São Paulo, domingo, 02 de julho de 2000


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JANIO DE FREITAS
Fábrica de doutores

O Brasil melhorou cinco degrauzinhos entre os países que estão na rabada do Índice de Desenvolvimento Humano, medido pela ONU. A explicação apresentada para a melhoria foi a Educação. Como e por quê?
O ensino básico recebeu forte impulso governamental, com a decisão, já bastante praticada, de que os alunos com aprendizado insuficiente não sejam reprovados, mas empurrados para a frente. O ensino médio continua como um escorrer amazônico da sala de aula para o trabalho prematuro ou para a rua, com a evasão crescente a cada ano do curso, só concluído por cerca de um terço dos que o iniciaram. Se o aluno aprendeu e se continuou no curso, não é da nossa conta e muito menos da ONU. O que vale é o número dos matriculados pela primeira vez, que engrossam as estatísticas de escolarização.
Da universidade divulga-se o bastante: só Fernando Henrique Cardoso e Paulo Renato Souza ignoram seu desmoronamento progressivo, mas um lapso a mais ou a menos nada altera nos dois governantes. Ainda assim, vale citar dois reforços à ótima reportagem de Luiz Caversan, na Folha, sobre as mortes de cancerosos por erro médico, decorrente de aprendizado insuficiente. Em Goiás, Estado com índice expressivo de males mentais, a universidade pública não forma um psiquiatra há 12 anos. Em Minas, mais de 60% abandonam o curso universitário, depois de tanto tempo e esforço para chegar lá.
E agora, senhoras e senhores, a grande obra governamental, de influência determinante para o salto dos degrauzinhos nas contas da ONU: a formação de doutores. Para os pouco familiarizados com a formação acadêmica, uma breve explicação: embora por aqui se use chamar de doutor os que concluem uma faculdade, sobretudo se de medicina e direito, para chegar a esse título, de fato, há duas etapas ainda - o mestrado, com a defesa da respectiva tese, e o doutorado propriamente dito, com a elaboração e defesa de outra tese.
O título de doutor é muito conceituado na Europa, nos Estados Unidos, onde é chamado de PhD, no Canadá, porque o percurso até conquistá-lo é muito exigente, e por isso extenso. Lá, tese de doutoramento tem que se ocupar de um tema original, uma percepção nova, devidamente fundamentada pelo conhecimento que a envolva e demonstrada. E depois disso há o crivo da defesa perante bancas de vários professores, em geral aplicados em inquirições rigorosas do doutorando. Em alguns países, tese de doutoramento com menos de 300, 400 páginas, nem é considerada.
Isso tudo explica o alto valor atribuído ao número de doutores existentes e de novos doutoramentos, para a aferição do estágio alcançado ou do avanço de um país em educação científica e cultural.
A gritante deficiência brasileira em doutores e doutorandos teve uma solução muito peculiar do governo, por intermédio do Ministério da Educação. Às instituições habilitadas a proporcionar doutoramento passaram a ser dadas maiores porções de verbas, segundo o número de novos doutores nelas diplomados. E a todas foram dados benefícios segundo o número de doutores nos seus quadros de ensino e pesquisa.
O que interessa a todos a fazer e ter doutores. Montou-se uma enorme fábrica de doutores, da qual jorram títulos. Poucas instituições preservaram o necessário rigor. Das outras têm saído doutores até com teses de uma centena de páginas e, no máximo, à altura de serem monografias finais de curso de faculdade.
O Brasil melhorou no ranking da educação. Em breve, um título de doutor, por aqui, será tão corriqueiro e tão valioso quanto é, hoje, um diploma qualquer de faculdade. E a ciência e a cultura, repletas de doutores, continuarão represadas na insignificância.


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