São Paulo, domingo, 02 de dezembro de 2001

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ELIO GASPARI

A quebra da CLT é impostura

A proposta de estripamento da Consolidação das Leis do Trabalho encaminhada pelo governo ao Congresso é uma impostura a serviço do esbulho.
Admita-se que tudo o que o tucanato-pefelê diz está certo. Por exemplo: há uma categoria profissional cujo setor está em crise, os empresários precisam reduzir custos e oferecem a partilha das férias dos trabalhadores em três nacos de dez dias. Um nas festas de fim de ano, outro no Carnaval e o terceiro na Semana Santa. Ninguém é idiota a ponto de não perceber que se embutiram nessas férias pelo menos seis feriados. Como a tunga se destina a preservar a competitividade do setor, mais vale um trabalhador com seis feriados a menos do que com o feriadão do desemprego nas costas.
Esse é o lado racional do projeto. Ele é uma impostura porque preserva a exclusividade de cada sindicato como legítimo representante de cada categoria de trabalhadores. A CLT, no seu aspecto fascista, diz que todo empregado deve pagar imposto sindical e que cada categoria pode ter apenas uma entidade representativa, para a qual vai o dinheiro do tributo. O trabalhador pode escolher patrão, mas sindicato não. É livre para tomar veneno com guaraná, mas de sindicato não pode trocar.
Se houvesse um sincero interesse na busca de relações racionais entre patrões e empregados, o governo teria encaminhado junto com sua proposta o fim da unicidade sindical. Voltando ao exemplo mencionado. Se a negociação que fatiou as férias fosse considerada saudável pelos trabalhadores, tudo bem. Caso contrário, poderiam fundar outro sindicato. A proposta de FFHH junta o que há de predatório nas relações trabalhistas do século 21 com o que houve de fascista na CLT do século 20.
Desde o tempo do doutor Getúlio, a unicidade sindical ajuda o andar de cima a controlar os sindicatos a pau e pirão. Se o pau resolve, pirão não há. Quando as listas negras e os camburões da polícia política saem de moda, passa-se o pirão.
Quando o pau resolvia, a plutocracia nacional financiou os DOI-Codi. Quando foi necessário usar o pirão, rolou uma grana seletiva. Deixando de lado a discussão do destino tomado pelo dinheiro que o empresariado paulista deu ao doutor Luiz Antônio de Medeiros para fundar a Força Sindical, uma coisa é indiscutível: o pirão alimentou a infância de uma central alternativa à CUT. Não importa se foram US$ 5 milhões ou R$ 0,50. Importa lembrar a explicação de Medeiros: "Pode ser um pecado ideológico, mas crime não é".
As bancadas que apóiam o governo deveriam exigir do Planalto que os quatro candidatos a presidente da coligação governista anunciassem sua disposição de apoiar (ou não) esse projeto. Enquanto todos os quatro estiverem em silêncio, será possível afirmar que está em curso uma impostura que preserva o que há de pior no passado para azeitar um esbulho no futuro.
Luiz Inácio Lula da Silva, Ciro Gomes e Itamar Franco são contra a proposta do governo.

