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ENTREVISTA DA 2ª
ANTÓNIO DAMÁSIO
Neurocientista português radicado nos EUA diz que até mesmo a razão tem suas raízes no corpo
Para o cérebro, sexo e amor não passam de sentimentos
CLAUDIO ANGELO
EM CAMBRIDGE (EUA)
A ciência acaba de invadir um
dos últimos territórios livres da
poesia. Um livro recém-lançado
no Brasil afirma que os sentimentos não passam de noções que o
cérebro cria sobre o estado do
corpo. Longe de serem abstrações, são fenômenos fisiológicos
bem definidos -e fundamentais
tanto à sobrevivência quanto à
construção da razão.
A hipótese é do pesquisador
português António Damásio, do
Departamento de Neurologia da
Universidade de Iowa (EUA), e
está delineada na obra "Em Busca
de Espinosa" (Companhia das Letras). Segundo Damásio, estados
de espírito como tristeza, orgulho,
empatia e amor são manifestações de um mecanismo biológico
responsável pelo equilíbrio geral
do organismo (a homeostase).
"Aquilo que define alegria ou
tristeza é a descrição do estado em
que o corpo fica quando nós temos alegria ou tristeza", diz. Da
mesma forma, o amor romântico
seria em parte uma invenção social, elaborada a partir de um sentimento básico: a atração sexual.
Experimentos feitos pelo grupo
de Damásio com técnicas de imageamento do cérebro, mostram
um aumento na atividade de zonas cerebrais específicas toda vez
que os pacientes testados declaravam estar sentindo uma emoção.
Outros estudos da equipe, mais
surpreendentes, revelaram que
portadores de lesões nessas áreas
eram incapazes de sentir vergonha ou compaixão.
Essa integração corpo-mente já
havia sido intuída no século 17 pelo filósofo holandês Benedictus
Spinoza, ou Bento Espinosa
(1632-1677), que é tido por Damásio um patrono não-reconhecido
da neurobiologia. Espinosa foi excomungado por negar a divisão
entre matéria e espírito.
Damásio dedica seus estudos a
entender a base biológica de processos mentais, como as emoções
e a consciência, com o mesmo objetivo: enterrar o dualismo. Ele já
havia proposto em 1994, no livro
"O Erro de Descartes", que as
emoções são fundamentais para a
tomada de decisões pelo cérebro
-e que são racionalíssimas, sim.
Os sentimentos adicionam uma
ordem de complexidade às reações emocionais. "Se só tivéssemos a emoção, a emoção viria e
passaria, e não haveria maneira
de marcar fortemente aquilo que
a emoção é. Tendo sentimento,
nós temos a possibilidade de tomar consciência daquilo que
aconteceu em relação a certo objeto. Permite-nos também colocar na memória essa ligação", diz
o pesquisador. O que torna os animais capazes de sentimentos
complexos -entre eles os humanos- mais flexíveis para lidar
com ameaças e oportunidades.
Em entrevista à Folha, concedida por telefone de seu escritório
em Iowa City, Damásio falou sobre amor, agressão, controle social e Deus -para ele, uma das
grandes invenções do cérebro.
A seguir, trechos da entrevista:
Folha - O argumento central do
livro é que os sentimentos são apenas
a maneira como o
cérebro percebe o
estado do corpo.
Como o sr. chegou
a essa conclusão?
António Damásio
A conclusão vem
de uma série de linhas de investigação. Umas teóricas, desenvolvidas
ao longo de muitos anos, e outras
experimentais. Do
ponto de vista da
minha intuição,
sempre me pareceu que sentir
uma emoção, antes de mais, era
sentir o que se
passa com o corpo
quando temos essa emoção. Portanto, quando nós
temos um estado de alegria ou um
estado de tristeza, aquilo que define alegria ou tristeza é a descrição
do estado em que o corpo fica
quando temos alegria ou tristeza.
