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HERANÇA MILITAR
Depoimentos de 36 testemunhas mostram que tática do terror foi decisiva no Araguaia
Ex-militares relatam tortura do Exército contra guerrilha
JOSIAS DE SOUZA
ANDRÉA MICHAEL
ENVIADOS ESPECIAIS A MARABÁ (PA)
"Quem tem coração aí?" Era
abril de 74. A pergunta intrigou
José Cícero Bezerra Filho. Incorporado ao Exército havia quatro
meses, ele recebia instruções para
sua primeira missão. Voara de
Marabá (PA) num avião Búfalo.
Acabara de aterrissar na base do
Exército em Xambioá (TO).
O local não tinha a aparência de
uma instalação militar. O comandante recepcionou os recrutas à
paisana. Escondido atrás de um
codinome ("doutor Ângelo"), falou sem rodeios: "Quem tem coração deve deixar pra trás. Aqui
ninguém tem coração".
Bezerra Filho despiu a farda.
Rebatizaram-no de "Jesse". Tornou-se sentinela em Xambioá.
Não precisou vigiar muito para
perceber que o naco de selva ocupado pelo Exército às margens do
rio Araguaia tornara-se um centro de torturas.
"Era batendo com cipó, choque,
fio ligado na orelha", recorda Bezerra Filho, 57. "Botava o cara no
chão e passava com a caminhonete por cima, o sujeito no meio,
vendo a roda passar do lado da cabeça. Quem tava na base via."
No último dia 21, Bezerra Filho e
outros 45 ex-militares reuniram-se no Hotel Itatocã, em Marabá.
Unia-os o fato de terem testemunhado a Guerrilha do Araguaia
(1972-1974). A reportagem da Folha entrevistou 36 dos presentes.
Os depoimentos, todos gravados, revelam: para prevalecer sobre os cerca de 70 guerrilheiros
que o PC do B mantinha enfurnados na selva amazônica, o Exército brasileiro humilhou, espancou
e deu choques elétricos em guerrilheiros e colonos; fuzilou e decapitou inimigos rendidos.
"Muita tortura"
O ex-soldado Adaílton Vieira
Bezerra, 50, fiscal fazendário em
Marabá, deu expediente nos porões do Araguaia como "enfermeiro" do Exército. Em Xambioá,
era chamado de "Paulo". "Assisti
a muita tortura", disse.
Resumiu assim uma das modalidades: "Preparavam a lama de
fezes e urina. Colocava-se uma tábua, duas latinhas, a pessoa ficava
em cima e tinha um fio para segurar. O fio tinha trechos desencapados. Aquele cabo recebia corrente elétrica vinda da bateria ou
do gerador".
O "enfermeiro" Vieira Bezerra
socorreu torturados. "Era quando
a pessoa tinha medo de falar. Ela
continuava apanhando, continuava a tortura, até ficar escornada, vazando sangue pela boca, pelo ouvido". Os "interrogatórios"
eram retomados. "Nova sessão de
tortura e nós trabalhávamos de
novo para reanimar."
O terror contaminou "investigações" feitas à margem da guerrilha. Em julho de 74, um destacamento do 52º BIS (Batalhão de Infantaria de Selva) voou de Marabá
para Tucuruí. Fez cerca de 30 prisioneiros, supostamente envolvidos com grilagem de terras. Espancaram-se todos.
Sargento à época, João Manoel
do Nascimento, 58, hoje instrutor
de auto-escola, contou: "Batiam
neles com uma espécie de borduna preparada com babaçu. As paredes eram espirradas de sangue.
Ainda tinham que cantar: "É um
tal de bate-bate, é um tal de pula-pula". Rodavam em torno de uma
mesa, dançando".
A gritaria dos presos de Tucuruí
ainda ressoa na memória do ex-recruta Ernani da Silva, 50. Seu
pai, Sandoval, um vereador do PC
do B, era um dos detidos. "No primeiro dia que meu pai estava preso, eu fui tirar guarda no quartel.
Levei ele várias vezes para a sala
de tortura. A gente ficava na porta
e escutava a tortura, os gritos. Sofriam telefones, pancadas no saco,
nos rins, nas costas."
Músico "terrorista"
O recruta Rosimar Nunes da Silva, 50, alistara-se em janeiro de
74. Queria ser músico de bandas
militares. Desceu à base de Xambioá, onde "ninguém tem coração". "Quando chegamos", rememorou, "um oficial disse: "Aqui
vocês não são soldados, são guerrilheiros. Podem tirar as fardas.
Não sabíamos se éramos soldados
ou terroristas disfarçados".
