São Paulo, sexta-feira, 03 de janeiro de 2003

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Cientista político Bolivar Lamounier, filiado ao PSDB e "otimista" com Lula, condiciona sucesso do PT a reformas previdenciária e trabalhista

"Lula depende de audácia nas reformas"

PATRICIA ZORZAN
DA REPORTAGEM LOCAL

Filiado ao PSDB e próximo do presidente Fernando Henrique Cardoso, o cientista político Bolivar Lamounier, 59, diz-se ""razoavelmente otimista" sobre o governo Luiz Inácio Lula da Silva.
Ligado ao Instituto de Estudos Econômicos e Políticos de São Paulo (Idesp), condiciona o sucesso do mandato do presidente eleito, entretanto, à realização das reformas previdenciária, tributária e trabalhista. Com elas, declara, Lula poderá restaurar a confiabilidade externa no país e também conseguir no Congresso o apoio necessário para governar.
""Primeiro, temos de saber, diante da necessidade de agir com realismo, com gradualismo, mas também com muita audácia na área da reforma fiscal e trabalhista, o que o Lula vai propor", afirma. ""Se Lula propuser uma agenda consistente, relevante, importante, ele vai ter um apoio muito grande [no Congresso", de mais de 50%."
Leia a seguir trechos da entrevista concedida à Folha.

 

Folha - Lula tem adotado um discurso que mescla o pessimismo da dificuldade orçamentária com o otimismo de que tudo dará certo. Como interpretar isso?
Bolivar Lamounier
- Essa ambigüidade é um sinal de realismo. Lula sabe que foi eleito com expectativas muito altas pela sociedade e, por outro lado, a situação do Brasil é difícil. O clima externo é difícil, pode piorar se houver guerra. Tudo isso quase força Lula e a equipe econômica a caminhar em uma corda bamba, porque, na verdade, eles têm de se dirigir a vários públicos diferentes.
Quando falam para os milhões que votaram no Lula, naturalmente têm de manter a idéia de que vieram para mudar alguma coisa. Por outro lado, o que soa otimista para esse público, significaria pessimismo para o investidor externo brasileiro, para o mercado, para os agentes econômicos. Porque, se falassem apenas que as coisas vão bem, o que seria entendido é que se iria gastar mais, relaxar na disciplina fiscal. Ou seja, o discurso é ambíguo porque não há alternativa. Ele atende a públicos diferentes. A cada passo que o governo dá, vai se livrando de uma parte dessa excessiva ambiguidade. Quando ele nomeou a equipe econômica, ele deu um sinal positivo, concreto para os mercados de que não iria ser um governo faccioso na parte econômica e isso melhorou a expectativa. Houve um pouco de esperneio dos militantes do partido, mas é assim que se administra o processo político. O próximo passo vai ser no início do ano, quando pudermos observar a formação da base parlamentar e a agenda de decisões que efetivamente o governo vai perseguir.
Quando estiver decidido qual é o programa efetivo, as decisões que vão ser tomadas, se vão implicar maiores gastos ou não, que reformas o Lula se dispõe a fazer, esse sinal ajudará a consolidar a confiança dos agentes econômicos ou não. Na medida em que for se consolidando, vai reduzindo espaço para dissidências muito radicais e utópicas. Agora, se não se consolidar por seu programa decisório, o espaço continuará aberto para pressões de dissidências. Haverá um círculo vicioso, piorando a imagem do governo.

Folha - Mas pode haver piora do antagonismo. Muitas das reformas são incompatíveis com o discurso do PT até aqui.
Lamounier
- Sem dúvida. Se pensarmos nos diversos palcos onde é jogada a governabilidade, o primeiro é o do próprio governo, sua coerência interna. O ministério já mostra que é um governo muito heterogêneo, o que era previsível pela história do PT, pelas alianças que teve de fazer.
Os outros palcos são o mercado, o Congresso, a opinião pública, o eleitorado, e lá para março, abril, haverá um outro palco, que é o dos demandantes organizados. Neste momento, a arena fundamental para a governabilidade é atenuar as prevenções que surgiram durante a campanha nos mercados e atenuar, muito gradualmente, o excesso de expectativas da opinião pública. Mas as questões são conflitivas e eu diria que as mais urgentes são a da reforma da Previdência, a trabalhista e a tributária. São todas de extrema complexidade.
Mas devo confessar que estou razoavelmente otimista, porque imagino que Lula e o PT vão perceber que, assim como há o problema de suscitar antagonismos, também há uma oportunidade histórica que não pode ser perdida. A eleição do Lula encerra uma fase de 20 anos em que o PT de certa maneira tinha um carimbo de inaceitável na esfera federal.