Folha - Então só me sinto feliz a
partir do momento em que as áreas
do meu cérebro detectam uma mudança fisiológica no meu corpo?
Damásio - Exato. Há outro sistema, chamado "as-if body loop"
[algo como "circuito pseudocorporal"]. Por vezes, a alteração pode ser construída muito rapidamente nos próprios mapas do cérebro. Em vez de você ter de ir até
o corpo, mudar o corpo e avaliar o
que aconteceu com o corpo, você
pode alterar diretamente o estado
dos mapas (representações) do
corpo no cérebro. O resultado final é o mesmo: você só pode sentir aquilo que está nos mapas do
corpo, mas não é preciso que os
mapas correspondam à realidade.
Folha - Para que servem os sentimentos?
Damásio - Os sentimentos permitem-nos chamar a atenção para alguns estados emocionais que
estão ligados a certas causas. Se só
tivéssemos a emoção, a emoção
viria e passaria e não haveria maneira de marcar fortemente aquilo que a emoção é e a maneira como ela se relaciona com um determinado objeto.
Tendo sentimento, nós temos a
possibilidade de
tomar consciência
daquilo que aconteceu em relação a
certo objeto -a
pessoa amada, ou
alguma causa de
perigo. Permite-nos também colocar na memória
essa ligação. O
sentimento é quase o princípio da
nossa vida autoconsciente, em
que nós podemos
nos lembrar do
que é bom e daquilo que é mau.
Portanto, nos permite fazer escolhas mais inteligentes. É um elemento fundamental da construção
da memória e da
própria razão.
Os neurocientistas não gostam do
termo "pílula da felicidade", mas
seria algo próximo disso?
Damásio - Não propriamente,
porque não gosto do termo, mas
tudo tem a ver com a forma como
a sociedade aceita ou não certas
intervenções. E eu não gosto da
idéia de as pessoas tomarem pílulas da felicidade, em vez de verificarem como funcionam e analisarem os próprios problemas. Mas
tomar pílulas para não estar deprimido e não sofrer com dor física, isso é absolutamente correto.
Folha - Para a maioria das pessoas é difícil imaginar abstrações
como compaixão e amor romântico
como derivadas de um mapeamento cerebral do corpo, um mecanismo aparentemente simples.
Damásio - Não parece assim tão
difícil de imaginar. Essa é uma das
grandes contribuições da literatura e da poesia clássicas, relacionar
coisas como o amor romântico, a
atração sexual ou a compaixão
com o corpo. Você encontra isso
em Shakespeare, em Dante, nos
românticos ingleses.
Todos eles perceberam muito
bem que o amor e coisas quetais
estão relacionados com o corpo.
Essa é a razão pela qual eu coloquei o Espinosa de uma forma tão
saliente no livro. Ele teve a intuição clara de que o corpo era absolutamente decisivo para a emoção, que não é possível conceber
emoção sem a alteração do corpo.
Folha - O amor, no caso, seria
uma construção cultural, e o real
sentimento seria a atração sexual?
Damásio - Sim, pode-se construir dessa maneira. Eu acho que
há um elemento básico, que é a
atração sexual, que é totalmente
corporal, como é fácil perceber,
que está ligado à homeostase, a
regulação biológica que vem da
evolução. Mas depois também há
certos estados emocionais que
têm a ver com dedicação ao outro,
compaixão e uma série de outras
emoções de tipo social que estão
ainda relacionadas com o corpo,
elas próprias também transmitidas pela evolução. E depois há toda uma construção cultural, que
vem juntar muitas outras dimensões intelectuais àquilo que começa como uma variação emocional
relativamente simples.
Folha - Há sentimentos mal-adaptativos?
Damásio - Imensos. Por exemplo, as emoções que levam a
agressão e violência, zanga, orgulho, desprezo -são sentimentos
extremamente negativos, que têm
uma raiz evolutiva muito antiga.
Eram úteis quando a organização
social era simples e hoje podem
ser nefastos. Até mesmo o medo é
um sentimento extremamente
importante e valioso, na maior
parte dos casos, mas que pode ser
negativo e levar à doença.
