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Cientista político Bolivar Lamounier, filiado ao PSDB e "otimista" com Lula, condiciona sucesso do PT a reformas previdenciária e trabalhista
"Lula depende de audácia nas reformas"
PATRICIA ZORZAN
DA REPORTAGEM LOCAL
Filiado ao PSDB e próximo do
presidente Fernando Henrique
Cardoso, o cientista político Bolivar Lamounier, 59, diz-se ""razoavelmente otimista" sobre o governo Luiz Inácio Lula da Silva.
Ligado ao Instituto de Estudos
Econômicos e Políticos de São
Paulo (Idesp), condiciona o sucesso do mandato do presidente
eleito, entretanto, à realização das
reformas previdenciária, tributária e trabalhista. Com elas, declara, Lula poderá restaurar a confiabilidade externa no país e também conseguir no Congresso o
apoio necessário para governar.
""Primeiro, temos de saber,
diante da necessidade de agir com
realismo, com gradualismo, mas
também com muita audácia na
área da reforma fiscal e trabalhista, o que o Lula vai propor", afirma. ""Se Lula propuser uma agenda consistente, relevante, importante, ele vai ter um apoio muito
grande [no Congresso", de mais
de 50%."
Leia a seguir trechos da entrevista concedida à Folha.
Folha - Lula tem adotado um discurso que mescla o pessimismo da
dificuldade orçamentária com o
otimismo de que tudo dará certo.
Como interpretar isso?
Bolivar Lamounier - Essa ambigüidade é um sinal de realismo.
Lula sabe que foi eleito com expectativas muito altas pela sociedade e, por outro lado, a situação
do Brasil é difícil. O clima externo
é difícil, pode piorar se houver
guerra. Tudo isso quase força Lula
e a equipe econômica a caminhar
em uma corda bamba, porque, na
verdade, eles têm de se dirigir a
vários públicos diferentes.
Quando falam para os milhões
que votaram no Lula, naturalmente têm de manter a idéia de
que vieram para mudar alguma
coisa. Por outro lado, o que soa
otimista para esse público, significaria pessimismo para o investidor externo brasileiro, para o
mercado, para os agentes econômicos. Porque, se falassem apenas
que as coisas vão bem, o que seria
entendido é que se iria gastar
mais, relaxar na disciplina fiscal.
Ou seja, o discurso é ambíguo
porque não há alternativa. Ele
atende a públicos diferentes. A cada passo que o governo dá, vai se
livrando de uma parte dessa excessiva ambiguidade. Quando ele
nomeou a equipe econômica, ele
deu um sinal positivo, concreto
para os mercados de que não iria
ser um governo faccioso na parte
econômica e isso melhorou a expectativa. Houve um pouco de esperneio dos militantes do partido,
mas é assim que se administra o
processo político. O próximo passo vai ser no início do ano, quando pudermos observar a formação da base parlamentar e a agenda de decisões que efetivamente o
governo vai perseguir.
Quando estiver decidido qual é
o programa efetivo, as decisões
que vão ser tomadas, se vão implicar maiores gastos ou não, que reformas o Lula se dispõe a fazer, esse sinal ajudará a consolidar a
confiança dos agentes econômicos ou não. Na medida em que for
se consolidando, vai reduzindo
espaço para dissidências muito
radicais e utópicas. Agora, se não
se consolidar por seu programa
decisório, o espaço continuará
aberto para pressões de dissidências. Haverá um círculo vicioso,
piorando a imagem do governo.
Folha - Mas pode haver piora do
antagonismo. Muitas das reformas
são incompatíveis com o discurso
do PT até aqui.
Lamounier - Sem dúvida. Se
pensarmos nos diversos palcos
onde é jogada a governabilidade,
o primeiro é o do próprio governo, sua coerência interna. O ministério já mostra que é um governo muito heterogêneo, o que era
previsível pela história do PT, pelas alianças que teve de fazer.
Os outros palcos são o mercado,
o Congresso, a opinião pública, o
eleitorado, e lá para março, abril,
haverá um outro palco, que é o
dos demandantes organizados.
