São Paulo, domingo, 22 de março de 2009

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Pra que serve esta terra?

por CLAUDIO ANGELO

A história da antártida tem sido marcada pela disputa entre a ciência e a exploração econômica. A primeira está levando a melhor por enquanto

Em fevereiro de 1775, após se tornar o primeiro homem a circunavegar o oceano Austral, James Cook encerrou assim o debate de séculos sobre a existência de um continente desconhecido no sul do planeta: "Terras condenadas à eterna frigidez, (...) cujo aspecto horrível e selvagem não tenho palavras para descrever: tais são as que descobrimos e as que podemos imaginar existirem mais ao sul". A bordo do HMS Resolution, o britânico havia chegado a 150 km da costa da Antártida, mas sem avistar o continente. A quem se dispusesse a avançar além dele, Cook deixou um aviso: "Não me causará inveja pela honra da descoberta, mas atrevo-me a dizer que o mundo não se beneficiará dela".

Não foi preciso muito tempo para que a profecia se mostrasse furada. Já em 1784 o mundo –ou parte dele– começou a se beneficiar da Antártida, quando caçadores de focas chegaram às ilhas Geórgia do Sul e Sandwich do Sul em busca da valiosa pele do lobo-marinho (Arctocephalus gazella). O influxo, ironicamente, fora inspirado pelo próprio Cook, que nove anos antes registrara as vastas quantidades de focas e baleias nos mares austrais.

A história de Cook e dos foqueiros é emblemática do cabo-de-guerra entre descoberta e exploração econômica, entre ciência e pecúnia, que marca a história da Antártida. Foi um cientista, Edmond Halley, quem viu seus icebergs tabulares típicos pela primeira vez, e um explorador, o russo Thaddeus Bellingshausen, o primeiro a avistar o continente. Mas foram caçadores de focas os primeiros a pôr os pés em terras antárticas e a enfrentar o inverno na região. Foram foqueiros e baleeiros que mapearam grande parte do litoral antártico no século 19. Mas foi um evento científico, o Terceiro Ano Polar Internacional, em 1957/58, que permitiu a efetiva ocupação do continente antártico e acabou por colocá-lo sob administração internacional.

Desde o Terceiro Ano Polar (ampliado para Ano Geofísico Internacional), a ciência vem prevalecendo no continente. O Tratado da Antártida, adotado em 1959 sob inspiração do Ano Geofísico e ratificado em 1961, consagra o território antártico à paz, e uma emenda ao tratado, o Protocolo de Madri, de 1991, proíbe ali até 2041 qualquer atividade que não seja a pesquisa científica, o turismo e, principalmente, a preservação ambiental.

Dificilmente alguém que chegasse às ilhas Shetlands do Sul (onde fica a estação brasileira Comandante Ferraz) em 1820 imaginaria que aquela região seria convertida em um santuário ecológico algum dia. As ilhas antárticas naquela época se pareciam mais com um grande abatedouro, onde lobos-marinhos eram mortos aos milhares. As cifras exatas jamais serão conhecidas –os foqueiros não reportavam suas capturas, nem revelavam seus locais de caça, por medo de concorrência–, mas Robert Headland, especialista em ocupação da Antártida do Instituto Scott de Pesquisa Polar, no Reino Unido, estima em "milhões" o número de animais abatidos. Um dos caçadores, James Weddell –descobridor do mar que hoje leva seu nome–, estimou em pelo menos 420 mil os lobos-marinhos massacrados entre 1821 e 1822. Ficou tão chocado com o tamanho do abate que propôs um esquema, nunca adotado, de captura de "apenas" 100 mil animais por ano.

O lado positivo dessas viagens de extermínio foi que os foqueiros acabaram descobrindo novas terras na Antártida. "Foram tantas as expedições, mais de 1.500, que alguma descoberta era inevitável", diz Headland, autor de "A Chronology of Antarctic Exploration", um compêndio de mais de 700 páginas e 2,4 quilos sobre a ocupação da região, recém-lançado na Inglaterra. Outro efeito colateral do extermínio das focas, afirma o pesquisador, foi uma explosão nos estoques de krill no oceano Austral –o que, por sua vez, levou a uma explosão na população de baleias, o recurso natural seguinte a ser explorado na Antártida.

