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TEATRO/CRÍTICA
"Rei Lear", com Cortez, desvenda cegueira do poder
Lenise Pinheiro/Folha Imagem
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Raul Cortez e Bianca Castanho em cena de "Rei Lear", que está em cartaz no teatro Sesc Vila Mariana |
FABIO CYPRIANO
DA REPORTAGEM LOCAL
E scrito provavelmente em
1605, "Rei Lear", de William
Shakespeare, é ainda um dos melhores textos de análise sobre o
poder. Mais uma vez temos à
frente a obra do dramaturgo que
melhor traduz a alma humana em
suas tragédias, que ilumina nossos melhores e piores sentimentos.
"Lear" é desses textos que parecem estar sendo encenados pela
primeira vez, tamanha pungência
e atualidade de seu conteúdo. Seu
frescor está reforçado pela montagem contemporânea de Ron
Daniels, em cartaz no teatro do
Sesc Vila Mariana, encabeçada
por Raul Cortez.
O espetáculo é grandioso, a começar pelo excelente cenário de
J.C. Serroni. Um grande painel
domina o palco, que ao longo da
peça vai caindo sobre os personagens, intensificando o drama de
Lear. No final, ele se torna horizontal, um ringue para resolver as
disputas em questão.
Lear (Cortez) é um velho rei que
decide dividir seu reino entre as
três filhas, Goneril (Lu Grimaldi),
Regana (Ligia Cortez) e Cordélia
(Bianca Castanho). As duas primeiras derramam-se em elogios
ao rei e obtêm do pai suas partes.
Cordélia, a mais querida, por sua
sinceridade e transparência, é renegada por Lear.
Ao mesmo tempo, o conde de
Glocester (Mario Cesar Camargo)
elege como seu sucessor um filho
indigno, Edmundo (Rogério Bandeira), em detrimento de Edgar
(Caco Ciocler), que sempre fora o
mais fiel.
Nos dois casos, tanto em Lear
como em Glocester, Shakespeare
deixa claro como bajulação e falsidade falam muito mais alto, a
quem está no poder, do que sinceridade e verdade. As escolhas dos
dois não são motivadas pela razão, mas por questões pessoais
comezinhas, de pura vaidade. Em
quatro séculos, pouco mudou no
comportamento humano, políticos cercam-se de puxa-sacos, a
cegueira continua. Poder e sinceridade são água e óleo.
Em meio a tantas inverdades,
cabe ao bobo da corte (Gilberto
Gawronski) o papel de lúcido.
"Quero aprender a mentir", diz o
personagem, que pontua o texto
com as frases mais verdadeiras e
traz a lucidez para o centro da trama.
Lear, apesar de idoso, não age
com maturidade. É apenas com o
sofrimento motivado pelos seus
atos que a lucidez aparece. O rei
torna-se nu e, portanto, mais humano e real, quando se liberta de
sua "entourage".
Está aí o excelente trabalho de
atuação de Cortez. O longo processo de insanidade, pelo qual
passa Lear, é encenado de maneira intensa pelo ator. Para tanto,
utilizou-se de uma caracterização
de idoso por meio de um acento
característico, o que às vezes estranhamente some do personagem. E seu desnudamento, a libertação dos valores exteriores, é
uma das mais belas metáforas utilizadas pela direção de Daniels.
Ótimas atuações também são
obtidas por Ciocler e Bandeira, especialmente o último. Seu personagem, Edmundo, um sedutor
mau-caráter, torna-se o centro da
trama no segundo ato, e o faz com
grande desenvoltura.
Já o elenco feminino tem uma
participação não tão destacada,
muito contida para presença tão
histérica na trama.
Em torno dos personagens
principais está o Exército de Lear.
Daniels faz uma bela marcação
desses atores, ressaltando seus
dotes físicos, numa caracterização
quase erótica.
Outra das belas cenas criadas
por Shakespeare é quando os
olhos de Glocester são arrancados. Mais uma imagem exterior,
de algo que já acontecia na realidade, e que Daniels ressalta bela
em sua montagem.
"Falar o que sentimos, e não o
que devemos dizer" é a fórmula
de redenção que nos apresenta
Lear.
Peça: Rei Lear
Texto: William Shakespeare
Tradução, adaptação e direção: Ron
Daniels
Com: Raul Cortez, Mário Borges,
Leonardo Franco, Luiz Guilherme,
Bartholomeu de Haro e outros
Quando: de qui. a sáb., às 21h; dom., às
19h. Até 22/10
Onde: Sesc Vila Mariana (r. Pelotas, 141,
tel. 5080-3147)
Quanto: R$ 30 (qui.) e R$ 40
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