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BRASIL CAMARADA
Empresa com débito de R$ 128 mi pagava prestações mensais de R$ 12; sistema é vulnerável a fraudes
Governo parcela dívidas em 8.900 séculos
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Fama Ferragens S.A. converteu-se, em três décadas, num logotipo
de sucesso. É associado a uma das
mais conhecidas marcas de fechaduras do país. Os computadores
do Ministério da Fazenda armazenam dados com potencial para
expandir a notoriedade da Fama a
um outro setor, o tributário.
Com R$ 128 milhões em impostos atrasados, a Fama aderiu ao
Refis, o programa de parcelamento de débitos tributários criado
em 2000. A empresa passou a recolher aos cofres de Brasília uma
média de R$ 12,00 por mês. Repetindo: R$ 12,00.
Concedeu-se à Fama até 890 mil
anos para regularizar o seu contencioso com o fisco. O fracionamento módico e o prazo de 8.900
séculos não bastaram, porém, para recompor a solvência da companhia de ferragens. A Fama foi
excluída do Refis há dois meses.
Motivo: falta de pagamento.
Para o Cadastro Nacional da
Pessoa Jurídica da Receita Federal, a Fama é uma empresa "ativa". Para o mercado, fechou as
portas. Sumiu até da lista telefônica. Não supre de novas fechaduras a rede de revendedores. As lojas desovam peças que restaram
de estoques antigos.
Ao aderir ao Refis, a exemplo do
que fez a Fama, grandes devedores do fisco foram excluídos de
uma lista negra chamada Cida
(Cadastro de Informações da Dívida Ativa da União). Trata-se de
uma espécie de mega-Serasa, em
que são inscritos os devedores
contumazes do erário.
A lista contém 4,5 milhões de
nomes. Pessoas físicas e jurídicas.
Juntas, devem ao governo R$ 198
bilhões. A cifra equivale a 72,5%
de tudo o que a Receita Federal arrecadou em 2003: R$ 273 bilhões.
"Fraude contábil"
O cadastro da dívida ativa e os
parcelamentos do Refis são supervisionados pela Procuradoria
Geral da Fazenda Nacional. O órgão integra a estrutura do Ministério da Fazenda. Funciona como
uma grande banca pública de advocacia. Possui escritórios em todas as capitais brasileiras e seccionais em 62 municípios do interior
do país. Seu principal "cliente" é a
Receita Federal.
No sítio que mantém na internet, a Procuradoria da Fazenda
vende a si mesma como uma repartição "ágil e eficiente". Apuração realizada pela Folha nas últimas três semanas detectou uma
realidade diversa.
Sob o véu de aparente eficácia,
esconde-se uma engrenagem lenta, desaparelhada e assediada pela
fraude. No caso das empresas que
abraçaram o Refis, a hipótese de
irregularidade é levantada em relatório confidencial do próprio
governo.
Foi redigido há quatro meses
por auditores da Controladoria
Geral da União, órgão vinculado à
Presidência da República. Está
datado de 19 de setembro de 2003.
Na página 15, o documento trata
de "indícios de malversação dos
recursos da dívida ativa que foram objeto do Refis".
Diz o texto: "Como a lei faculta
ao contribuinte pagar um percentual de seu faturamento, sem fixar
um prazo para o encerramento
dos pagamentos, grande parte
dos contribuintes que aderiram
ao Refis está fraudando os registros contábeis de seu faturamento, de forma a pagar o menos possível".
De fato, a legislação do Refis
vinculou o pagamento de antigas
dívidas tributárias a percentuais
incidentes sobre o faturamento.
Variam de 0,3% a 1,5%, conforme
o porte da empresa. Quanto menos a firma fatura, menos recolhimento ao fisco. Daí a suspeita de
fraude contábil.
"Força-tarefa"
Ouvido, o procurador-geral da
Fazenda Nacional, Manuel Felipe
Rêgo Brandão, disse que os casos
detectados são todos anteriores à
sua administração, iniciada em
maio de 2003, já sob Luiz Inácio
Lula da Silva. Ainda assim, ele defende o órgão que dirige.
