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ARTIGO
"Seu" Frias
JOSÉ SERRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Naquela época, 1979, ainda
não havia fax nem e-mails.
Era uma véspera de feriado e
recebi em casa telefonema do
"seu" Frias: era necessário fazer um editorial sobre determinado assunto. Estava saindo do jornal e não podia me esperar. Analisamos o tema e
ele não teve dúvida: "Você está em casa? Não é tão fora de
mão, vou passar aí. Até eu
chegar você escreve."
O proprietário da Folha,
que supervisionava ele próprio a equipe de editorialistas
do jornal, tinha esse lado prático, que dispensava maiores
liturgias. Mas havia outros lados na sua personalidade e no
seu estilo, um verdadeiro poliedro, que me encantavam, e
que descobri logo nos primeiros meses de uma convivência de quase três décadas.
Ele era extremamente
pragmático sem ser oportunista. Tinha a inteligência
emocional dos que não sentem inveja e uma curiosidade
intelectual e prática de quem
tem prazer de aprender. Junto à isso, a austeridade, a discrição, a falta de vaidade, a capacidade de evitar ressentimentos e a valorização da
competência
dos outros.
Possuía convicções democráticas consolidadas e era
moderno antes
dessa palavra
tornar-se um
acessório em
geral sem significado.
Tais convicções se projetavam no seu
ambiente de
trabalho. Nos
quatro anos
em que escrevi
editoriais na Folha, jamais vi
alguém sofrer qualquer imposição de idéias, nem muito
menos doutrinas. Não raramente seu Frias era "derrotado" na discussão de algum
texto ou tema. Quando "ganhava" a discussão, era na base de lógica, argumentos e fatos, jamais de interesses disfarçados ou imposições hierárquicas.
Fui apresentado a ele por
Cláudio Abramo, no início de
1979. Eu era professor da
Unicamp e pesquisador do
Cebrap. Havia regressado ao
Brasil no ano anterior, depois
de 14 anos de exílio. Escrevi
então alguns artigos para a
pág. 3 da Folha e, em seguida,
fui convidado a integrar a
equipe de editorialistas, sem
largar os outros empregos.
Cláudio e Frias haviam decidido contratar intelectuais
para a área, aprofundando
um entrelaçamento entre o
mundo acadêmico e a Folha,
iniciado com a seção "Tendência/Debates". Na primeira conversa, chamei-o de dr.
Frias, e ouvi: "Deixe pra lá,
não sou doutor de nada".
A docência e a pesquisa correspondiam à minha vocação
e minha profissão. Mas escrever três ou quatro artigos por
semana, como opinião de um
grande jornal, foram para
mim na época uma novidade
excitante, e, acima, de tudo,
uma excepcional fonte de
aprendizado, indissociável da
presença do Octavio Frias.
Olhando em perspectiva, essa
experiência foi decisiva para
minha reintrodução ao Brasil,
depois passar, de forma compulsória, três quartos da vida
adulta no exterior.
O trabalho de escrever, e seguir tudo o que de mais relevante acontecia no país na fase final do regime militar, era acompanhado de duas atividades prazerosas: Os almoços, onde via e ouvia políticos
e personalidades da época, e
as conversas com "seu" Frias,
depois de terminados os trabalhos do dia, para mim fontes de infinito aprendizado
sobre o país e a vida.
Nelas, ouvi várias das histórias que fizeram parte do livro
a seu respeito, do Engel Paschoal. Aliás, um bom livro. Eu
aprendia com ele também sobre imprensa -via como supervisionava o jornal, como
trabalhava com as pessoas e
com as notícias. Ele era o melhor repórter da Folha, sempre atento à novidade e ao essencial dos fatos e as idéias novas, como a do Datafolha.
Só deixei o trabalho quando
fui para o governo Montoro,
em 1983. Aliás, o Frias e o
Montoro, pessoas tão diferentes, tinham uma coisa em comum: não perdiam seu tempo
falando mal de alguém.
Deixei o jornal mas permaneceram a
convivência e a
amizade com
"seu" Frias,
que resistiu à
complexa e
sensível relação entre um
jornal como a
Folha e um político, já que eu
me tornara um
deles, e por isso
objeto de notícias, críticas e
avaliações.
Desde 1983,
sempre que não exerci funções no Executivo, fui colunista semanal na página dois
da Folha. A cada mês ouvia
seus elogios e suas críticas;
exigente, sempre querendo
mais e melhor. Nunca senti
qualquer insinuação de desagrado, pelo contrário, até estimulava quando eu escrevia
para outros jornais, concorrentes de peso. Sempre o ouvi
antes de tomar qualquer decisão importante sobre meu futuro político, embora nem
sempre seguisse sua opinião.
Além da sinceridade e do
afeto que demonstrava, ele
sabia ir ao essencial do assunto, e, acima de tudo, falar com
franqueza. Também sabia separar as coisas e respeitar o
leitor do seu jornal.
Octavio Frias era o último
dos mortais que gostava de
contar vantagem. Mas havia
uma exceção: quando falava
da independência do seu jornal, que abria suas janelas para opiniões diferentes e até
contraditórias, sem preconceito e também sem medo.
Que, no noticiário, não tinha
amigos nem inimigos.
Aliás, aqui se define uma assimetria entre ele e o seu jornal. Octavio Frias tinha amigos, muitos. Inimigos não. Seria pouco prático. Vamos sentir muita falta dele.
JOSÉ SERRA , 65, economista, é o governador
do Estado de São Paulo. Foi senador pelo
PSDB-SP (1995-2002), ministro do Planejamento e da Saúde (governo FHC) e prefeito da
cidade de São Paulo (2005-2006)
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