Folha - O conhecimento cada vez
maior de neurobiologia pode substituir o controle social dos sentimentos pelo controle químico?
Damásio - Pode ser que o controle químico possa ajudar. Mas o
problema, para começar, é que o
controle químico não é uma realidade. Claro, quando as pessoas
bebem álcool, ou tomam drogas
como o Prozac, estão fazendo um
controle químico, mas extremamente grosseiro.
Quando nós tivermos um conhecimento detalhado [do cérebro], é possível que esse controle
químico seja melhor. Mas o problema continuará sendo cultural,
porque a forma como esse controle químico pode ser utilizado é
extremamente problemática. Por
exemplo, você não vai querer que
esse controle químico esteja nas
mãos do poder político. Se ainda
dermos mais armas aos que já nos
controlam pelas idéias, estamos
mesmo lixados.
Folha - O sr. escreveu em 1999
que em 2050 nós teremos conhecimento suficiente do funcionamento do cérebro para eliminar o dualismo corpo-mente. Quais são as
implicações éticas que o sr. vê nisso? Estamos falando de uma sociedade sem Deus...
Damásio - A eliminação da dualidade corpo-espírito para mim
não é um problema. O que é um
problema é passar-se de uma sociedade na qual todas as nossas
tristezas e angústias eram resolvidas por meio da fé para uma sociedade na qual
temos de resolver
as angústias com
coragem de pensar que pode ser
que não haja um
Deus a quem se
possa pedir ajuda.
E que, por outro
lado, a ajuda tem
de ser construída
como instrumento social, com o
sentido de justiça,
compaixão, respeito, tratamento
de doenças.
Folha - Isso não
sugere a transferência da autoridade moral da igreja
para o laboratório?
Damásio - Isso é
completamente
disparatado. Eu
tenho o maior respeito pela fé e pela
crença que as pessoas têm. Se há alguém que acredita em Deus e utiliza a fé como suporte para sua felicidade, isso me dá um imenso
gosto.
O que não quero é que venham
negar a possibilidade de explicar
biologia e o Universo de uma forma científica. Não há razão nenhuma para a ciência ser intolerante da crença religiosa, até porque o impulso religioso é uma
tentativa muito inteligente dos seres humanos de resolverem seus
problemas.
Eu discuto no livro a idéia de
que há uma enorme beleza em
tentar resolver o nosso drama, em
lidar com a mortalidade e a dor,
de uma forma religiosa. É uma
das grandes invenções dos seres
humanos.
Folha - O sr. afirma no livro que
comportamentos éticos podem ter
uma base neurobiológica. Como
essa idéia pode ser testada?
Damásio - De muitas maneiras.
Estamos, no nosso laboratório e
em outros, vendo a forma como
lesões em certas zonas do cérebro
de crianças, adolescentes e adultos podem levar ao bloqueio de
certos comportamentos éticos. O
modo como pode levar à perda da
compaixão, do sentido da vergonha, a comportamentos sociopáticos e tudo o mais.
Folha - Como tratar essas pessoas? Existe um tratamento para
impiedade, por exemplo?
Damásio - Aquilo que estamos fazendo primeiro é
perceber como isso pode acontecer.
Se é possível ou
não interferir nesses comportamentos, é outra
história.
Folha - Espinosa
foi um cidadão de
origem portuguesa, escrevendo
num país estrangeiro, numa língua
estrangeira. Ele é o
seu herói, ou seu
alter-ego?
Damásio - Não é.
Se é, é inconsciente (risos). Espinosa é uma figura
admirável, porque
é uma pessoa capaz de defender
suas convicções,
sabendo que elas
vão lhe fazer a vida mais complicada. Ele teve uma
intuição sobre aquilo que as emoções são que é extremamente valiosa, que precede a intuição do
William James, que admiro imensamente.
Espinosa chegou primeiro.
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