Segundo Eduardo Xavier de
Oliveira, 51, o enxoval de Xambioá resumia-se ao seguinte: "Camisa de manga comprida, calça
faroeste, botina, chapéu de palha". Os fuzis eram disfarçados
"dentro de uma saca de estopa".
Foi assim, camuflada, que a violência oficial bateu à porta dos colonos suspeitos de colaborar com
a guerrilha. "O capitão mandou
eu cortar meia dúzia de cipós", relatou Raimundo Lopes Silva, 57.
"Tinham trazido um pretão e
uma velhinha. Montaram no
lombo desse preto com o cipó. A
velhinha foi muito humilhada
também. Botaram ela dentro de
um buraco. Passou a noite toda,
chovendo. De manhã, tiraram a
velha toda encarquilhada. O que
foi feito dela eu não sei."
Conduzido à base de Xambioá
por ter reagido à abordagem de
um sargento chamado Anselmo,
um rapaz ousou dizer: "Lá no
Brasil, a coisa é diferente". O ex-recruta Antônio Adalberto Fonseca, 56, conta que "o preso" recebeu "um caderno, três canetas" e
uma ordem: "Tu vai escrever nesse caderno, até encher ele todo:
"Aqui também é Brasil'". Varou a
noite escrevendo, sob vara.
O Exército mantinha outras três
usinas de maus-tratos. A base da
Bacaba era a mais temida. Funcionava no quilômetro 68 da Transamazônica. Era, segundo o "enfermeiro" Vieira Bezerra, "o centro
de todo tipo de tortura".
Fuzilamento
Torturava-se também na "Casa
Azul". Pertencia ao DNER, mas
virou depósito de presos do Exército. Por fora, sobressaía a cobertura azulada. Por dentro, as manchas de vermelho. Ernani da Silva,
o recruta que conduzira o próprio
pai à sala de torturas, montou
guarda durante 30 dias na "Casa
Azul". Viu o entra-e-sai de algozes. "Vinha torturador de Manaus, de Brasília, do Rio. Lembro
de um, chamado Murilo. A maioria tinha nomes de guerra. Tinha
um sargento conhecido por Zorro. Usava um chapéu preto."
Na base de São Geraldo (PA),
separada de Xambioá pelas águas
do Araguaia, não havia tortura.
Ali, o Exército atuava de cara limpa, uniformizado. Quando prendia alguém, mandava para o inferno do outro lado do rio.
Embora não conduzisse inquéritos policial-militares nem formulasse denúncias, Xambioá
produzia sentenças. Numa noite
de outubro de 74, montando
guarda, José Cícero Bezerra Filho
viu uma delas sendo executada.
Munido de fuzil Fal, "doutor
Ângelo" executou Walquíria. Era
Walquíria Afonso Costa, 28, uma
das últimas guerrilheiras mortas.
Fora capturada na véspera. Estava
debilitada. Enterraram-na atrás
da enfermaria da base, ao lado da
cova de uma legenda da guerrilha,
Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão. Morto em fevereiro de 74,
teve a cabeça decepada.
O crânio de Osvaldão não foi o
único a ser apartado do pescoço.
O ex-soldado Raimundo Antônio
Pereira de Melo, 51, viu chegar em
Xambioá, em setembro de 74,
"um saco com três cabeças dentro". Àquela altura, mais do que
perder as cabeças, a militância do
PC do B já havia perdido a guerra.
"Anjinho"
O Exército farejara o rastro do
PC do B na selva no início de 72.
Os guerrilheiros resistiram, com
poucas baixas, a duas campanhas
armadas. José Ribamar da Silva,
53, disse que a soldadesca tateou a
mata sem preparo. "Foi o mesmo
que pegar um aluno do primário e
colocar na faculdade."
Humilhado pela sobrevivência
de um inimigo inferior, o Exército
abriu, já em 72, um porão em Marabá. Torturava-se no Tiro de
Guerra. Ali, Carmélio Araújo dos
Santos, 54, conheceu o "anjinho"
-armação metálica côncava,
com parafusos em volta. "Aperta
a cabeça e o cabra tem que dizer.
Eles levavam para um quarto e a
gente escutava só os gritos".
Em 73, abastecido com informações recolhidas por espiões
que infiltrara nas comunidades
locais, o Exército mapeou a guerrilha. Com a ajuda de colonos que
lhe serviram de guias na mata e o
recurso ao terror, esmagou-a.
Pelas contas do Ministério da
Justiça, 61 guerrilheiros foram
moídos na linha de desmontagem
operada pelo Exército na selva
amazônica.
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