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São Paulo, domingo, 03 de agosto de 2003

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Professora de filosofia da USP afirma que país não vive crise social, mas, pela primeira vez, plenitude democrática

Democracia é conflito, não ordem, diz Chaui

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

O que está acontecendo no país, segundo a professora de filosofia da USP Marilena Chaui, não é uma crise social, mas sim, pela primeira vez na história, o pleno funcionamento da democracia.
"É uma coisa espantosa e certamente deixa as pessoas desorientadas porque é uma experiência inédita", afirma.
Contra a idéia "liberal" de que a democracia é "o regime da lei e da ordem", a filósofa diz que "a democracia é o único regime político no qual os conflitos são considerados o princípio mesmo do seu funcionamento".
Numa entrevista que começou motivada pelas questões da enquete da Folha sobre a suposta crise social, Chaui tornou impossível a simples sequência de perguntas prevista.
Disse que considerava inviável saber se o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem perdido apoio entre os intelectuais, já que os professores universitários paulistanos analisariam o governo Lula de forma diversa daquela de seus pares no resto do país.
Para ela, "a intelectualidade tucana é mais forte e numerosa em São Paulo" e termina por pautar a imprensa e o debate, mesmo quando se trata de reproduzir críticas de intelectuais petistas. Leia a seguir trechos da entrevista.

 
Folha - Queríamos conversar com a sra. sobre essa suposta situação de crise social...
Marilena Chaui -
Que crise social? Quem vê crise social é a Folha de S.Paulo.

Folha - A sra. acha que não cabe falar em desordem social no país?
Chaui -
O que existe é democracia em pleno funcionamento. É uma coisa espantosa e certamente deixa as pessoas desorientadas porque é uma experiência inédita no país. Mas é a mais profunda experiência de democracia que esse país já teve.

Folha - E quais são os sinais disso?
Chaui -
O fato de que todas as categorias profissionais e todas as classes sociais se manifestam livremente, a favor e contra as medidas governamentais.
Os grevistas não são desqualificados como caipiras, atrasados, incompetentes. São levados a sério e se negocia com eles. Há uma claríssima discussão sobre direitos. Tanto a questão de direitos adquiridos e se estão ou não sendo feridos por propostas de reformas quanto a de direitos a serem conquistados, como é o caso da reforma agrária.
Em vez de falar em crise e em desordem, que são os temas preferidos da classe dominante brasileira na sua tradição autoritária, é hora de comemorarmos o fato de que finalmente este país está conhecendo uma experiência democrática. Democracia não é, como querem os liberais, o regime da lei e da ordem. Democracia é o único regime político no qual os conflitos são considerados o princípio mesmo do seu funcionamento.

Folha - A segunda pergunta seria o que o governo Lula poderia fazer quanto aos atuais conflitos para melhorar a situação do país, mas se eles são o princípio da democracia, não faz sentido...
Chaui -
...esperar melhorar a situação. Ao contrário, seria destruí-la tentar fazer com que o conflito não possa se exprimir.
A tragédia da história política brasileira tem sido o fato de que toda vez que os conflitos procuram se exprimir legitimamente, imediatamente eles recebem o nome de crise. E a palavra crise para a direita brasileira significa perigo e desordem. É por isso que a democracia nunca vai para frente. Espero que dessa vez vá.
Espero que o conflito possa se realizar. Que o seu trabalho histórico possa se realizar.

Folha - Esse "trabalho" pode influenciar o rumo do governo?
Chaui -
Mas é óbvio. Não estamos numa monarquia absolutista. Na democracia, graças ao trabalho do conflito, a sociedade diz ao governo o que ela pensa, o que quer e como quer que seja feito.

Folha - O modo como o MST ou os sem-teto têm apresentado suas reivindicações é legítimo?
Chaui -
Mas eles sempre fizeram assim. Em outras ocasiões, vimos a resposta militarizada por parte do governo ou a resposta pela violência armada por parte da oligarquia rural. Dessa vez, o novo é o fato de que a resposta às reivindicações é: "São justas, não são caso de polícia". Só que há um "timing" para atender a essas reivindicações em virtude de o governo ter recebido uma herança que faz com que tenha que agir com lentidão maior que a desejável.

Folha - E do lado dos ruralistas que se armam? É caso de polícia?
Chaui -
Aí é caso de polícia. Sabemos que eles dispõem de recursos extraconstitucionais que eles sempre usaram. Foi sempre apanágio e direito por parte dos ruralistas usar a violência como a forma de ação no campo.

Folha - Finalmente, a terceira pergunta da enquete: entre os intelectuais, o governo Lula perdeu apoio?
Chaui -
Não sou capaz de dizer. A posição dos intelectuais em outros Estados e cidades não corresponde ao que temos visto acontecer em São Paulo, em particular na USP. Há diferenças regionais. Os intelectuais de outros Estados parecem lidar de forma diferente com o governo Lula.

Folha - Por quê?
Chaui -
Entre outros motivos, a intelectualidade tucana é mais forte e numerosa em São Paulo. Ela, de um modo geral, pauta os debates.

Folha - Mesmo que a imprensa ouça intelectuais petistas insatisfeitos, a discussão está sendo pautada pela intelectualidade tucana?
Chaui -
Sim. Não acho que a intelectualidade petista está discutindo a mesma coisa que os tucanos. Mas a pauta é tucana. Quando os primeiros petistas, como o [sociólogo] Chico de Oliveira e [o filósofo] Paulo Arantes, iniciaram as críticas ao governo, as críticas foram pela esquerda. Mas foram encampadas pelo tucanato, que passou a fazer uma crítica pela direita e passou a pautar os temas que valeriam a pena ser discutidos. É um fenômeno paulistano de hegemonia do tucanato na esfera da crítica. Que se aproveita de um clima jornalístico favorável.



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