São Paulo, quinta-feira, 31 de agosto de 2000


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TEATRO/CRÍTICA
"Rei Lear", com Cortez, desvenda cegueira do poder

Lenise Pinheiro/Folha Imagem
Raul Cortez e Bianca Castanho em cena de "Rei Lear", que está em cartaz no teatro Sesc Vila Mariana


FABIO CYPRIANO
DA REPORTAGEM LOCAL

E scrito provavelmente em 1605, "Rei Lear", de William Shakespeare, é ainda um dos melhores textos de análise sobre o poder. Mais uma vez temos à frente a obra do dramaturgo que melhor traduz a alma humana em suas tragédias, que ilumina nossos melhores e piores sentimentos.
"Lear" é desses textos que parecem estar sendo encenados pela primeira vez, tamanha pungência e atualidade de seu conteúdo. Seu frescor está reforçado pela montagem contemporânea de Ron Daniels, em cartaz no teatro do Sesc Vila Mariana, encabeçada por Raul Cortez.
O espetáculo é grandioso, a começar pelo excelente cenário de J.C. Serroni. Um grande painel domina o palco, que ao longo da peça vai caindo sobre os personagens, intensificando o drama de Lear. No final, ele se torna horizontal, um ringue para resolver as disputas em questão.
Lear (Cortez) é um velho rei que decide dividir seu reino entre as três filhas, Goneril (Lu Grimaldi), Regana (Ligia Cortez) e Cordélia (Bianca Castanho). As duas primeiras derramam-se em elogios ao rei e obtêm do pai suas partes. Cordélia, a mais querida, por sua sinceridade e transparência, é renegada por Lear.
Ao mesmo tempo, o conde de Glocester (Mario Cesar Camargo) elege como seu sucessor um filho indigno, Edmundo (Rogério Bandeira), em detrimento de Edgar (Caco Ciocler), que sempre fora o mais fiel.
Nos dois casos, tanto em Lear como em Glocester, Shakespeare deixa claro como bajulação e falsidade falam muito mais alto, a quem está no poder, do que sinceridade e verdade. As escolhas dos dois não são motivadas pela razão, mas por questões pessoais comezinhas, de pura vaidade. Em quatro séculos, pouco mudou no comportamento humano, políticos cercam-se de puxa-sacos, a cegueira continua. Poder e sinceridade são água e óleo.
Em meio a tantas inverdades, cabe ao bobo da corte (Gilberto Gawronski) o papel de lúcido. "Quero aprender a mentir", diz o personagem, que pontua o texto com as frases mais verdadeiras e traz a lucidez para o centro da trama.
Lear, apesar de idoso, não age com maturidade. É apenas com o sofrimento motivado pelos seus atos que a lucidez aparece. O rei torna-se nu e, portanto, mais humano e real, quando se liberta de sua "entourage".
Está aí o excelente trabalho de atuação de Cortez. O longo processo de insanidade, pelo qual passa Lear, é encenado de maneira intensa pelo ator. Para tanto, utilizou-se de uma caracterização de idoso por meio de um acento característico, o que às vezes estranhamente some do personagem. E seu desnudamento, a libertação dos valores exteriores, é uma das mais belas metáforas utilizadas pela direção de Daniels.
Ótimas atuações também são obtidas por Ciocler e Bandeira, especialmente o último. Seu personagem, Edmundo, um sedutor mau-caráter, torna-se o centro da trama no segundo ato, e o faz com grande desenvoltura.
Já o elenco feminino tem uma participação não tão destacada, muito contida para presença tão histérica na trama.
Em torno dos personagens principais está o Exército de Lear. Daniels faz uma bela marcação desses atores, ressaltando seus dotes físicos, numa caracterização quase erótica.
Outra das belas cenas criadas por Shakespeare é quando os olhos de Glocester são arrancados. Mais uma imagem exterior, de algo que já acontecia na realidade, e que Daniels ressalta bela em sua montagem.
"Falar o que sentimos, e não o que devemos dizer" é a fórmula de redenção que nos apresenta Lear.


Peça: Rei Lear     Texto: William Shakespeare Tradução, adaptação e direção: Ron Daniels Com: Raul Cortez, Mário Borges, Leonardo Franco, Luiz Guilherme, Bartholomeu de Haro e outros Quando: de qui. a sáb., às 21h; dom., às 19h. Até 22/10 Onde: Sesc Vila Mariana (r. Pelotas, 141, tel. 5080-3147) Quanto: R$ 30 (qui.) e R$ 40



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