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Um mês após posse de petista, poder se
habitua com expedientes mais longos,
repúdio ao isolamento e informalidade
Estilo Lula
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
A cadeira vermelha, tirada do
depósito, é a única mudança visível no gabinete do terceiro andar
do Palácio do Planalto.
O vice José Alencar insiste em
que Luiz Inácio Lula da Silva troque a posição dos móveis deixada
por Fernando Henrique Cardoso
e faça a mesa de trabalho da Presidência se voltar para o janelão que
dá para o horizonte verde de Brasília e as águas do Lago Paranoá.
Por ora, Lula só cuidou de trocar a cadeira de FHC, que lhe rendia dores na coluna, e pediu que
instalassem uma máquina de café
expresso perto do gabinete -cujo consumo ele tenta moderar e
revezar com xícaras de chá por
ordem do médico da presidência.
No primeiro mês de mandato,
não levou fotos da família nem
objetos pessoais além da pasta
preta antiga, agora carregada pelo
ajudante de ordens Rui Mesquita.
A falta de pressa com mudanças
na decoração do gabinete contrasta com a determinação de
mudar o ritual de poder e governar de um jeito diferente de todos
os ocupantes anteriores do Planalto desde Juscelino Kubitschek,
que fundou Brasília.
Pela origem pobre de ambos
-Juscelino era filho de caixeiro-viajante e andou descalço por falta de sapatos na infância, enquanto Lula migrou do Nordeste com a
mãe e sete irmãos a bordo de um
pau-de-arara- , pelo humor e o
apego à informalidade, a comparação soaria óbvia.
Mas alguns dos interlocutores
mais próximos do presidente negam que ele tenha como modelo
algum outro governante do Brasil
ou de fora dele. Autodidata, Lula
quer inventar um novo estilo de
governo.
BLEFE NO TRUCO E
EXERCÍCIO MATINAL
Na tentativa de entender como
o novo estilo vai funcionar, os
mais íntimos recorrem a três características de Lula: 1) ele é um
exímio jogador de truco, jogo de
cartas que cultiva a astúcia e a arte
do blefe, segundo os entendidos;
2) o presidente é um ser intuitivo
e costuma surpreender pela forma de raciocinar; 3) Lula sabe ouvir e geralmente pergunta muito,
embora faça questão de ter a última palavra nas discussões.
Na prática, a rotina do poder
tem agora expedientes mais longos. Lula dorme pouco, acorda
sem despertador e é recepcionado
logo cedo no Planalto pelo chefe
da Casa Civil, José Dirceu, e o chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Jorge Félix.
O presidente não deixa o palácio nem para o almoço e costuma
carregar trabalho para casa.
A pessoa que passa mais tempo
a seu lado é a arquiteta, amiga e
superdiscreta Clara Ant, recém-nomeada assessora especial.
Cabe a ela anotar as providências a serem tomadas a partir de
cada audiência de Lula, cada conversa do presidente. Se o poder
fosse um filme, Clara seria uma
espécie de "continuísta".
Outra inovação na agenda é a
frequência dos contatos com o secretário de Comunicação (e também de Gestão Estratégica), Luiz
Gushiken. A ele são reservados
dois despachos diários com o presidente, na companhia do secretário de Imprensa, Ricardo Kotscho, e do porta-voz André Singer.
Ainda de manhã, Lula gosta de
surpreender o grupo com notícias
que ouviu enquanto praticava
exercícios de esteira no Palácio da
Alvorada, outra recomendação
médica. Surpreende também pelo
uso de algumas expressões que
adota. Exemplo: dias atrás, Lula se
encantou com sine qua non e
usou a expressão em latim que expressa causa para pontuar diversas de suas frases.
MEDO DO ISOLAMENTO,
NÃO À MOSCA AZUL
Além de Gushiken e Dirceu, integra o núcleo mais forte de poder
petista o secretário-geral da Presidência, Luiz Dulci, a quem cabe
também escrever os discursos de
Lula, no papel de ghost-writer.
O grupo costuma se reunir às
segundas de manhã, às vezes na
companhia do ministro Antonio
Palocci Filho (Fazenda) e do presidente do PT, José Genoino.
Na quarta-feira passada, ao voltar do primeiro giro pela Europa,
o presidente disfarçou o deslumbramento que seria natural numa
trajetória tão incomum como a
sua, de migrante do sertão de Pernambuco a chefe do Planalto, recebido como líder em outros palácios do mundo.
"A mosca azul não me mordeu,
não vou deixar", prometeu o presidente petista a um dos integrantes do núcleo do poder.
Os sinais deixados ao longo dos
primeiros dias depois da posse indicam que Lula fará questão de
encarar a chamada "liturgia" do
cargo sempre com um pé atrás.
