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MEMÓRIA
A vitória do barão do Rio Branco na questão do Amapá
RUBENS RICUPERO
COLUNISTA DA FOLHA
Faz hoje exatamente um século. Berna coberta de neve,
o conselheiro Graffina, do governo suíço, visitava o barão do Rio
Branco na vila Trautheim, sua
residência, pouco antes do meio-dia do sábado. Após breve discurso, entregava os dois volumes
do laudo arbitral pelo qual a Suíça dava razão ao Brasil no litígio
com a França a respeito do Território do Amapá.
No dia seguinte, com o estilo
característico da época, Rui Barbosa resumia em "A Imprensa" a
reação do país: "Hoje, literalmente do Amazonas ao Prata,
há um nome que parece irradiar
infinitos resplendores por todo o
círculo do horizonte: o do filho do
emancipador dos escravos, que
agrega à glória paterna a de reintegrador do território nacional".
Não se tem idéia, nos dias que
correm, do que significava então
a um país sem poder como o Brasil enfrentar uma das três ou
quatro mais fortes e agressivas
potências do mundo como a
França. Vivia-se a fase áurea do
imperialismo europeu, quando a
dívida externa era cobrada a tiros de canhão e os europeus não
hesitavam em recorrer à violência para promover interesses econômicos na China ou na África
do Sul, destacando-se os franceses na Indochina, no Extremo
Oriente, no Marrocos e resto da
África do Norte. Não existiam as
Nações Unidas nem as alianças
protetoras como a que mais tarde se firmou com os Estados Unidos. Imperava sem contestação a
máxima de La Fontaine: "A razão do mais forte é sempre a melhor".
Poucos anos antes, a descoberta de ouro no Calçoene provocara choques armados com os franceses, de que resultaram vários
mortos. Mais ou menos pela mesma época, a Inglaterra ocupara a
ilha da Trindade. O atentado
despertara enorme agitação pública no Brasil. Sempre cauteloso
e preocupado com o efeito de demonstração que o episódio poderia ter no ânimo da França, o barão sugeria a nosso representante
em Londres "recordar aos guerreiros da nossa terra que os ingleses tomaram pela força até ilhas
francesas". E concluía assustado:
"Há muito louco solto por lá".
Prevaleceram felizmente os direitos brasileiros na Trindade
graças à mediação do rei de Portugal e conseguiu-se assinar com
a França em 1897 compromisso
para submeter o problema do
Amapá à arbitragem do governo
federal suíço.
Designado como defensor do
ponto de vista brasileiro, Rio
Branco iria repetir o padrão de
concentração total e exaustiva
que havia empregado, cinco anos
antes, na questão de Palmas ou
das Missões e que se converteria
na sua marca registrada de trabalho. Sem horário para comer
ou dormir, buscando freneticamente documentos e mapas em
arquivos, correndo contra o relógio para concluir, imprimir e entregar dentro do prazo a primeira memória e a réplica, ele mesmo confessaria a Eduardo Prado:
"Pensei em afrouxar de todo esta
vez... Fiquei fora de combate...
trocando as palavras quando falava ou tentava escrever e invertendo as sílabas". Confirmava,
assim, a descrição que dele deixou o internacionalista americano Basset Moore: "A mais completa combinação de erudito e estadista que conheci".
O problema do Amapá era
mais complicado que o de Missões não só por enfrentarmos do
outro lado uma das maiores potências mundiais, mas porque
nem sempre a coerência e a firmeza haviam caracterizado a
posição brasileira no curso da
controvérsia. A questão básica
era a identificação correta do rio
"Yapoc ou de Vicente Pinzón",
indicado como limite no Tratado
de Utrecht de 1713. Para o Brasil
tratava-se do atual Oiapoque;
para os franceses deveria ser um
rio mais ao sul, como o Araguari.
O que estava em jogo no fundo
era o controle da boca do Amazonas e o risco de uma presença
imperialista européia na bacia
amazônica.
Graças à qualidade do trabalho do barão e à isenção da Confederação Helvética, o Brasil teve
completo ganho de causa, decepcionando os franceses, até o fim
esperançosos de que "a pêra fosse
cortada ao meio". Despeitado, o
representante francês tomou o
trem de Paris, sem cumprimentar Rio Branco, como tinha feito
fidalgamente o derrotado advogado argentino na disputa das
Missões, Estanislao Zeballos.
O resultado do litígio ratificava
a sabedoria do juízo que, anos
antes, o barão do Rio Branco
manifestara ao então chanceler
Carlos de Carvalho: "A meu modo de ver, os meios persuasivos
são os únicos a que deve recorrer
uma nação como o Brasil, que
não dispõe ainda de força suficiente para impor sua vontade a
uma grande potência militar e
sair-se bem de negociações delicadas como esta".
Como naquela primeira fase
da internacionalização da economia, não é verdade que a globalização acabe com a soberania, mas sim que ela fortalece
desmesuradamente a soberania
de alguns em detrimento de outros. Permanece válido, entretanto, o exemplo do servidor do Estado modelar que foi Rio Branco:
com firmeza e inteligência é sempre possível defender eficazmente a soberania, apesar da inferioridade de poder.
Rubens Ricupero, 63, secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento)
e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O Ponto Ótimo
da Crise" (editora Revan).
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