São Paulo, segunda-feira, 01 de novembro de 2004

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NEGATIVO

Para Renato Lessa, diminui discussão sobre rumos do país; enfoque da imprensa no seu "comportamento" prejudica Marta

Desideologização prejudica política, afirma intelectual

DO ENVIADO ESPECIAL A CAXAMBU

A diferença entre a boa avaliação administrativa de Marta Suplicy (PT) e os votos que efetivamente recebeu deveu-se em parte à apresentação privilegiada de "comportamentos" da petista, retratados de forma negativa na imprensa paulistana. É o que diz o cientista político Renato Lessa, professor do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro).
"A coisa do namorado, do Luis Favre. Ele é sempre apresentado negativamente. A Marta não pode se separar do marido, não pode ter um namorado argentino ou francês. Ele é sempre apresentado como um sujeito semiclandestino", diz o cientista político.
Para Lessa, os embates eleitorais no país têm piorado. "As eleições vêm sendo crescentemente despolitizadas e desideologizadas. Nos últimos dez, 15 anos, mesmo quando os candidatos vêm de campos ideológicos diferentes, a apresentação deles com freqüência escamoteia a diferença."
A seguir, trechos da entrevista.
 

Folha - Como se explica que uma prefeita com 48% de ótimo e bom na avaliação da administração possa vir a perder uma eleição?
Renato Lessa -
É um fenômeno curioso a dissociação de uma avaliação de desempenho de uma avaliação eleitoral. Um aspecto relevante para entender isso é o modo pelo qual a imagem dos candidatos é produzida e acaba sendo digerida pela opinião pública. No caso da Marta, até onde posso observar, a avaliação e a apresentação nos principais órgãos de imprensa de São Paulo -até por aqueles com maior penetração popular- é em grande medida negativa. Enfatizando dimensões do aspecto comportamental, menos do que dimensões do aspecto administrativo. O fato de ser mulher, de usar roupas caras, de ter um comportamento muito afirmativo. Isso aparece de maneira negativa. Não se trata de discutir se é ou não verdade, se a imprensa está certa ou errada.
Acaba decantando formas de percepção. Quando o eleitorado começa a avaliar informações sobre o que acontece na cidade, já vão ser tratadas de maneira que certos preconceitos e enquadramentos já estão definidos.

Folha - O fato de ser mulher influencia nisso?
Lessa -
Não para o eleitorado inteiro, mas para um segmento do eleitorado que pode ser suficiente para explicar essa defasagem entre bom desempenho administrativo e desempenho eleitoral -porque a diferença também não é muito grande. Estamos falando de um resíduo. Não é que o eleitorado enlouqueceu. Estamos tentando explicar a exceção.
A coisa do namorado, do Luis Favre. Ele é sempre apresentado negativamente. A Marta é uma mulher que não pode se separar do marido, não pode ter um namorado argentino ou francês. Ele é sempre apresentado como um sujeito semiclandestino. Como cientista social, sou obrigado a tratar isso como uma imagem socialmente construída. Não é loucura supor que possa ter algum efeito numa parcela do eleitorado que pode ajudar a explicar essa diferença. Outro resíduo possível é o de um eleitor otimista. Que bom, São Paulo tem uma boa prefeita, mas acho que o Serra será melhor. Isso não é loucura.

Folha - Como se explica a falta de engajamento da militância petista? É resultado do governo Lula?
Lessa -
Isso é uma evidência que mostra a normalidade do PT enquanto partido político. As campanhas eleitorais em sociedades de massa já com uma certa regularidade eleitoral têm um fortíssimo componente de militância contratada. Mas, se ficar nisso, é uma visão muito cínica e conformada com os rumos que a vida acabou tomando.
Há coisas subjacentes que têm maior gravidade. É o fato de que as eleições vêm sendo crescentemente despolitizadas e desideologizadas. Antes mesmo do Lula. Nas eleições no Brasil nos últimos dez, 15 anos, mesmo quando os candidatos vêm de campos ideológicos diferentes, a apresentação deles com freqüência escamoteia a diferença. Criou-se o mito de que o eleitorado brasileiro não suporta o embate e que tende a privilegiar candidatos moderados, convergindo para o centro. Mas o eleitorado não tem nenhuma característica natural -ele é construído num processo de aprendizagem que tem como ator fundamental o comportamento de partidos e candidatos. É uma roda. O comportamento dos candidatos gera cognição política despolitizada, e essa despolitização exige que, na eleição seguinte, a estratégia eleitoral a leve em conta.
Isso começa com a profissionalização das direções de campanha. Passa-se a agir como um bom vendedor que se dirige a seu público consumidor a partir das expectativas que esse público apresenta para ele. No fundo, eu pergunto para você o que você gostaria de ouvir.

Folha - Isso é ruim?
Lessa -
Nostalgicamente, vou dizer que é. É ruim também do ponto de vista republicano, de quem acredita ainda na política, na capacidade de organização da sociedade de modo minimamente racional, na capacidade de discutir projetos, saídas para o país.


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