São Paulo, sexta-feira, 01 de dezembro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MEMÓRIA
A vitória do barão do Rio Branco na questão do Amapá

RUBENS RICUPERO
COLUNISTA DA FOLHA

Faz hoje exatamente um século. Berna coberta de neve, o conselheiro Graffina, do governo suíço, visitava o barão do Rio Branco na vila Trautheim, sua residência, pouco antes do meio-dia do sábado. Após breve discurso, entregava os dois volumes do laudo arbitral pelo qual a Suíça dava razão ao Brasil no litígio com a França a respeito do Território do Amapá.
No dia seguinte, com o estilo característico da época, Rui Barbosa resumia em "A Imprensa" a reação do país: "Hoje, literalmente do Amazonas ao Prata, há um nome que parece irradiar infinitos resplendores por todo o círculo do horizonte: o do filho do emancipador dos escravos, que agrega à glória paterna a de reintegrador do território nacional".
Não se tem idéia, nos dias que correm, do que significava então a um país sem poder como o Brasil enfrentar uma das três ou quatro mais fortes e agressivas potências do mundo como a França. Vivia-se a fase áurea do imperialismo europeu, quando a dívida externa era cobrada a tiros de canhão e os europeus não hesitavam em recorrer à violência para promover interesses econômicos na China ou na África do Sul, destacando-se os franceses na Indochina, no Extremo Oriente, no Marrocos e resto da África do Norte. Não existiam as Nações Unidas nem as alianças protetoras como a que mais tarde se firmou com os Estados Unidos. Imperava sem contestação a máxima de La Fontaine: "A razão do mais forte é sempre a melhor".
Poucos anos antes, a descoberta de ouro no Calçoene provocara choques armados com os franceses, de que resultaram vários mortos. Mais ou menos pela mesma época, a Inglaterra ocupara a ilha da Trindade. O atentado despertara enorme agitação pública no Brasil. Sempre cauteloso e preocupado com o efeito de demonstração que o episódio poderia ter no ânimo da França, o barão sugeria a nosso representante em Londres "recordar aos guerreiros da nossa terra que os ingleses tomaram pela força até ilhas francesas". E concluía assustado: "Há muito louco solto por lá".
Prevaleceram felizmente os direitos brasileiros na Trindade graças à mediação do rei de Portugal e conseguiu-se assinar com a França em 1897 compromisso para submeter o problema do Amapá à arbitragem do governo federal suíço.
Designado como defensor do ponto de vista brasileiro, Rio Branco iria repetir o padrão de concentração total e exaustiva que havia empregado, cinco anos antes, na questão de Palmas ou das Missões e que se converteria na sua marca registrada de trabalho. Sem horário para comer ou dormir, buscando freneticamente documentos e mapas em arquivos, correndo contra o relógio para concluir, imprimir e entregar dentro do prazo a primeira memória e a réplica, ele mesmo confessaria a Eduardo Prado: "Pensei em afrouxar de todo esta vez... Fiquei fora de combate... trocando as palavras quando falava ou tentava escrever e invertendo as sílabas". Confirmava, assim, a descrição que dele deixou o internacionalista americano Basset Moore: "A mais completa combinação de erudito e estadista que conheci".
O problema do Amapá era mais complicado que o de Missões não só por enfrentarmos do outro lado uma das maiores potências mundiais, mas porque nem sempre a coerência e a firmeza haviam caracterizado a posição brasileira no curso da controvérsia. A questão básica era a identificação correta do rio "Yapoc ou de Vicente Pinzón", indicado como limite no Tratado de Utrecht de 1713. Para o Brasil tratava-se do atual Oiapoque; para os franceses deveria ser um rio mais ao sul, como o Araguari. O que estava em jogo no fundo era o controle da boca do Amazonas e o risco de uma presença imperialista européia na bacia amazônica.
Graças à qualidade do trabalho do barão e à isenção da Confederação Helvética, o Brasil teve completo ganho de causa, decepcionando os franceses, até o fim esperançosos de que "a pêra fosse cortada ao meio". Despeitado, o representante francês tomou o trem de Paris, sem cumprimentar Rio Branco, como tinha feito fidalgamente o derrotado advogado argentino na disputa das Missões, Estanislao Zeballos.
O resultado do litígio ratificava a sabedoria do juízo que, anos antes, o barão do Rio Branco manifestara ao então chanceler Carlos de Carvalho: "A meu modo de ver, os meios persuasivos são os únicos a que deve recorrer uma nação como o Brasil, que não dispõe ainda de força suficiente para impor sua vontade a uma grande potência militar e sair-se bem de negociações delicadas como esta".
Como naquela primeira fase da internacionalização da economia, não é verdade que a globalização acabe com a soberania, mas sim que ela fortalece desmesuradamente a soberania de alguns em detrimento de outros. Permanece válido, entretanto, o exemplo do servidor do Estado modelar que foi Rio Branco: com firmeza e inteligência é sempre possível defender eficazmente a soberania, apesar da inferioridade de poder.


Rubens Ricupero, 63, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O Ponto Ótimo da Crise" (editora Revan).


Texto Anterior: Religião: Com úlcera, d. Paulo é internado em S. Paulo
Próximo Texto: Internet: Preso ex-policial que usava "e-mail" de FHC
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.