São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2004

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BRASIL CAMARADA

Empresa com débito de R$ 128 mi pagava prestações mensais de R$ 12; sistema é vulnerável a fraudes

Governo parcela dívidas em 8.900 séculos

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Fama Ferragens S.A. converteu-se, em três décadas, num logotipo de sucesso. É associado a uma das mais conhecidas marcas de fechaduras do país. Os computadores do Ministério da Fazenda armazenam dados com potencial para expandir a notoriedade da Fama a um outro setor, o tributário.
Com R$ 128 milhões em impostos atrasados, a Fama aderiu ao Refis, o programa de parcelamento de débitos tributários criado em 2000. A empresa passou a recolher aos cofres de Brasília uma média de R$ 12,00 por mês. Repetindo: R$ 12,00.
Concedeu-se à Fama até 890 mil anos para regularizar o seu contencioso com o fisco. O fracionamento módico e o prazo de 8.900 séculos não bastaram, porém, para recompor a solvência da companhia de ferragens. A Fama foi excluída do Refis há dois meses. Motivo: falta de pagamento.
Para o Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica da Receita Federal, a Fama é uma empresa "ativa". Para o mercado, fechou as portas. Sumiu até da lista telefônica. Não supre de novas fechaduras a rede de revendedores. As lojas desovam peças que restaram de estoques antigos.
Ao aderir ao Refis, a exemplo do que fez a Fama, grandes devedores do fisco foram excluídos de uma lista negra chamada Cida (Cadastro de Informações da Dívida Ativa da União). Trata-se de uma espécie de mega-Serasa, em que são inscritos os devedores contumazes do erário.
A lista contém 4,5 milhões de nomes. Pessoas físicas e jurídicas. Juntas, devem ao governo R$ 198 bilhões. A cifra equivale a 72,5% de tudo o que a Receita Federal arrecadou em 2003: R$ 273 bilhões.

"Fraude contábil"
O cadastro da dívida ativa e os parcelamentos do Refis são supervisionados pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional. O órgão integra a estrutura do Ministério da Fazenda. Funciona como uma grande banca pública de advocacia. Possui escritórios em todas as capitais brasileiras e seccionais em 62 municípios do interior do país. Seu principal "cliente" é a Receita Federal.
No sítio que mantém na internet, a Procuradoria da Fazenda vende a si mesma como uma repartição "ágil e eficiente". Apuração realizada pela Folha nas últimas três semanas detectou uma realidade diversa.
Sob o véu de aparente eficácia, esconde-se uma engrenagem lenta, desaparelhada e assediada pela fraude. No caso das empresas que abraçaram o Refis, a hipótese de irregularidade é levantada em relatório confidencial do próprio governo.
Foi redigido há quatro meses por auditores da Controladoria Geral da União, órgão vinculado à Presidência da República. Está datado de 19 de setembro de 2003. Na página 15, o documento trata de "indícios de malversação dos recursos da dívida ativa que foram objeto do Refis".
Diz o texto: "Como a lei faculta ao contribuinte pagar um percentual de seu faturamento, sem fixar um prazo para o encerramento dos pagamentos, grande parte dos contribuintes que aderiram ao Refis está fraudando os registros contábeis de seu faturamento, de forma a pagar o menos possível".
De fato, a legislação do Refis vinculou o pagamento de antigas dívidas tributárias a percentuais incidentes sobre o faturamento. Variam de 0,3% a 1,5%, conforme o porte da empresa. Quanto menos a firma fatura, menos recolhimento ao fisco. Daí a suspeita de fraude contábil.