Neste momento, a arena fundamental para a governabilidade é
atenuar as prevenções que surgiram durante a campanha nos
mercados e atenuar, muito gradualmente, o excesso de expectativas da opinião pública. Mas as
questões são conflitivas e eu diria
que as mais urgentes são a da reforma da Previdência, a trabalhista e a tributária. São todas de extrema complexidade.
Mas devo confessar que estou
razoavelmente otimista, porque
imagino que Lula e o PT vão perceber que, assim como há o problema de suscitar antagonismos,
também há uma oportunidade
histórica que não pode ser perdida. A eleição do Lula encerra uma
fase de 20 anos em que o PT de
certa maneira tinha um carimbo
de inaceitável na esfera federal.
Folha - Mas o PT foi aceito porque
mudou o país ou o PT?
Lamounier - Os dois mudaram,
mas a ordem dos fatores é importante e acho que o que mudou primeiro foi o país.
Folha - O PT não ganharia com esse discurso em 89 ou em 94?
Lamounier - Não. Acho que a
agenda do país mudou. Acho que
o Brasil executou, naturalmente
não por inteiro e não de uma maneira totalmente satisfatória, nos
anos 90, a agenda configurada no
final dos anos 80. Logo depois da
Constituinte, houve um debate
muito sofrido, bastante polarizado, porque estávamos com uma
hiperinflação batendo às portas,
com um país desesperançado. Em
contraposição a isso, formou-se
uma proposta de reforma do Estado, de controle da inflação e de
reforma do setor público, fiscal. O
fato de que a reforma foi implementada e de que o país viveu
uma estabilidade bastante razoável nesse período, desde o início
do Plano Real, levou o país e as
opiniões mais para o centro.
Acho que as reformas ou foram
aprovadas ou pelo menos entendidas como necessárias. A reforma da Previdência, que ficou a
meio caminho, que está muito
aquém do desejável, hoje não há
no Brasil, seriamente, quem diga
que não é necessária. Oito anos
atrás era um tabu.
Aí chegamos à eleição do PT e
do Lula. Acho que o país falou: ""Já
que temos essa agenda em grande
parte realizada, já que nos entendemos sobre esses temas fundamentais, então agora podemos
dar um passo seguinte, que é o de
tentar algo mais arrojado em termos de reformas redistributivas,
na área social".
Folha - O PT precisou mudar?
Lamounier - Precisou. Todos caminhando para o centro, inclusive o PT. Em 89 e em 94, o PT ainda
não havia entendido a gravidade
do fenômeno inflacionário, um
terror que nos excluía de qualquer
possibilidade de uma economia
internacionalizada. Em 98, o PT já
começava a mudar. Perdeu para a
força de Fernando Henrique, que
tinha ainda um nível de aprovação alto. 2002 é diferente. É o encontro positivo de grandes forças.
Primeiro, um novo consenso no
Brasil, que está dizendo que a
agenda é mais ou menos a mesma
e que é preciso ter a confiança internacional, dos investidores.
Segundo, a situação social brasileira. Arriscaria falar, em tom de
brincadeira que, se definirmos
um conservador como aquele que
acha que a desigualdade social, a
pobreza nas dimensões que temos, é uma coisa que não pode e
não deve ser mudada, eu diria que
no Brasil não deve haver nenhum
conservador. É claro que há luta
de interesses, desacordos sobre o
que vem primeiro, quais os meios
a serem utilizados. Mas a visão de
mundo conservadora ruiu. As
pessoas passaram a desestigmatizar o Lula porque passaram a reconhecer, de maneira praticamente unânime, que é preciso fazer alguma coisa importante a
respeito da desigualdade social.
Folha - Vai ser possível para o PT
governar sem o PMDB?
Lamounier - Tenho visto discussões muito centradas na questão
numérica, da produção da maioria. Mas acho que são duas questões diferentes que precisam ser
discutidas. A mais importante
vem antes da questão numérica e
é qual a agenda legislativa do Lula.
Se ele quiser sinalizar fortemente
para os agentes econômicos sobre
o seu empenho na parte fiscal, sobre seu reconhecimento de que a
curto prazo não há folga e de que é
preciso restaurar a confiança,
abaixar muito gradualmente os
juros e para isso é preciso uma âncora fiscal mais forte, então terá
de pensar imediatamente na reforma previdenciária.