O legado de Edmond Safra virou encrenca

w São muitos os mistérios que acompanham o episódio da morte do banqueiro Edmond Safra. Ele pereceu sufocado no banheiro de seu apartamento em Mônaco, em dezembro de 1999. Noves fora os detalhes do que sucedeu naquela principesca cobertura, encrencou-se também o testamento de Edmond.
Ele assinou-o em Nova York, dois meses antes de morrer. Não se sabe o tamanho do ervanário deixado por Safra, mas gira em torno de US$ 5 bilhões. Ele não tinha filhos, e o grosso da herança foi destinado a um fundo filantrópico. A viúva, Lily, com quem se casou em 1976, foi a principal herdeira.
Ficou bem. Aos 68 anos, Lily Safra tem casa própria em Mônaco (a vila do rei Leopoldo, da Bélgica) e boas moradias em Nova York, Londres e Genebra. Em dinheiro, recebeu pelo menos US$ 1 bilhão, com rendimentos adicionais que lhe permitem não se preocupar com a granulação do caviar, muito menos com o tamanho da colher. Não chega a ser uma das cem mulheres mais ricas do mundo, mas também não corre o risco de entrar na fila do seguro-safra do doutor Raul Jungmann. Vendo o tamanho dessas cifras, fica difícil entender o que aconteceu com o item do testamento em que Edmond deixava US$ 20 milhões para cada uma das três irmãs, Arlette, Huguette e Gaby. (O banqueiro tinha dois irmãos, José e Moise Safra, donos do banco brasileiro que leva o sobrenome da família. Não há relações entre eles e a viúva.) O testamento de Edmond cuidava para que as irmãs recebessem o legado com presteza. Não era tanto dinheiro assim, apenas o suficiente para gerar um rendimento anual de US$ 500 mil, sem os quais a vida é coisa sabidamente difícil. Apesar disso, os testamenteiros levaram quatro meses para informá-las. Dinheiro, nem pensar. As três irmãs foram buscar seus direitos nas cortes suíças.
Marc Bonnant, testamenteiro de Edmond e advogado de Lily, deu a seguinte explicação à repórter Raquel Ballarin: "Para mim, a questão é muito clara. Se a família reconhecer a validade do testamento, ele será executado imediatamente. Se eles não concordarem, não podem receber nada designado em algo que julgam não estar correto".
Será um processo lindo. É comum que pessoas leguem bens a parentes, condicionando a doação ao reconhecimento da lisura do conjunto do testamento. Chama-se essa cláusula de "ad terrorem". A ela recorreram John Lennon e Orson Welles, que deixou a casa para uma senhora e não queria que a viúva a chateasse. Quando isso acontece, é pega ou larga, e ninguém pode reclamar. Não é da conta dos testamenteiros fazer esse tipo de exigência. Deixa pra lá qualquer discussão em torno do estado de saúde de Edmond Safra dois meses antes de sua morte. Desde 1998, ele vivia um tumulto depressivo que o levava a estar sempre acompanhado por enfermeiros.
Para os dois irmãos Safra, os US$ 60 milhões que suas irmãs estão buscando na Justiça de Genebra são pouco mais que um trocado. Para Lily, um dinheiro desse tamanho não será suficiente para levá-la a andar de limusine alugada. A declaração de Bonnant sugere que ele queira obter das irmãs de Edmond, ou até mesmo dos irmãos, a ratificação de toda a documentação testamentária. Caso ele sustente esse argumento na Justiça, ela decidirá se faz sentido.
Se não fizer, será mais um ingrediente no portfólio de fortes emoções no qual já estão o inquérito policial da morte do banqueiro e o processo penal, no qual seus irmãos tornaram-se parte interessada e perceptivelmente incômoda.
Negócio apagado
Em 1995, quando o BNDES começou a vender as empresas elétricas da Viúva, sustentava-se que ao final das contas os consumidores seriam os beneficiados. Resta saber quem se responsabiliza pelo seguinte resultado:
Venderam-se cerca de 20 empresas, ao preço de US$ 20 bilhões. Desse dinheiro, a Viúva financiou US$ 5 bilhões. Em seis anos, os compradores remeteram para o exterior algo em torno de US$ 1 bilhão. Diante do racionamento, as concessionárias serão ressarcidas em cerca de US$ 2,5 bilhões.
A Viúva ficou com US$ 12,5 bilhões. A maior parte desse dinheiro foi para a banca, não se investiu em energia e hoje há racionamento no Brasil e luz em Nova York.
As empresas ganharam algum dinheiro nos primeiros anos. Agora estão metidas num mau negócio que talvez melhore a partir de 2004.
A escumalha ficou com um serviço de energia nigeriano, pagando tarifas nova-iorquinas. Como as novas tarifas sufocarão inúmeras indústrias, haverá gente sem emprego, sem luz e com a conta mais cara.
Conseguiu-se fazer um negócio ruim para todo mundo.
Pior: o governo começou a apostar nas chuvas do início do ano que vem, bancando o risco de entregar ao novo presidente uma crise energética maior que a de hoje.

Nas estrelas
Apareceu uma nuvem política sugerindo que um pedaço do PSDB pode vir a apoiar a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência, num eventual segundo turno.
É especulação precoce, e uma conversa desse tipo não vira coisa séria antes de fevereiro. Mesmo assim, quanto mais essa possibilidade for considerada absurda, maiores serão as chances de ela acontecer.
Em 1984, havia gente que chamava de louco quem dizia que o general Ernesto Geisel apoiaria Tancredo Neves. Louco estava quem apostou que isso não poderia acontecer.