Folha - Mas o PT foi aceito porque mudou o país ou o PT?
Lamounier
- Os dois mudaram, mas a ordem dos fatores é importante e acho que o que mudou primeiro foi o país.

Folha - O PT não ganharia com esse discurso em 89 ou em 94?
Lamounier
- Não. Acho que a agenda do país mudou. Acho que o Brasil executou, naturalmente não por inteiro e não de uma maneira totalmente satisfatória, nos anos 90, a agenda configurada no final dos anos 80. Logo depois da Constituinte, houve um debate muito sofrido, bastante polarizado, porque estávamos com uma hiperinflação batendo às portas, com um país desesperançado. Em contraposição a isso, formou-se uma proposta de reforma do Estado, de controle da inflação e de reforma do setor público, fiscal. O fato de que a reforma foi implementada e de que o país viveu uma estabilidade bastante razoável nesse período, desde o início do Plano Real, levou o país e as opiniões mais para o centro.
Acho que as reformas ou foram aprovadas ou pelo menos entendidas como necessárias. A reforma da Previdência, que ficou a meio caminho, que está muito aquém do desejável, hoje não há no Brasil, seriamente, quem diga que não é necessária. Oito anos atrás era um tabu.
Aí chegamos à eleição do PT e do Lula. Acho que o país falou: ""Já que temos essa agenda em grande parte realizada, já que nos entendemos sobre esses temas fundamentais, então agora podemos dar um passo seguinte, que é o de tentar algo mais arrojado em termos de reformas redistributivas, na área social".

Folha - O PT precisou mudar?
Lamounier
- Precisou. Todos caminhando para o centro, inclusive o PT. Em 89 e em 94, o PT ainda não havia entendido a gravidade do fenômeno inflacionário, um terror que nos excluía de qualquer possibilidade de uma economia internacionalizada. Em 98, o PT já começava a mudar. Perdeu para a força de Fernando Henrique, que tinha ainda um nível de aprovação alto. 2002 é diferente. É o encontro positivo de grandes forças. Primeiro, um novo consenso no Brasil, que está dizendo que a agenda é mais ou menos a mesma e que é preciso ter a confiança internacional, dos investidores.
Segundo, a situação social brasileira. Arriscaria falar, em tom de brincadeira que, se definirmos um conservador como aquele que acha que a desigualdade social, a pobreza nas dimensões que temos, é uma coisa que não pode e não deve ser mudada, eu diria que no Brasil não deve haver nenhum conservador. É claro que há luta de interesses, desacordos sobre o que vem primeiro, quais os meios a serem utilizados. Mas a visão de mundo conservadora ruiu. As pessoas passaram a desestigmatizar o Lula porque passaram a reconhecer, de maneira praticamente unânime, que é preciso fazer alguma coisa importante a respeito da desigualdade social.