No momento em que ele propuser ao Congresso uma reforma
previdenciária consistente, a dificuldade não será apenas no
PMDB. Os partidos de esquerda,
entre eles o PT, se posicionaram
contra essa reforma durante oito
anos. Não adianta somarmos um
pedaço do PMDB aos partidos de
esquerda porque talvez alguns
partidos de esquerda se dividam
também neste processo. Tudo vai
depender da agenda. São duas
questões separadas. Primeiro, temos de saber, diante da necessidade de agir com realismo, com
gradualismo, mas também com
muita audácia na área da reforma
fiscal e trabalhista, o que o Lula
vai propor. No momento em que
nós tivermos essa resposta, aí vamos ter de fazer a conta. De fato,
de um partido grande o governo
do PT precisa. Mas qual dos dois
pedaços do PMDB estará mais
afinado com esta agenda que Lula
vai propor? Isso não sabemos.
Se Lula propuser uma agenda
consistente, relevante, ela vai ter
um apoio grande, de mais de 50%.
Mas, se optar por uma agenda de
ganhos políticos no curto prazo,
convencionalmente chamada de
populista, ele não vai ter o apoio
dos partidos de centro, mais conservadores -PSDB, PFL-, o
PMDB se apresentará totalmente
dividido, e a própria esquerda não
sei se estará unida.
Folha - A esquerda do PT está sob
controle?
Lamounier - Não me surpreenderia se esses setores se manifestassem. Se o governo consolidar
rapidamente o seu núcleo, sua
agenda, chegará a março, abril,
com uma densidade tão grande e
com tanto apoio que a eventual
manifestação de setores mais radicais, se ocorrer, não terá efeito
negativo palpável.
Folha - Do ponto de vista de política internacional, o Brasil de Lula
terá a mesma importância do Brasil
de FHC?
Lamounier - Acho que sim. Os
estilos são diferentes, porque os
recursos de um e de outro são diferentes. Fernando Henrique tinha o prestígio do intelectual.
Mas o Lula também tem um recurso muito importante. É a primeira vez no Brasil, e uma das raríssimas vezes no mundo, em que
um líder operário chega à Presidência de um país de grande potencial. Isso também é um recurso
político importantíssimo, que, se
for bem utilizado, dará ao Lula, ou
seja, ao Brasil, uma presença internacional muito significativa.
Folha - Além das reformas, quais
serão os desafios de Lula?
Lamounier - O desafio é não errar no ponto de partida. O Lula e o
PT, se forem realistas, sabem que
a prioridade é não só manter a
atual estabilidade, mas voltar a níveis de estabilidade de um ano
atrás. Porque hoje estamos com
uma taxa de juros insustentável.
Temos de restaurar a confiabilidade, a estabilidade que tínhamos
a alguns meses atrás, para então
trabalharmos paulatinamente
dentro de uma redução realista da
taxa de juros. Ou seja, de progressivamente recriarmos condições
de desenvolvimento. Para isso, é
preciso uma sinalização efetiva
em termos de reformas. Se isto
não for feito, o meio termo será
meio nebuloso e será entendido
pelo mundo como uma concessão populista que nos levará a
uma situação muito difícil dentro
de poucos meses.
Folha - Como será a relação entre
o MST e o governo?
Lamounier - O MST, desde que
surgiu na cena nacional, fez do fato consumado a sua fonte de influência. Invadia para depois conversar. Com isso criava uma situação dramática, que repercutia
na imprensa mundial e daí a liderança do movimento derivava sua
condição de interlocutor do governo. Nos governos anteriores,
ele contou com um certo beneplácito da sociedade, porque podia-se criar no imaginário do debate
público a idéia de que se tratava
de um movimento de excluídos
contra um governo dito conservador. Mas hoje não temos um governo conservador. Se o MST recorrer ao fato consumado para se
contrapor ao governo Lula, tenderá ao isolamento. Não contará
com o beneplácito da sociedade.
Folha - E do governo?
Lamounier - O governo, se conceder o beneplácito a um movimento que está agindo dessa maneira, estará desfigurando sua
própria origem, que é a de um
partido de esquerda que buscou,
pela via democrática, a maioria
eleitoral para governar.
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