São Paulo, terça-feira, 02 de janeiro de 2001

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JUDICIÁRIO

Primo de Collor, responsável por várias decisões contrárias ao governo, vai assumir presidência do STF em maio
Planalto teme a gestão de Marco Aurélio no Supremo

ANDRÉA MICHAEL
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Há um clima de "profunda irritação" na praça dos Três Poderes, em Brasília. O motivo: a atuação do ministro Marco Aurélio de Mello, vice-presidente do STF (Supremo Tribunal Federal).
Em maio do ano que vem, pelo critério da antiguidade que rege a sucessão no comando do STF, Marco Aurélio passará de vice a presidente. Terá, então, mais do que o seu próprio voto para incomodar o governo, como fez no caso Banespa, ao confirmar a suspensão da privatização do banco, em julho.
A presidência dará ao ministro poderes para definir a pauta de votação do Tribunal e a prerrogativa de cassar liminares concedidas por outros ministros -um dissabor que Marco Aurélio amargou no próprio caso Banespa, quando o presidente do STF, ministro Carlos Velloso, ao voltar das férias, derrubou a decisão de seu vice e liberou a venda do banco estatal paulista.
Na iminência de enfrentar um ministro de conduta imprevisível e com mais poderes, o Planalto vive em clima de "profunda irritação". A última de Marco Aurélio foi criticar em público a lei aprovada pelo Congresso para flexibilizar a quebra do sigilo bancário. "A Constituição Federal encerra a privacidade e revela que só pode ser afastada por ato judicial", declarou o ministro.
O ataque levou os principais assessores do presidente da República a retardarem a sanção da nova lei. Eles temiam que, como é comum em períodos de férias, o vice assumisse a presidência do STF e acolhesse pedidos em caráter liminar para considerar a nova lei inconstitucional.

Jogo político
Aos leigos no jogo político, o Palácio do Planalto apresentou uma justificativa técnica para retardar a sanção. Decidiu-se priorizar a elaboração do decreto que regulamentará a lei. Portanto, a assinatura do presidente só sai em janeiro, quando Marco Aurélio estará passando férias no Rio de Janeiro.
"Não quis dividir o período de recesso com o ministro Velloso para evitar novos desgastes", disse, numa alusão à sua decisão sobre o Banespa posteriormente cassada por Velloso.
Nomeado pelo primo Fernando Collor de Mello, em 1990, Marco Aurélio de Mello é o único membro do STF oriundo da Justiça do Trabalho nos mais de cem anos de existência da Corte suprema. De 1981 a 1990, ele foi ministro do TST (Tribunal Superior do Trabalho). Inverteu o jogo e, em vez de ser chamado de ministro "primo de Collor", recebeu a alcunha de "ministro da oposição".
Em outubro, no entanto, Marco Aurélio emitiu sinais de que não pretendia levar adiante a carreira de "ministro da oposição". Votou contra o aumento de 11,98% para os funcionários do Judiciário. E surpreendeu os colegas de plenário ao mudar de posição e votar pela manutenção na Lei de Responsabilidade Fiscal do teto para gastos com pessoal nos três Poderes e no Ministério Público -num placar de seis votos a cinco que deu vitória ao governo.
"Não sou de situação nem de oposição. Refleti, evoluí e mudei o meu voto, o que demonstra que não sou uma pessoa teimosa, que vota costumeiramente contra o governo simplesmente por votar", disse Marco Aurélio.
Conhecido por ser um ministro acessível, não se nega a receber advogados para ouvir suas teses. Em conversa com um deles, o advogado Roberto Caldas, que ganhou a causa para corrigir em 68,9% os valores do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, Marco Aurélio declarou: "Veja, Roberto. No Tribunal Superior do Trabalho, eu era considerado um conservador. E agora, aqui no Supremo, me chamam de liberal".