Pelo menos na parte do ritual em
que o poder vira sinônimo de
muita formalidade e solidão.
Depois de tentar convencer Lula
a não se expor tanto nos contatos
públicos, a segurança do Planalto
resolveu aumentar o número de
homens no portão do Alvorada,
onde, de manhã e à noite, populares têm a chance de falar com o
presidente e até de abraçá-lo
-uma cena inédita ali até então.
Antes de completar a primeira
quinzena no cargo, Lula deixou
claro que isso faria parte da rotina
do poder: "Gosto disso, tenho
medo do isolamento".
Procurado na última segunda-feira, Duda Mendonça, marqueteiro da campanha de Lula, não
quis comentar o que há de cálculo
político nos contatos de Lula com
gente do povo.
O presidente já deixou claro a
seus ministros que não só ele, mas
o governo inteiro deve manter
contato com as ruas. Faz parte do
estilo. Em meio à caravana ao semi-árido, Lula deu a orientação:
"Você decide de acordo com o
chão que seus pés pisam".
No primeiro mês de governo, o
"pé no chão" estimulado por Lula
se confundiu com conservadorismo econômico. Foi o caso do aumento em meio ponto percentual
da taxa de juros. "Às vezes o nosso
filho está com febre e você tem de
receitar o mesmo remédio do médico anterior", explicou Lula no
dia seguinte à reunião do Copom
(Comitê de Política Monetária).
EM PÚBLICO, PRESIDENTE
PARA OS COMPANHEIROS
Os amigos e velhos companheiros ainda o chamam de Lula. Ou
de Luiz Inácio, no caso de Frei
Betto (Carlos Alberto é como Lula
o chama). O "presidente", porém,
passou a ser obrigatório quando
estão em público.
Integrante do time de assessores
especiais, Frei Betto se espantou
com o volume de pedidos de empregos e receitas para combater a
bursite do presidente, que marcaram os primeiros dias dos novos
ocupantes do palácio.
Visto de dentro pelos novatos
no poder, o Planalto é como uma
escola nova. Eles seriam como
alunos a percorrer corredores
ainda desconhecidos e de uniforme novo: muitos dos assessores
de Lula só usavam terno em ocasiões muito especiais.
Mas o cerimonial do palácio
ainda exige traje social até dos visitantes. É uma regra. Exceções
têm de ser negociadas, apesar do
clima de informalidade notado
por José Henrique Nazareth, funcionário há 41 anos do Planalto.
"Acabou a formalidade da gravatinha, aquela formalidade severa", observa o servidor.
Se Lula ainda parece aprender a
governar, seu estilo já arranca elogios de antigos donos do poder. O
senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA) aprovou: "Ele não
é sociólogo, não tem diploma de
nível superior, mas se sai muito
bem", disse. ACM reserva para
José Dirceu nada menos do que o
adjetivo "brilhante". Em troca, é
tratado como cacique político.
O deputado Delfim Netto (PPB-SP) até enxerga sinais das mudanças que o PT prometeu na campanha. "Os alicerces macroeconômicos são fortalecidos, mas a casa
em cima deles é diferente, mais
próxima das pessoas", nota.
Se os sinais de mudança do modelo econômico foram sentidos
por pouca gente além de Delfim e
se as ações nas áreas de combate à
fome e segurança são ainda boas
intenções, o governo Lula se mexeu muito onde menos se esperava dele, depois da performance
poliglota de FHC: na área externa.
Sob os cuidados prévios do
também assessor especial Marco
Aurélio Garcia, Lula começou seu
mandato pregando uma solução
institucional às greves que atingem a Venezuela contra o governo de Hugo Chávez.
TEORIA DO FUTEBOL NA
POLÍTICA EXTERNA
Preocupado em evitar retrocessos políticos na região, Lula emplacou, durante a negociação, em
Quito, um dos motes de seu governo: "Um bom técnico não é o
que começa ganhando o jogo, é o
que termina ganhando".
Na semana passada, em encontro com o chanceler alemão, Gerhard Schröeder, em Berlim, Lula
improvisou mais um mandamento do que pode vir a ser um decálogo político: "O bom político
pensa muito antes de responder;
os melhores políticos pensam e
não respondem", disse, para salvar o anfitrião de uma pergunta
delicada sobre a guerra no Iraque.
Quem frequentou no último
mês o mesmo conjunto de sofás
vermelhos que FHC deixou no
gabinete agora ocupado por Lula
já começa a se acostumar com o
silêncio eventual do presidente.
A diferença é que o antecessor,
embora desse aos interlocutores a
impressão de concordar com eles,
pouco ouvia. E Lula, dizem os
amigos, não deixará de ouvir ninguém.
(MARTA SALOMON)
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