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São Paulo, domingo, 03 de agosto de 2003

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GUERRA NA AMAZÔNIA

Brasil faz campanha para anular registro de propriedade da marca cupuaçu concedido à empresa japonesa

O cupuaçu é nosso

PLÍNIO FRAGA
DA REPORTAGEM LOCAL

A faixa de 14 metros de comprimento estendida no Congresso Nacional dizia: "O cupuaçu é nosso". Até chegar ali, há duas semanas, percorreu os 2.139 km que separam Brasília de Presidente Figueiredo (AM).
Foi nessa cidade do norte do Amazonas que, em abril deste ano, organizações não-governamentais iniciaram movimento que acreditam encontrar paralelo em importância à campanha do "Petróleo é Nosso" -mobilização que completa 50 anos de seu encerramento daqui a dois meses.
Cupuaçu é o nome -originado do tupi- de uma fruta tropical semelhante ao cacau. Pode pesar mais de 1 kg e só é ocasionalmente encontrada fora da Amazônia.
Não poderia ser, por suas origens, mais brasileira. Mas não é assim vista pelas agências oficiais de marcas e patentes do Japão, dos Estados Unidos e da Europa.
ONGs (organizações não-governamentais) ligadas à preservação ambiental, apoiadas pelo Ministério das Relações Exteriores brasileiro, contestam, desde 20 de março, a concessão dos direitos de comercialização da marca "cupuaçu" à empresa japonesa Asahi Foods, sediada em Kyoto.
A Asahi Foods criou uma empresa, a Cupuacu International [sem cedilha], que pediu também o registro de patente para os métodos de produção industrial do cupulate, o chocolate obtido a partir da semente de cupuaçu.
O resultado da disputa em torno da propriedade da marca e dos direitos da patente industrial só deve sair entre dezembro deste ano e setembro de 2004.
Na semana passada, circularam boatos na Amazônia de que a Asahi Foods havia desistido do registro. Mas a empresa negou à Folha ter aberto mão da disputa.

Surpresa na descoberta
A cessão dos direitos de propriedade da marca cupuaçu à empresa japonesa foi descoberta por integrantes do Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), uma rede de ONGs, ambientalistas, pequenos agricultores e associações de extrativistas de produtos florestais.
Um grupo de produtores tentava exportar bombons e geléias de cupuaçu para a Alemanha, em setembro de 2002, quando foi alertado pelos importadores de que não podia usar o termo cupuaçu nos rótulos, por se tratar de marca registrada de empresa japonesa.
A partir daí, o GTA iniciou uma busca nos escritórios de marcas e patentes do Japão, dos Estados Unidos e da Europa. Descobriu pedidos envolvendo não só o cupuaçu como a andiroba e a copaíba -árvores de onde são extraídos produtos cosméticos, energéticos e medicinais-, o biribiri -planta da qual os indígenas retiram sementes usadas como contraceptivo- e até mesmo da ayahuasca, chá alucinógeno usado em rituais religiosos.

Analgésico do sapo
Na semana passada, o deputado federal Henrique Afonso (PT-AC) foi à tribuna da Câmara dizer que laboratórios europeus haviam pedido direito de patente sobre a produção de analgésicos com base em demorfina e deltorfina, obtidos a partir da secreção do sapo kambô, utilizada na medicina indígena amazônica.
"A campanha "O Cupuaçu é Nosso" é simbólica e de longo prazo. Surgiu da necessidade de alertar sobre o que está acontecendo na Amazônia. O cupuaçu é o caso mais importante porque foi concedido o direito de marca a uma empresa privada, mas é um exemplo do que pode acontecer com outros produtos", afirma o webdesigner austríaco Michael Schmidlehner, 38, presidente da ONG Amazonlink.
Ele é um dos líderes da campanha "O Cupuaçu é Nosso", que comanda protestos contra a Asahi Foods principalmente por meio do envio de correio eletrônico (www.amazonlink.org.br).
Casado com uma brasileira, Schmidlehner mora em Rio Branco (AC) desde 1995. Decidiu trocar a Áustria pelo Brasil depois de férias em que percorreu o país de moto, do Sul ao Norte, onde se fixou, interessado na Amazônia.
Schmidlehner diz acreditar que dificilmente os escritórios de marcas e patentes mantenham o registro do cupuaçu nas mãos de uma empresa depois de informados de que se trata de uma matéria-prima, sobre a qual não são aceitos direitos de propriedade.