Polêmico
Liberal e polêmico, já disse a colegas que concederia a liberdade a Nicolau dos Santos Neto num eventual habeas corpus submetido a seu julgamento. O ex-juiz é acusado de ter se beneficiado do desvio de R$ 169,5 milhões na construção do Fórum Trabalhista do TRT de São Paulo. Também pesam sobre o réu acusações de lavagem de dinheiro, sonegação fiscal e formação de quadrilha.
Conhecedor das posições do ministro liberal, o advogado Antonio Carlos de Almeida Castro esperou o recesso de julho para entrar com um pedido de habeas corpus em nome do banqueiro Salvatore Cacciola.
"O advogado que trabalha nos tribunais superiores tem obrigação de saber qual o posicionamento de todos os ministros da Casa", afirmou Almeida Castro. "Conhecer com segurança quem é conservador ou liberal."
Marco Aurélio deu liberdade ao banqueiro acusado de se beneficiar de uma operação de socorro em janeiro de 1999, que causou um prejuízo de R$ 1,6 bilhão aos cofres públicos. Cacciola fugiu e agora vive em Roma.
A estratégia de buscar as decisões de Marco Aurélio no recesso é conhecida. Dos 69 pedidos de habeas corpus apresentados ao STF em julho, 42 chegaram ao distribuidor entre os dias 1º e 15 daquele mês, quando o vice despachava como presidente.
Marco Aurélio enfrentou muitas críticas ao deferir um pedido da Incal Incorporações, a construtora responsável pelas obras do prédio superfaturado do Fórum Trabalhista de São Paulo. Como consequência de sua decisão, ficou suspensa a determinação do Tribunal de Contas da União de cobrar dos réus o dinheiro público desviado da obra.
Outro momento de conflito com a opinião pública: acolheu pedido do senador cassado Luiz Estevão, que se negava a depor na Polícia Federal sobre sua participação no desvio do dinheiro da obra superfaturada do TRT-SP.
"Ele não era mais senador. Portanto, não tinha o foro privilegiado do STF. O correto era, como se fez depois, que ele prestasse depoimento no tribunal de origem do caso, em São Paulo", afirma Marco Aurélio.

Mal-estar
Oficialmente, o governo federal tenta encobrir o mal-estar causado pelas polêmicas decisões do ministro. "É um juiz arrojado, e em alguns casos isso ajuda a contribuir para o avanço da Justiça", afirma o advogado-geral da União, Gilmar Mendes.
No Palácio do Planalto, a aposta é que Marco Aurélio não usará o poder para expressar posições políticas. Pelo contrário, deverá se investir de uma atuação cada vez mais discreta.
Por via das dúvidas, há precauções em curso. Em novembro, foi editada a medida provisória 1984, que amplia as possibilidades para o Poder Público questionar as decisões do presidente do Supremo.
No Congresso Nacional, tramita um projeto de lei, assinado pelo senador Lúcio Alcântara (PSDB-CE), que, se for aprovado, vai modificar o mandato dos presidentes de tribunais. "Isso não tem nada a ver com o Marco Aurélio. É uma proposta para viabilizar a aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal também no Judiciário", afirmou o senador.
A proposta do projeto de lei de número 276, de 2000, é igualar os mandatos dos presidentes de tribunais ao ano fiscal -portanto, de 1º de janeiro a 31 de dezembro. No caso do STF, como a posse é em maio, haveria um mandato tampão até o final de 2001. Nesse caso, Marco Aurélio assumiria somente em 2002.
Em conversas com amigos, o ministro confessou seus temores. Não acredita que o Palácio do Planalto jogue para valer a fim de impedir sua posse. Mas está preocupado e até tentou baixar o tom das críticas. Em vão. Numa solenidade na Embaixada na Espanha, em que FHC recebeu o rei Juan Carlos, Marco Aurélio aproveitou para manifestar seu descontentamento. Ao apertar a mão do presidente, disse: "O senhor vê: as intrigas continuam".



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