Curso Madame Natasha de piano e português
Madame Natasha tem horror a música. Ela protege as pessoas que flexibilizam o idioma de forma a torná-lo incompreensível. Resolveu conceder quatro bolsas de estudo a usuários de uma nova expressão do palavrório político nacional. São os seguintes os bolsistas, cada um com sua retórica:
Tasso Jereissati: "Tenho o compromisso de fazer do Brasil o país da inclusão total, com direito ao ensino, à saúde e à educação públicos, à alimentação e ao emprego digno".
Cesar Maia: "Estou introduzindo políticas focadas de inclusão social".
Raul Jungmann, por ter criado a "Comissão Setorial de Convívio com o Semi-Árido e Inclusão Social".
A última bolsa vai para o doutor Pedro Parente, presidente do Comitê Executivo de Governo Eletrônico, que coordenou uma coisa constrangedora chamada "Oficina de Inclusão Digital".
Natasha pede para ser excluída da política de inclusões.

ENTREVISTA

Paulo Cunha (61 anos, presidente do Grupo Ultra, com 6.000 funcionários)
- Durante anos o senhor esteve entre os defensores de uma política de desenvolvimento industrial. Hoje todos os candidatos ao Planalto defendem essa mudança, mas outro dia o presidente do Banco Central, Armínio Fraga, lembrou que esse tipo de política resultou, no passado, na "captura do Estado por grupos de interesse". O senhor vestiu a carapuça?
Se houve carapuça, ela deve ter ido para o ministro do Desenvolvimento ou para o presidente da República. Precisamos combater a captura de que fala o professor Armínio. Ele menciona políticas industriais passadas. Pois eu digo que o Estado brasileiro está capturado pelo sistema financeiro. Com uma taxa de juros duradoura de 19% ao ano, não há atividade industrial que possa crescer e subsistir. Nos Estados Unidos, um executivo que consegue lucros de 12% ao ano vira capa de revista. Hoje o industrial brasileiro que produz é visto pelo pedaço do governo que manda na economia como uma mistura de pária e perigo. Criou-se um sistema de remuneração em cujo topo estão os bancos. Um pouco abaixo, o imenso cartório dos empreendedores (quase sempre estrangeiros) que investem em produtos para os quais o governo garante contratualmente os lucros. Refiro-me aos setores de energia, comunicações e gás. Em seguida vem a indústria automotiva, protegida por tarifas de importação e incentivos tributários. No quarto e último degrau está a casta dos intocáveis. São os brasileiros que produzem alguma coisa. O fato de o Estado ter sido aprisionado pelo protecionismo financeiro é visto como sinal de progresso.
- A crítica do presidente do Banco Central não teria o valor de uma advertência?
Sem dúvida. É sempre bom lembrar riscos, mas desqualificar a contradita é má técnica de debate e péssima forma de cuidar do bem público. Teria sido muito útil ter ouvido o Banco Central advertir que sua política de câmbio e sua taxa de juros desestruturariam a indústria brasileira. Nunca disseram isso. Pelo contrário. Também não lembraram que essas políticas esgotariam o Tesouro e arruinariam nossas contas externas. Desde 1995, a cada ano anunciaram-se superávits comerciais que nunca aconteceram. Chamam de demandantes de sesmarias os industriais brasileiros, ao mesmo tempo em que garantem aos investidores estrangeiros lucros fixos sobre a produção de energia, mesmo aquela que não vier a ser produzida. Isso é reserva de mercado com rendimentos sobre produção inexistente. Pode-se sustentar que as políticas industriais do passado tinham erros e, a partir daí, pode-se conceber algo novo, melhor. As experiências passadas podem ser revistas, consertadas, mas uma coisa é certa: a industriofobia está nos levando à breca. Essa não tem conserto.
- O que se pode fazer de concreto para sair desse mau debate?
Em primeiro lugar é necessário acabar com a política de maldição da indústria. Depois disso, devemos ficar entendidos que o déficit de nossas contas externas é pernicioso e deve ser combatido por meio de um intenso interesse na produção e na exportação. Em vez de aulas de macroeconomia, estamos precisando ouvir do governo o que se pode fazer para exportar mais e como ele pode colaborar com o empresário nacional. Do contrário, nossas autoridades continuarão falando mal do nosso empresariado, enquanto os ministros americanos e europeus descem em Brasília para defender os interesses do empresariado deles.


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