São Paulo, sábado, 03 de maio de 2008

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Arrozeiro agiu de má-fé, diz antropólogo

Paulo Santilli, que fez o laudo de demarcação da Raposa/Serra do Sol em 1992, afirma que fazendeiros só vieram depois

Pesquisador diz temer que STF abra "temporada de caça" a terras demarcadas caso permita ocupação de área em RR por não-índios


CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA

O Supremo Tribunal Federal pode abrir uma "temporada de caça" às terras indígenas já demarcadas no país caso reduza a área da terra indígena Raposa/ Serra do Sol, em Roraima, para permitir a permanência dos plantadores de arroz que se recusam a desocupar a área.
A opinião é do antropólogo Paulo Santilli, da Funai (Fundação Nacional do Índio). Foi ele quem produziu, em 1992, o laudo técnico que levou à identificação e à posterior demarcação (em 1998) da área.
Segundo Santilli, o processo de homologação da terra indígena já cumpriu todos os trâmites legais e, desde 2005, por decreto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a área contínua da Raposa/Serra do Sol é o que se chama de "próprio nacional" -ou seja, terra da União.
O Supremo Tribunal Federal determinou, no mês passado, a suspensão de uma operação da Polícia Federal para retirar os fazendeiros liderados por Paulo César Quartiero da área. E, conforme a Folha revelou na última quarta-feira, há no tribunal uma tendência a modificar o modelo de demarcação contínua da reserva, de modo a permitir a permanência de não-indígenas.
"Uma decisão dessas, de não-reconhecimento de um decreto presidencial, colocaria uma situação inédita e uma crise deflagrada em toda a política indigenista dos últimos anos", afirmou Santilli. Segundo ele, nunca houve caso de uma revisão desse tipo após a área indígena ser declarada próprio nacional. "Isso equivale a abrir uma temporada de caça."
Ou seja, caso o modelo de demarcação contínua da Raposa/Serra do Sol seja revisto, todas as terras já demarcadas e homologadas podem ser questionadas judicialmente também. "Está tudo sob questão, e de uma forma, eu diria esdrúxula. Todo o procedimento [de demarcação] pressupõe estudos etnológicos e antropológicos. Se isso pode ser revisto sem nenhum estudo e sem critério antropológico, vira um arbítrio total", afirmou.

Má-fé
A situação é mais grave, segundo o antropólogo, porque os seis arrozeiros que se recusam a sair da reserva indígena ocuparam a área "de má-fé", depois que ela já havia sido delimitada, em 1992.
"Quando foi feito o levantamento fundiário para apurar quais eram os ocupantes não-índios e que deveriam ser indenizados, em 1992, eles não estavam lá. Nesse levantamento não consta o nome desses caras lá como ocupantes da terra indígena. Eles vieram a comprar posses [títulos de terra provisórios] de outros que estavam havia mais tempo lá", diz.
"Eles vieram a se instalar depois na terra indígena, e nenhum deles mora, reside na terra. São negócios que eles têm lá já depois da terra demarcada", continua Santilli. "Isso caracteriza má-fé."

"Muralhas do Sertão"
A antropóloga Nádia Farage, da Unicamp, que trabalhou em Roraima, afirma que o argumento de soberania nacional invocado pelos militares para impedir a demarcação contínua da Raposa é "inconsistente". Afinal, diz, foram os índios os responsáveis pela incorporação daquela região ao Brasil em 1904, após um litígio com a Guiana Inglesa pela definição da fronteira. "O domínio colonial português se fez valer por meio dos aldeamentos indígenas", afirmou. Em sua tese de mestrado, publicada na forma do livro "As Muralhas dos Sertões", de 1991, Farage argumenta que os índios de Roraima foram um instrumento diplomático do Brasil -as "muralhas dos sertões", nas palavras de Joaquim Nabuco.
Farage cita o ex-ministro da Justiça Jarbas Passarinho para refutar a tese da ameaça à soberania. Ao ratificar a demarcação da terra ianomâmi, em 1992, sob protestos militares, Passarinho disse que a demarcação visa fixar a superfície e não obsta a proteção militar da fronteira (garantida pela Constituição). "O argumento de uma improvável ameaça à soberania nacional é apenas o espantalho que protege a roça de arroz", afirma.


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