios
industriais (leia texto acima).
O acúmulo de Aguilar é tropical
e tupi, pautado em uma antropofagia orgiástica dos sentidos.
O início de tudo
Tudo começou quando Aguilar
viu a peça "Cacilda!", de José Celso Martinez Corrêa, em 1998, teve
a idéia de fazer um trabalho com
corpos e decidiu então fazer um
vídeo com quatro atores da peça.
Na verdade, tudo começou antes, quando Aguilar tomou contato com o texto sufi (fábulas-sagas
poéticas de origem árabe) "A
Conferência dos Pássaros", do
poeta persa do século 12 Ud-Din-Attar e decidiu fazer o vídeo "A
Nave da Ave", em 1987.
Melhor ainda. Tudo começou
bem antes, em 1941, quando o artista nasceu, esperneou, levou uns
tapas, abriu os olhos e vislumbrou
uma enigmática profusão de cores maior que o líquido amniótico
lhe propunha. O mundo nunca
mais foi o mesmo para Aguilar.
É preciso disposição para entrar
nesse mundo da criação de Aguilar. O espectador deverá aceitar
um prazeroso trabalho de arqueologia dos sentidos para se
aprofundar e usufruir desse sambaqui de linguagens que Aguilar
propõe em cada tela-poesia.
Sambaquis são grandes sedimentos arqueológicos produzidos por tribos indígenas, que neles acumulam objetos de sua cultura intercalados por elementos
da natureza, como conchas do
mar e areia. É como se esse rico
substrato orgânico originasse um
gêiser de prazer.
A nova mostra fecha uma trilogia iniciada em 1996, com "Criação do Mundo e do Tempo", que
se pautava nas traduções-transcriações do "Gênesis" realizadas
por Haroldo de Campos.
A segunda foi "Ossos e Asas",
em 1998, em que o artista abriu
mão de sua rica paleta de cores e
trabalhou apenas com branco,
preto, cinzas e transparências.
"No Éden, no absoluto, só existe o
branco, não como privação, mas
como abundância. Um leque infinitamente maior que o arco-íris",
disse na época.
Nessa terceira mostra, o criador
é o artista, que multiplica os corpos e os transforma com novas
cores e sensações.
Artista explica tudo
Aguilar possui uma explicação
conceitual-lógico-cronológica
para explicar tamanha bagunça.
"O mundo e o homem já existiam
nas duas mostras anteriores. Chegou a vez do "multiplicai-vos", que
é um hino ao corpo e à sensualidade", disse. "Tendo criado essas
maravilhosas criaturas à sua semelhança, Deus se transforma
num imenso voyeur", escreve o
artista no texto de introdução da
mostra-livro.
Esse é um sinal de que Deus estaria assim muito à frente de qualquer engenharia genética. Criados à sua imagem e semelhança
seríamos todos nós cordeiros
Dolly de Deus. Não é à toa que, na
iconografia cristã, Jesus, seu filho
mais conhecido, é também representado por um cordeiro (o "Agnus Dei").
Os títulos das obras, então, são
outras histórias, ricas em personagens de milhares de anos. Neles, Aguilar criou poesias em que
comenta seu processo de criação
e os movimentos dos corpos representados nas pinturas. Cita
Cristo, Salomão, Zeus, Olimpo,
gato Félix, desenhos rupestres de
Lascaux, Cinderela, "Guerra nas
Estrelas", Boticelli, Rubens, Van
Gogh, Pollock, código Morse,
Nietzsche, Kurosawa, as ninfas
Brigitte Bardot, Gina Lolobrigida
e Sônia Braga e acaba por rimar
"vulva luminescente" com "matrix florescente".
Aguilar não se constrange diante da profusão alucinada de subtextos que permeiam suas poesias
e pinturas. "Hoje existe a ditadura
da linguagem, do bom senso, do
organizado. Antes da Revolução
Industrial, o homem era universal, mas essa universalidade se
perdeu", disse Aguilar, ao justificar sua torre de Babel das linguagens, referências e homenagens.
São mais de 40 anos de trabalho
representados nessas pinturas,
uma carreira iniciada em 1958,
quando participava do movimento Kaos. Não é à toa que todo o
início da criação surgiu justamente do caos, quando "não havia nada, nem gente nem parafuso", como cantaram os Doce Bárbaros
Caetano, Gil, Gal e Bethânia.
Mostra: Tantra Coisa - Insights de um
Voyeur (a Pinacoteca inaugura ainda
mostras de pinturas de Lizar e pastéis e
desenhos da argentina Suzana
Rodriguez)
Artista: José Roberto Aguilar
Onde: Pinacoteca do Estado (pavilhão
Manoel da Nóbrega, portão 10 do
parque Ibirapuera, tel. 5082-1485)
Vernissage: hoje, às 19h
Quando: de terça a domingo, das 10h às
18h. Até 9 de janeiro
Quanto: R$ 5 e R$ 2 (estudantes). O livro
custa R$ 30
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