"Força-tarefa"
Ouvido, o procurador-geral da Fazenda Nacional, Manuel Felipe Rêgo Brandão, disse que os casos detectados são todos anteriores à sua administração, iniciada em maio de 2003, já sob Luiz Inácio Lula da Silva. Ainda assim, ele defende o órgão que dirige.
O problema não estaria, segundo Rêgo Brandão, no descuido de procuradores que analisaram os processos de parcelamento do Refis, mas na prodigalidade excessiva da lei, contra a qual não há o que fazer.
Os auditores da Controladoria da União pensam diferente. Recomendam a constituição de uma "força-tarefa" para investigar os indícios de "fraude". Seria integrada por servidores da própria Controladoria, do Ministério Público, da Polícia Federal e da Receita. Incluída no relatório de setembro de 2003, a sugestão foi às gavetas de Brasília.
Embora chame maior atenção, por eloqüente, o caso da Fama não é único. Longe disso. É grande a lista de empresas beneficiadas com parcelamentos tributários a perder de vista. Em inspeção no escritório da Fazenda Nacional em São Paulo, a Controladoria Geral da União pinçou 32 exemplos (veja a lista nesta página).
A Comercial Gentil Moreira S.A., por exemplo, empresa do ramo alimentício, deve ao fisco R$ 314 milhões. Foi ao Refis. Recolhe ao Tesouro uma média de R$ 153,00 por mês. Mantido esse valor, liquidará o débito em 171.237 anos.
A exemplo do que ocorre com a Fama, a Gentil Moreira permanece "ativa" apenas no cadastro de pessoas jurídicas da Receita, acessível por meio da internet. No endereço em que deveria funcionar (rua Plínio Ramos, 50, bairro da Luz, São Paulo) há uma outra empresa. Chama-se Proseg. Atua no ramo de segurança.

Empresas de mídia
A Folha tentou localizar alguém que falasse pela Gentil Moreira. Não conseguiu. Instalado num galpão no município de Barueri (SP), telefone supostamente pertencente à empresa é atendido por uma pessoa que diz que a casa "fechou as portas". A confiar nos registros da Procuradoria da Fazenda, porém, a firma está em dia com o Refis.
Outra empresa, a Commerce Desenvolvimento Mercantil, deve R$ 147,8 milhões em tributos. O nome-fantasia da firma é Arapuã. A famosa casa varejista de eletrodomésticos recolhe mensalmente uma média de R$ 1.000,00. Se não atrasar as prestações, estará quite com o fisco em 348 anos.
"O faturamento atual da empresa vem desde 95", diz Renato Jacob, presidente da Arapuã. "Só com bola de cristal poderíamos adivinhar que haveria um Refis em 2000, para poder fraudar o faturamento. Pagamos como manda a lei. Se alguém não gosta da lei, não é culpa nossa."
Indústria Lousano Ltda, fabricante de condutores elétricos, deve R$ 43 milhões em tributos. Vinha recolhendo, em média, R$ 15,2 mil por mês. O que resultaria num fracionamento da dívida em 236 anos. Foi, porém, excluída do Refis por falta de pagamento. Contatada pela reportagem, a Lousano não quis se pronunciar.
Entre os processos cuja idoneidade a Controladoria da União considerou duvidosa, há parcelamentos que beneficiam empresas do setor de comunicação. A Rede Record de Televisão, ligada à Igreja Universal do Reino de Deus, teve o débito de R$ 383,8 milhões parcelado em até 92 anos.
O departamento jurídico da empresa ditou à Folha a seguinte manifestação: "O Refis adveio de um dispositivo legal, ao qual a Record, como várias outras empresas, se enquadrou. Tudo foi feito dentro dos limites legais".
A Editora Três, gráfica em cujas rotativas é impressa a revista "IstoÉ", logrou dividir uma dívida de R$ 222,4 milhões em parcelas que, a depender do faturamento da empresa, pode se alongar por até 344 anos. Domingo Alzugaray, dono da editora, levanta dúvidas quanto aos números da Procuradoria da Fazenda: "Creio que devemos a metade disso".
Alzugaray acrescenta: "Não tem fundamento a alegação de fraude. Pagamos religiosamente pelo faturamento. O que acontece é que esse faturamento não é suficiente. O país está parado. O prazo de 344 anos é até otimista. Ou começamos a faturar novamente como há cinco, seis anos, ou não vamos pagar nunca. Vamos afundar em dívidas".



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