Folha - Vai ser possível para o PT governar sem o PMDB?
Lamounier
- Tenho visto discussões muito centradas na questão numérica, da produção da maioria. Mas acho que são duas questões diferentes que precisam ser discutidas. A mais importante vem antes da questão numérica e é qual a agenda legislativa do Lula. Se ele quiser sinalizar fortemente para os agentes econômicos sobre o seu empenho na parte fiscal, sobre seu reconhecimento de que a curto prazo não há folga e de que é preciso restaurar a confiança, abaixar muito gradualmente os juros e para isso é preciso uma âncora fiscal mais forte, então terá de pensar imediatamente na reforma previdenciária.
No momento em que ele propuser ao Congresso uma reforma previdenciária consistente, a dificuldade não será apenas no PMDB. Os partidos de esquerda, entre eles o PT, se posicionaram contra essa reforma durante oito anos. Não adianta somarmos um pedaço do PMDB aos partidos de esquerda porque talvez alguns partidos de esquerda se dividam também neste processo. Tudo vai depender da agenda. São duas questões separadas. Primeiro, temos de saber, diante da necessidade de agir com realismo, com gradualismo, mas também com muita audácia na área da reforma fiscal e trabalhista, o que o Lula vai propor. No momento em que nós tivermos essa resposta, aí vamos ter de fazer a conta. De fato, de um partido grande o governo do PT precisa. Mas qual dos dois pedaços do PMDB estará mais afinado com esta agenda que Lula vai propor? Isso não sabemos.
Se Lula propuser uma agenda consistente, relevante, ela vai ter um apoio grande, de mais de 50%. Mas, se optar por uma agenda de ganhos políticos no curto prazo, convencionalmente chamada de populista, ele não vai ter o apoio dos partidos de centro, mais conservadores -PSDB, PFL-, o PMDB se apresentará totalmente dividido, e a própria esquerda não sei se estará unida.

Folha - A esquerda do PT está sob controle?
Lamounier
- Não me surpreenderia se esses setores se manifestassem. Se o governo consolidar rapidamente o seu núcleo, sua agenda, chegará a março, abril, com uma densidade tão grande e com tanto apoio que a eventual manifestação de setores mais radicais, se ocorrer, não terá efeito negativo palpável.

Folha - Do ponto de vista de política internacional, o Brasil de Lula terá a mesma importância do Brasil de FHC?
Lamounier
- Acho que sim. Os estilos são diferentes, porque os recursos de um e de outro são diferentes. Fernando Henrique tinha o prestígio do intelectual. Mas o Lula também tem um recurso muito importante. É a primeira vez no Brasil, e uma das raríssimas vezes no mundo, em que um líder operário chega à Presidência de um país de grande potencial. Isso também é um recurso político importantíssimo, que, se for bem utilizado, dará ao Lula, ou seja, ao Brasil, uma presença internacional muito significativa.

Folha - Além das reformas, quais serão os desafios de Lula?
Lamounier
- O desafio é não errar no ponto de partida. O Lula e o PT, se forem realistas, sabem que a prioridade é não só manter a atual estabilidade, mas voltar a níveis de estabilidade de um ano atrás. Porque hoje estamos com uma taxa de juros insustentável.
Temos de restaurar a confiabilidade, a estabilidade que tínhamos a alguns meses atrás, para então trabalharmos paulatinamente dentro de uma redução realista da taxa de juros. Ou seja, de progressivamente recriarmos condições de desenvolvimento. Para isso, é preciso uma sinalização efetiva em termos de reformas. Se isto não for feito, o meio termo será meio nebuloso e será entendido pelo mundo como uma concessão populista que nos levará a uma situação muito difícil dentro de poucos meses.

Folha - Como será a relação entre o MST e o governo?
Lamounier
- O MST, desde que surgiu na cena nacional, fez do fato consumado a sua fonte de influência. Invadia para depois conversar. Com isso criava uma situação dramática, que repercutia na imprensa mundial e daí a liderança do movimento derivava sua condição de interlocutor do governo. Nos governos anteriores, ele contou com um certo beneplácito da sociedade, porque podia-se criar no imaginário do debate público a idéia de que se tratava de um movimento de excluídos contra um governo dito conservador. Mas hoje não temos um governo conservador. Se o MST recorrer ao fato consumado para se contrapor ao governo Lula, tenderá ao isolamento. Não contará com o beneplácito da sociedade.

Folha - E do governo?
Lamounier
- O governo, se conceder o beneplácito a um movimento que está agindo dessa maneira, estará desfigurando sua própria origem, que é a de um partido de esquerda que buscou, pela via democrática, a maioria eleitoral para governar.



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