São Paulo, Terça-feira, 30 de Novembro de 1999


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Aguilar propõe desordem no ventre da "mama arte"

CELSO FIORAVANTE
da Reportagem Local

As 29 telas que José Roberto Aguilar apresenta a partir de hoje na sede da Pinacoteca do Estado no parque Ibirapuera guardam relação com performance, videoarte, "nouveau réalisme", "action painting", arte eletrônica, colagem, poesia, antropofagia.
O processo de confecção prática dos trabalhos foi o seguinte. Depois de realizar um vídeo em que três atrizes e um ator nus se movimentavam livremente e se acariciavam, Aguilar decidiu que eles deveriam também se lambuzar de tinta, com a sua ajuda. "Coloquei tinta onde faltava", disse à Folha.
Esse procedimento final remete às pinturas antropomórficas de Yves Klein (1928-1962), expoente do "nouveau réalisme", movimento francês dos anos 60, e à "action painting" (pintura de ação), de Jackson Pollock (1912-1956), maior expoente do expressionismo abstrato, movimento norte-americano dos anos 40 (leia texto menor acima).
Em seguida, Aguilar selecionou cenas dos vídeos, interferiu nelas com o uso do computador e "ploteou-as" (imprimiu-as) sobre as telas, para depois aplicar-lhes diretamente mais tintas. Por fim, criou poesias que servem de título para as obras e que estarão na mostra (irregular, diga-se, como quase tudo, na vida e na arte).
O acúmulo de tintas e linguagens de Aguilar, porém, não é francês e racionalizado como o de Arman, construído com a reinterpretação de objetos do cotidiano e com a recuperação de resquícios industriais (leia texto acima).
O acúmulo de Aguilar é tropical e tupi, pautado em uma antropofagia orgiástica dos sentidos.

O início de tudo
Tudo começou quando Aguilar viu a peça "Cacilda!", de José Celso Martinez Corrêa, em 1998, teve a idéia de fazer um trabalho com corpos e decidiu então fazer um vídeo com quatro atores da peça.
Na verdade, tudo começou antes, quando Aguilar tomou contato com o texto sufi (fábulas-sagas poéticas de origem árabe) "A Conferência dos Pássaros", do poeta persa do século 12 Ud-Din-Attar e decidiu fazer o vídeo "A Nave da Ave", em 1987.
Melhor ainda. Tudo começou bem antes, em 1941, quando o artista nasceu, esperneou, levou uns tapas, abriu os olhos e vislumbrou uma enigmática profusão de cores maior que o líquido amniótico lhe propunha. O mundo nunca mais foi o mesmo para Aguilar.
É preciso disposição para entrar nesse mundo da criação de Aguilar. O espectador deverá aceitar um prazeroso trabalho de arqueologia dos sentidos para se aprofundar e usufruir desse sambaqui de linguagens que Aguilar propõe em cada tela-poesia.
Sambaquis são grandes sedimentos arqueológicos produzidos por tribos indígenas, que neles acumulam objetos de sua cultura intercalados por elementos da natureza, como conchas do mar e areia. É como se esse rico substrato orgânico originasse um gêiser de prazer.
A nova mostra fecha uma trilogia iniciada em 1996, com "Criação do Mundo e do Tempo", que se pautava nas traduções-transcriações do "Gênesis" realizadas por Haroldo de Campos.
A segunda foi "Ossos e Asas", em 1998, em que o artista abriu mão de sua rica paleta de cores e trabalhou apenas com branco, preto, cinzas e transparências. "No Éden, no absoluto, só existe o branco, não como privação, mas como abundância. Um leque infinitamente maior que o arco-íris", disse na época.
Nessa terceira mostra, o criador é o artista, que multiplica os corpos e os transforma com novas cores e sensações.

Artista explica tudo
Aguilar possui uma explicação conceitual-lógico-cronológica para explicar tamanha bagunça. "O mundo e o homem já existiam nas duas mostras anteriores. Chegou a vez do "multiplicai-vos", que é um hino ao corpo e à sensualidade", disse. "Tendo criado essas maravilhosas criaturas à sua semelhança, Deus se transforma num imenso voyeur", escreve o artista no texto de introdução da mostra-livro.
Esse é um sinal de que Deus estaria assim muito à frente de qualquer engenharia genética. Criados à sua imagem e semelhança seríamos todos nós cordeiros Dolly de Deus. Não é à toa que, na iconografia cristã, Jesus, seu filho mais conhecido, é também representado por um cordeiro (o "Agnus Dei").
Os títulos das obras, então, são outras histórias, ricas em personagens de milhares de anos. Neles, Aguilar criou poesias em que comenta seu processo de criação e os movimentos dos corpos representados nas pinturas. Cita Cristo, Salomão, Zeus, Olimpo, gato Félix, desenhos rupestres de Lascaux, Cinderela, "Guerra nas Estrelas", Boticelli, Rubens, Van Gogh, Pollock, código Morse, Nietzsche, Kurosawa, as ninfas Brigitte Bardot, Gina Lolobrigida e Sônia Braga e acaba por rimar "vulva luminescente" com "matrix florescente".
Aguilar não se constrange diante da profusão alucinada de subtextos que permeiam suas poesias e pinturas. "Hoje existe a ditadura da linguagem, do bom senso, do organizado. Antes da Revolução Industrial, o homem era universal, mas essa universalidade se perdeu", disse Aguilar, ao justificar sua torre de Babel das linguagens, referências e homenagens.
São mais de 40 anos de trabalho representados nessas pinturas, uma carreira iniciada em 1958, quando participava do movimento Kaos. Não é à toa que todo o início da criação surgiu justamente do caos, quando "não havia nada, nem gente nem parafuso", como cantaram os Doce Bárbaros Caetano, Gil, Gal e Bethânia.


Mostra: Tantra Coisa - Insights de um Voyeur (a Pinacoteca inaugura ainda mostras de pinturas de Lizar e pastéis e desenhos da argentina Suzana Rodriguez) Artista: José Roberto Aguilar
Onde: Pinacoteca do Estado (pavilhão Manoel da Nóbrega, portão 10 do parque Ibirapuera, tel. 5082-1485)
Vernissage: hoje, às 19h Quando: de terça a domingo, das 10h às 18h. Até 9 de janeiro Quanto: R$ 5 e R$ 2 (estudantes). O livro custa R$ 30


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