A viagem magnética de Ross

A ciência retomaria as rédeas da conquista polar novamente na década de 1830. Naquele período, as focas já estavam praticamente extintas, e a existência de um grande continente austral, mais ou menos demonstrada. Só que ninguém ainda conseguira penetrar o mar congelado acima dos 71 graus de latitude, o ponto "ne plus ultra" (além do qual ninguém avançara) das navegações de Cook e Weddell. Isso dava margem a todo tipo de especulação, inclusive uma teoria maluca segundo a qual a Terra era oca nos polos. Também restava um mistério a resolver: a localização do polo magnético. Numa época em que a mentalidade científica e exploratória dos europeus alcançou seu ponto máximo (foi em 1831, por exemplo, que Charles Darwin partiu a bordo do Beagle), esse era um buraco imperdoável no conhecimento.

Três expedições foram organizadas e enviadas simultaneamente, a partir de 1838, com o mesmo objetivo de superar Cook e achar o polo magnético Sul: a do francês Dumont D’Urville (que batizaria uma parte do continente e uma espécie de pinguim em homenagem a sua mulher, Adélie), a do americano Charles Wilkes e a do britânico James Clark Ross.

Os navios de Ross, o Erebus e o Terror, entraram na banquisa por três vezes entre 1840 e 1843. Ross não chegou a descobrir o polo magnético (que mostrou ficar em terra, não no mar), mas penetrou até os 78 graus de latitude sul, batendo Cook e Weddell. De quebra, descobriu terra no continente, à beira do mar que hoje leva o seu nome, além da grande plataforma de gelo antártica, a barreira de Ross, de onde partiriam as expedições de descoberta do polo geográfico Sul.

A viagem de Ross deu "momento" à ideia de conduzir investigações científicas na Antártida, diz Colin Summerhayes, presidente do Scar (Comitê Científico sobre Pesquisa Antártica), entidade que coordena a ciência na região. Esse esforço acabou resultando no Ano Polar Internacional, em 1882-1883, primeiro esforço multidisciplinar de pesquisa polar. Apesar de ter lançado a semente da cooperação internacional, o Ano Polar foi um fiasco na prática. Só em 2006, 123 anos depois, os dados coletados durante o evento seriam processados.

O massacre das baleias

Quem aproveitou muito melhor que os cientistas as observações de Ross foi uma atividade que seria o terror do oceano Austral até 1965: a indústria baleeira. Assim como Cook fizera com as focas, Ross reportara grandes quantidades de baleias em seus diários, o que serviu de guia para expedições de caça que começaram a chegar à Antártida esporadicamente em 1874. As condições de captura, no entanto, desencorajaram os caçadores: a maioria das baleias eram azuis, fin e minkes, que nadam rápido demais para serem alcançadas por veleiros. Para não perder a viagem, esses caçadores exterminaram o restante das focas antárticas.

A partir de 1904, o advento dos navios a motor, somado à invenção do arpão de ponta explosiva, permitiram à indústria baleeira moderna se instalar na Antártida e caçar as baleias velozes. A primeira estação industrial, Grytviken, na Geórgia do Sul, foi estabelecida pelo norueguês Carl Larsen, que deu nome à plataforma de gelo que se esfacelou em 2002 sob influência do aquecimento global.

Entre 1904 e 1965, 1,4 milhão de baleias foram mortas na Antártida. "Se somarmos as capturas em áreas de reprodução, ao norte dos 40 graus Sul, o valor total chega a quase 1,8 milhão", diz o rasileiro Alexandre Zerbini, oceanógrafo da Noaa (Agência Nacional de Oceanos e Atmosfera) dos EUA.

