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São Paulo, domingo, 02 de fevereiro de 2003

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Um mês após posse de petista, poder se habitua com expedientes mais longos, repúdio ao isolamento e informalidade

Estilo Lula

DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A cadeira vermelha, tirada do depósito, é a única mudança visível no gabinete do terceiro andar do Palácio do Planalto.
O vice José Alencar insiste em que Luiz Inácio Lula da Silva troque a posição dos móveis deixada por Fernando Henrique Cardoso e faça a mesa de trabalho da Presidência se voltar para o janelão que dá para o horizonte verde de Brasília e as águas do Lago Paranoá.
Por ora, Lula só cuidou de trocar a cadeira de FHC, que lhe rendia dores na coluna, e pediu que instalassem uma máquina de café expresso perto do gabinete -cujo consumo ele tenta moderar e revezar com xícaras de chá por ordem do médico da presidência.
No primeiro mês de mandato, não levou fotos da família nem objetos pessoais além da pasta preta antiga, agora carregada pelo ajudante de ordens Rui Mesquita.
A falta de pressa com mudanças na decoração do gabinete contrasta com a determinação de mudar o ritual de poder e governar de um jeito diferente de todos os ocupantes anteriores do Planalto desde Juscelino Kubitschek, que fundou Brasília.
Pela origem pobre de ambos -Juscelino era filho de caixeiro-viajante e andou descalço por falta de sapatos na infância, enquanto Lula migrou do Nordeste com a mãe e sete irmãos a bordo de um pau-de-arara- , pelo humor e o apego à informalidade, a comparação soaria óbvia.
Mas alguns dos interlocutores mais próximos do presidente negam que ele tenha como modelo algum outro governante do Brasil ou de fora dele. Autodidata, Lula quer inventar um novo estilo de governo.

BLEFE NO TRUCO E EXERCÍCIO MATINAL
Na tentativa de entender como o novo estilo vai funcionar, os mais íntimos recorrem a três características de Lula: 1) ele é um exímio jogador de truco, jogo de cartas que cultiva a astúcia e a arte do blefe, segundo os entendidos; 2) o presidente é um ser intuitivo e costuma surpreender pela forma de raciocinar; 3) Lula sabe ouvir e geralmente pergunta muito, embora faça questão de ter a última palavra nas discussões.
Na prática, a rotina do poder tem agora expedientes mais longos. Lula dorme pouco, acorda sem despertador e é recepcionado logo cedo no Planalto pelo chefe da Casa Civil, José Dirceu, e o chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Jorge Félix.
O presidente não deixa o palácio nem para o almoço e costuma carregar trabalho para casa.
A pessoa que passa mais tempo a seu lado é a arquiteta, amiga e superdiscreta Clara Ant, recém-nomeada assessora especial.
Cabe a ela anotar as providências a serem tomadas a partir de cada audiência de Lula, cada conversa do presidente. Se o poder fosse um filme, Clara seria uma espécie de "continuísta".
Outra inovação na agenda é a frequência dos contatos com o secretário de Comunicação (e também de Gestão Estratégica), Luiz Gushiken. A ele são reservados dois despachos diários com o presidente, na companhia do secretário de Imprensa, Ricardo Kotscho, e do porta-voz André Singer.
Ainda de manhã, Lula gosta de surpreender o grupo com notícias que ouviu enquanto praticava exercícios de esteira no Palácio da Alvorada, outra recomendação médica. Surpreende também pelo uso de algumas expressões que adota. Exemplo: dias atrás, Lula se encantou com sine qua non e usou a expressão em latim que expressa causa para pontuar diversas de suas frases.