O problema não estaria, segundo Rêgo Brandão, no descuido de
procuradores que analisaram os
processos de parcelamento do
Refis, mas na prodigalidade excessiva da lei, contra a qual não há
o que fazer.
Os auditores da Controladoria
da União pensam diferente. Recomendam a constituição de uma
"força-tarefa" para investigar os
indícios de "fraude". Seria integrada por servidores da própria
Controladoria, do Ministério Público, da Polícia Federal e da Receita. Incluída no relatório de setembro de 2003, a sugestão foi às
gavetas de Brasília.
Embora chame maior atenção,
por eloqüente, o caso da Fama
não é único. Longe disso. É grande a lista de empresas beneficiadas com parcelamentos tributários a perder de vista. Em inspeção no escritório da Fazenda Nacional em São Paulo, a Controladoria Geral da União pinçou 32
exemplos (veja a lista nesta página).
A Comercial Gentil Moreira
S.A., por exemplo, empresa do ramo alimentício, deve ao fisco R$
314 milhões. Foi ao Refis. Recolhe
ao Tesouro uma média de R$
153,00 por mês. Mantido esse valor, liquidará o débito em 171.237
anos.
A exemplo do que ocorre com a
Fama, a Gentil Moreira permanece "ativa" apenas no cadastro de
pessoas jurídicas da Receita, acessível por meio da internet. No endereço em que deveria funcionar
(rua Plínio Ramos, 50, bairro da
Luz, São Paulo) há uma outra empresa. Chama-se Proseg. Atua no
ramo de segurança.
Empresas de mídia
A Folha tentou localizar alguém
que falasse pela Gentil Moreira.
Não conseguiu. Instalado num
galpão no município de Barueri
(SP), telefone supostamente pertencente à empresa é atendido
por uma pessoa que diz que a casa
"fechou as portas". A confiar nos
registros da Procuradoria da Fazenda, porém, a firma está em dia
com o Refis.
Outra empresa, a Commerce
Desenvolvimento Mercantil, deve
R$ 147,8 milhões em tributos. O
nome-fantasia da firma é Arapuã.
A famosa casa varejista de eletrodomésticos recolhe mensalmente
uma média de R$ 1.000,00. Se não
atrasar as prestações, estará quite
com o fisco em 348 anos.
"O faturamento atual da empresa vem desde 95", diz Renato Jacob, presidente da Arapuã. "Só
com bola de cristal poderíamos
adivinhar que haveria um Refis
em 2000, para poder fraudar o faturamento. Pagamos como manda a lei. Se alguém não gosta da lei,
não é culpa nossa."
Indústria Lousano Ltda, fabricante de condutores elétricos, deve R$ 43 milhões em tributos. Vinha recolhendo, em média, R$
15,2 mil por mês. O que resultaria
num fracionamento da dívida em
236 anos. Foi, porém, excluída do
Refis por falta de pagamento.
Contatada pela reportagem, a
Lousano não quis se pronunciar.
Entre os processos cuja idoneidade a Controladoria da União
considerou duvidosa, há parcelamentos que beneficiam empresas
do setor de comunicação. A Rede
Record de Televisão, ligada à Igreja Universal do Reino de Deus, teve o débito de R$ 383,8 milhões
parcelado em até 92 anos.
O departamento jurídico da
empresa ditou à Folha a seguinte
manifestação: "O Refis adveio de
um dispositivo legal, ao qual a Record, como várias outras empresas, se enquadrou. Tudo foi feito
dentro dos limites legais".
A Editora Três, gráfica em cujas
rotativas é impressa a revista "IstoÉ", logrou dividir uma dívida de
R$ 222,4 milhões em parcelas que,
a depender do faturamento da
empresa, pode se alongar por até
344 anos. Domingo Alzugaray,
dono da editora, levanta dúvidas
quanto aos números da Procuradoria da Fazenda: "Creio que devemos a metade disso".
Alzugaray acrescenta: "Não tem
fundamento a alegação de fraude.
Pagamos religiosamente pelo faturamento. O que acontece é que
esse faturamento não é suficiente.
O país está parado. O prazo de 344
anos é até otimista. Ou começamos a faturar novamente como
há cinco, seis anos, ou não vamos
pagar nunca. Vamos afundar em
dívidas".
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