Cupulate
A disputa mais importante comercialmente no caso envolve a produção de cupulate, o chocolate obtido a partir de suas sementes. A Asahi Foods entrou com um pedido de patenteamento da produção industrial desse tipo de chocolate e de óleos extraídos da semente da fruta.
Pelas leis de proteção à propriedade industrial, marca é um sinal distintivo de um produto que pode ser registrado desde que não haja outro com igual batismo.
Já a obtenção de direito de patente depende de três requisitos básicos para a sua obtenção -novidade, inventividade e aplicação industrial. Obtido o registro de marca ou patente o detentor adquire o direito de exclusividade sobre eles, podendo cobrar de quem quiser usá-los.
A presença de centenas de estrangeiros entre as inúmeras ONGs integrantes do Grupo de Trabalho Amazônico é um dos argumentos usados pela Asahi Foods para dizer que há um clima de mistificação no debate.
"Estamos profundamente desapontados. A opinião pública brasileira parece inclinada em favor da campanha que tem sido conduzida por ONGs européias", afirmou à Folha Nagasawa Makoto, diretor da Asahi Foods e da Cupuacu International.
"A maior parte do discurso deles é baseada em exageros e não na verdade da filosofia de marcas e patentes do sistema industrial. Estão tentando fazer mais barulho do que compreender totalmente a situação", declarou.
Os representantes do GTA não tratam o caso do cupuaçu como uma forma de biopirataria. Chamam de "biogrilagem". A obtenção de um analgésico a partir de um sapo da Amazônia estaria mais próxima do que se chama de biopirataria, desenvolvimento de um produto a partir da chamada sabedoria tradicional.
A "biogrilagem" seria tomar para uma empresa os direitos de comercialização de um nome ou produto de conhecimento, em geral, de comunidades indígenas.
No caso do cupuaçu, os produtores brasileiros não querem os direitos sobre a marca, mas poder comercializar a fruta livremente, sem ter de pagar por isso, o que teria de ocorrer se mantido o registro obtido pela Asahi Foods.
A produção nacional deve alcançar neste ano mais de 500 toneladas, sendo 10% delas exportadas para o Japão, um negócio que envolve cerca de US$ 2 milhões.
No Congresso Nacional, os organizadores da campanha "O Cupuaçu é Nosso" conseguiram a convocação de uma audiência pública conjunta das comissões da Amazônia e do Meio Ambiente, quando serão ouvidos a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha e o diretor do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, Eduardo Velez, no dia 21 de agosto.
Em setembro, na véspera da reunião da Organização Mundial do Comércio, em Cancún, será realizado um seminário especial sobre biopirataria e lei de patentes no qual os brasileiros vão expor sua campanha.
Eles reivindicam direitos de propriedade sobre a sabedoria tradicional. Assim, comunidades poderiam receber dinheiro de quem comercializasse produtos desenvolvidos a partir dos conhecimentos acumulados por elas.
A pregação do "Petróleo é Nosso" durou seis anos (entre 1947 e 1953), dividiu o país entre "nacionalistas" e "entreguistas" e resultou na criação da Petrobras. O que pode sair da campanha do cupuaçu? "Não podemos ficar inertes diante da ineficácia da legislação atual sobre as distorções geradas pelas práticas de registros de marcas e patentes no mundo", responde Michael Schmidlehner.



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