MEDO DO ISOLAMENTO, NÃO À MOSCA AZUL
Além de Gushiken e Dirceu, integra o núcleo mais forte de poder petista o secretário-geral da Presidência, Luiz Dulci, a quem cabe também escrever os discursos de Lula, no papel de ghost-writer.
O grupo costuma se reunir às segundas de manhã, às vezes na companhia do ministro Antonio Palocci Filho (Fazenda) e do presidente do PT, José Genoino.
Na quarta-feira passada, ao voltar do primeiro giro pela Europa, o presidente disfarçou o deslumbramento que seria natural numa trajetória tão incomum como a sua, de migrante do sertão de Pernambuco a chefe do Planalto, recebido como líder em outros palácios do mundo.
"A mosca azul não me mordeu, não vou deixar", prometeu o presidente petista a um dos integrantes do núcleo do poder.
Os sinais deixados ao longo dos primeiros dias depois da posse indicam que Lula fará questão de encarar a chamada "liturgia" do cargo sempre com um pé atrás. Pelo menos na parte do ritual em que o poder vira sinônimo de muita formalidade e solidão.
Depois de tentar convencer Lula a não se expor tanto nos contatos públicos, a segurança do Planalto resolveu aumentar o número de homens no portão do Alvorada, onde, de manhã e à noite, populares têm a chance de falar com o presidente e até de abraçá-lo -uma cena inédita ali até então.
Antes de completar a primeira quinzena no cargo, Lula deixou claro que isso faria parte da rotina do poder: "Gosto disso, tenho medo do isolamento".
Procurado na última segunda-feira, Duda Mendonça, marqueteiro da campanha de Lula, não quis comentar o que há de cálculo político nos contatos de Lula com gente do povo.
O presidente já deixou claro a seus ministros que não só ele, mas o governo inteiro deve manter contato com as ruas. Faz parte do estilo. Em meio à caravana ao semi-árido, Lula deu a orientação: "Você decide de acordo com o chão que seus pés pisam".
No primeiro mês de governo, o "pé no chão" estimulado por Lula se confundiu com conservadorismo econômico. Foi o caso do aumento em meio ponto percentual da taxa de juros. "Às vezes o nosso filho está com febre e você tem de receitar o mesmo remédio do médico anterior", explicou Lula no dia seguinte à reunião do Copom (Comitê de Política Monetária).

EM PÚBLICO, PRESIDENTE PARA OS COMPANHEIROS
Os amigos e velhos companheiros ainda o chamam de Lula. Ou de Luiz Inácio, no caso de Frei Betto (Carlos Alberto é como Lula o chama). O "presidente", porém, passou a ser obrigatório quando estão em público.
Integrante do time de assessores especiais, Frei Betto se espantou com o volume de pedidos de empregos e receitas para combater a bursite do presidente, que marcaram os primeiros dias dos novos ocupantes do palácio.
Visto de dentro pelos novatos no poder, o Planalto é como uma escola nova. Eles seriam como alunos a percorrer corredores ainda desconhecidos e de uniforme novo: muitos dos assessores de Lula só usavam terno em ocasiões muito especiais.
Mas o cerimonial do palácio ainda exige traje social até dos visitantes. É uma regra. Exceções têm de ser negociadas, apesar do clima de informalidade notado por José Henrique Nazareth, funcionário há 41 anos do Planalto. "Acabou a formalidade da gravatinha, aquela formalidade severa", observa o servidor.
Se Lula ainda parece aprender a governar, seu estilo já arranca elogios de antigos donos do poder. O senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA) aprovou: "Ele não é sociólogo, não tem diploma de nível superior, mas se sai muito bem", disse. ACM reserva para José Dirceu nada menos do que o adjetivo "brilhante". Em troca, é tratado como cacique político.
O deputado Delfim Netto (PPB-SP) até enxerga sinais das mudanças que o PT prometeu na campanha. "Os alicerces macroeconômicos são fortalecidos, mas a casa em cima deles é diferente, mais próxima das pessoas", nota.
Se os sinais de mudança do modelo econômico foram sentidos por pouca gente além de Delfim e se as ações nas áreas de combate à fome e segurança são ainda boas intenções, o governo Lula se mexeu muito onde menos se esperava dele, depois da performance poliglota de FHC: na área externa.
Sob os cuidados prévios do também assessor especial Marco Aurélio Garcia, Lula começou seu mandato pregando uma solução institucional às greves que atingem a Venezuela contra o governo de Hugo Chávez.

TEORIA DO FUTEBOL NA POLÍTICA EXTERNA
Preocupado em evitar retrocessos políticos na região, Lula emplacou, durante a negociação, em Quito, um dos motes de seu governo: "Um bom técnico não é o que começa ganhando o jogo, é o que termina ganhando".
Na semana passada, em encontro com o chanceler alemão, Gerhard Schröeder, em Berlim, Lula improvisou mais um mandamento do que pode vir a ser um decálogo político: "O bom político pensa muito antes de responder; os melhores políticos pensam e não respondem", disse, para salvar o anfitrião de uma pergunta delicada sobre a guerra no Iraque.
Quem frequentou no último mês o mesmo conjunto de sofás vermelhos que FHC deixou no gabinete agora ocupado por Lula já começa a se acostumar com o silêncio eventual do presidente.
A diferença é que o antecessor, embora desse aos interlocutores a impressão de concordar com eles, pouco ouvia. E Lula, dizem os amigos, não deixará de ouvir ninguém. (MARTA SALOMON)


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