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JANIO DE FREITAS
Liberdade incondicional
Muitos juristas se opõem à reforma de privilégios ao preso; a realidade é o nosso contra-argumento
TODOS OS dias há casos assim
no Rio, em São Paulo, em Minas, onde quer que o crime
violento se propague como meio de
vida da adolescência e da mocidade
no Brasil. Como não fica bem, para
um jornalista, falar de criminalidade
urbana que não seja a do Rio, tomemos dois momentos do mesmo dia
carioca.
Foragido desde a prisão do seu
companheiro no assalto em que foi
assassinada a socialite Ana Cristina
Johannpeter, Marcelo de Mello Valério entregou-se à polícia por insistência da mãe. De quem se trata?
Morador em apartamento da Cruzada São Sebastião, criada no Leblon por d. Helder para dar moradia
direita a favelados daquela mesma
área, Marcelo está com 21 anos, tem
o ensino médio completo, e nunca o
usou para obter um trabalho convencional. Mas seu currículo profissional já é farto e promissor, embora
dois imprevistos.
O primeiro em 2003, quando um
mau acaso, e não propriamente a falta de prática, levou-o a ser preso como autor de um assalto. Só esteve
preso, porém, por cerca de ano e
meio. O segundo imprevisto foi no
meio do ano, quando estava na companhia de oito amigos, todo o grupo
com passagens pela polícia por crimes diversos, e policiais chegaram
de repente. Acharam quantidade interessante de tóxico com a rapaziada. Todos presos, mais uma vez.
Ex-detento por assalto, preso há
quatro meses por "associação ao tráfico", Marcelo só pôde participar do
assalto e do assassinato de Ana Cristina Johannpeter por estar livre e
em condições de exercer sua atividade profissional.
Como assim? Mês e meio depois
da segunda prisão, o ex-detento por
assalto e preso por tráfico foi agraciado com relaxamento da nova prisão e liberdade para responder ao
processo usufruindo, ativamente,
das ruas e praias freqüentadas por
tantas vítimas potenciais na Zona
Sul carioca. Decisão de juiz relapso?
Não. Outra vez, privilégios de lei.
Bem pertinho da Cruzada e da delegacia do Leblon (são velhas vizinhas), o mau acaso passou de Marcelo a dois ocupantes de uma moto
que toparam com outra moto, e logo
mais uma, porém estas duas da PM.
Os rapazes estavam trabalhando
desde cedo: acabavam de fazer um
bem-sucedido assalto a turistas na
Lagoa, quando foram apontados ao
primeiro PM, mas antes já haviam
dado boas-vindas a outros turistas
na praia. Um dos rapazes era estreante. Não na profissão, na polícia.
João Ayrton Gonçalves, seu companheiro, já tem currículo oficial. Foi
preso três vezes por furto. Foi preso
mais três vezes, por "roubo à mão
armada". E preso mais uma vez: por
seqüestro à mão armada e retenção
da vítima em cárcere privado. Um ás
da profissão, sem dúvida.
O conjunto da obra de João Gonçalves rendeu-lhe uma condenação
que começou a cumprir em 1988.
Mas nem três assaltos à mão armada
nem seqüestro nem cárcere privado
da vítima o impediram de estar, apenas oito anos depois de ser preso e
condenado, em intenso exercício da
sua vocação.
Muitos criminalistas e juristas
opõem-se à reforma de privilégios,
por exemplo, como a chamada "progressão da pena", que a rigor é redução da pena a um sexto, em nome de
bom comportamento do preso. Trazem do direito argumentos poderosos. Nosso contra-argumento de leigos é só a realidade.
E, no Brasil, a realidade perde
sempre, até que engolfa tudo, insuportável, e a indignação explode,
acusações para todos os lados, exigência de solução imediata -e até a
próxima. A realidade, no entanto, já
será outra, muito maior, muito pior,
porque esta é a lei das más realidades deixadas a si mesmas: em liberdade incondicional.
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