A sanha dessa indústria, que fazia de óleo de motor a margarina à base de baleia, levou esses cetáceos à beira da extinção e alterou o ecossistema antártico (desta vez permitindo a recuperação as focas e a explosão da população de pinguins). Até hoje, praias das Shetlands do Sul são coalhadas de ossos de baleia.

O advento dos baleeiros também pôs em movimento um problema que explodiria décadas depois e que até hoje não foi resolvido: as pretensões territoriais na Antártida, principalmente aquilo que obert Headland chama entre risadas de "a questão do ABC": argentinos, britânicos e chilenos.

"Muito tempo atrás houve reivindicações territoriais britânicas, mas nunca ninguém fez nada a respeito até que houvesse dinheiro na jogada, no licenciamento da atividade baleeira", afirma Headland. A península e as ilhas subantárticas eram consideradas território britânico, e os ingleses cobravam taxa de quem quisesse caçar por lá. Isso levou os noruegueses a declarar a posse de um enorme território a leste da península, e os argentinos e os chilenos –que consideram a península o seu quintal– a baterem o pé nas próprias reivindicações.

Os argentinos são ferozes, os chilenos são muito quentes também, e isso significa que os britânicos não podem esquecer! E de tempos em tempos eles recebem lembretes, o maior deles em 1982 com as... como vocês chamam em português? Ilhas Malvinas! A Antártida foi uma das questões envolvidas", gargalha o pesquisador, lembrando a guerra declarada pela ditadura argentina contra o Reino Unido pelo arquipélago –que os britânicos chamam de Falklands.

A era heroica

Depois do Ano Polar, os cientistas voltariam a investir na Antártida a partir de 1895, quando o Congresso Geográfico Internacional elegeu o continente branco sua prioridade. Foi o início da breve, mas intensa, "era heroica" da exploração, na qual homens frequentemente mal equipados e mal preparados se aventuraram no interior do continente. Duas expedições perderam seus navios, esmagados pela banquisa: a do sueco Otto Nordenskjold, em 1901-1904 (a bordo do Antarctic) e a do britânico Ernest Shackleton, em 1914-1917 (a bordo do Endurance). E uma delas perdeu cinco vidas, incluindo a de seu líder, o britânico Robert Falcon Scott (leia quadro na pág. 31). O saldo dessa fase de exploração foi a conquista do polo Sul, em 14 de dezembro de 1911, pela expedição norueguesa comandada por Roald Amundsen.

Apesar do triunfo de Amundsen, quem passaria para a história como o maior explorador polar de todos os tempos seria Shackleton, que fracassou em suas três viagens à Antártida.

Na primeira delas, acompanhando Scott no Discovery em 1901-1902, Shackleton adoeceu com escorbuto e quase morreu. Na segunda, liderada por ele mesmo a bordo do Nimrod em 1907-1909, ele chegou a 156 km do polo geográfico, mas foi forçado pelo mau tempo a dar meia-volta.

Na terceira viagem, a bordo do Endurance, já agraciado com o título de "sir", Shackleton tentou fazer a primeira travessia da Antártida a pé, desembarcando no litoral do mar de Weddell, cruzando o polo e embarcando no mar de Ross. O Endurance deixou a Inglaterra em agosto de 1914 e foi aprisionado pelo gelo marinho de Weddell no dia 18 de janeiro de 1915. A partir daí, começou a derivar a noroeste, até ser esmagado pela banquisa em outubro e afundar em novembro.

O que se seguiu foi talvez a maior aventura da história da exploração geográfica. Shackleton e seus 27 homens viveram durante seis meses sobre placas de gelo flutuantes, algumas com poucos centímetros de espessura, sob a ameaça constante de que o "chão" se abrisse à noite e tragasse os homens para o mar gelado, ou que uma orca confundisse os homens com focas e rompesse as placas em busca de uma refeição –como, de fato, aconteceu. Depois disso, em três botes, alcançaram a ilha Elefante, a 180 km do bloco de gelo à deriva sobre o qual acampavam.

Shackleton deixou 22 homens em Elefante e partiu com cinco companheiros num bote de 6 metros, o James Caird, para buscar ajuda. Objetivo: ilha Geórgia do Sul, a 1.500 km dali, numa travessia de 16 dias pela passagem de Drake, o mar mais tempestuoso do mundo. Num esforço final, o grupo ainda teve de cruzar a Geórgia do Sul a pé, para buscar ajuda na estação baleeira de Grytviken. Os homens em Elefante foram resgatados quatro meses depois. Todos sobreviveram.

"Pax Antarctica"

A era heroica assentou as bases para a exploração do interior do continente, que foi praticamente congelada no entre-guerras e retomada com força no Ano Geofísico Internacional de 1957-58, após um Segundo Ano Polar Internacional pífio em 1932. O pós-Segunda Guerra trouxe aos cientistas outra urgência: evitar que a Antártida se tornasse a próxima fronteira da Guerra Fria entre EUA e URSS (mal sabiam eles que os EUA detonaram secretamente três bombas nucleares sobre o oceano Austral em 1958). O esforço de cooperação entre americanos e soviéticos no Ano Geofísico foi real e levou à construção de dois legados antárticos: a estação americana Amundsen-Scott, no polo Sul, e a russa Vostok, no alto do platô polar.

À cooperação científica seguiu-se também a cooperação política. Em 1º de dezembro de 1959, os 12 países que participaram do Ano Geofísico assinaram em Washington o Tratado da Antártida, que estabelece no seu artigo primeiro que "a Antártida deverá ser usada apenas para fins pacíficos". As reivindicações territoriais, embora não fossem negadas, foram congeladas por seus signatários, que hoje são 27 (incluindo o Brasil, que se juntou ao clube em 1975). "Eu chamo isso de Pax Antarctica", diz Bob Headland.

Como todos os acordos voluntários, no entanto, o Tratado da Antártida se assenta sobre bases frágeis. "Por exemplo, se minerais valiosos, sequências genômicas ou alguma outra coisa que atenda a uma demanda mundial forem encontrados na Antártida, o pior cenário é que se rompa o tratado", afirma o britânico. Com isso seriam reativadas as pretensões territoriais de sete países (além de Argentina, Chile e Reino Unido, França, Austrália, Nova Zelândia e Noruega).

As chances de isso acontecer no momento são pequenas. O continente não possui nenhuma jazida mineral identificada com potencial comercial.

"Vamos falar sério: o único mineral explorável são rochas para a construção civil, porque 99,7% da Antártida estão cobertos de gelo permanente", ri Head-land. "Geologicamente, há formações semelhantes às de áreas com minerais da Austrália e da África do Sul. Deve haver minerais lá, mas é difícil chegar até eles."

Um protocolo sobre exploração mineral chegou a ser negociado, mas acabou substituído pelo Protocolo de Madri, que estabelece a proteção ambiental.

"Acho que as pessoas que eram a favor da ideia foram levadas à Antártida e então se deram conta do quão incrivelmente difícil seria fazer mineração ali, uma vez que quase nenhuma rocha está exposta, o gelo é grosso em toda parte, as temperaturas são extremas, o tempo é medonho, a maioria do continente fica no escuro seis meses por ano, ele é cercado por um cinturão maciço de gelo de 1.000 km de largura, há poucos portos seguros e no verão o mar fica coalhado de icebergs maciços que tornam a navegação e a instalação de plataformas de petróleo no mar arriscadas", enumera Colin Summerhayes, do Scar.

Pelo sim, pelo não, recentemente o Reino Unido e a Austrália incluíram seções do oceano Austral no levantamento de suas plataformas continentais, o que em tese transforma parte da Antártida em sua zona econômica exclusiva –uma reserva para eventual uso futuro.

James Cook jamais imaginaria que suas "terras condenadas" fossem um dia despertar tanta cobiça. Grande navegador, péssimo profeta.

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