São Paulo, domingo, 04 de janeiro de 2004

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ELIO GASPARI

A casa da sogra não é aqui

O presidente George Bush está envenenando a relação dos Estados Unidos com o mundo. Seu governo decidiu que a partir de amanhã os estrangeiros que entrarem em território americano serão fotografados e deixarão as impressões digitais num banco de dados (o procedimento será feito sem sujar a mão das pessoas). Ficarão fora da regra os nacionais de 27 países, quase todos europeus. É provável que a medida atinja 25 milhões de pessoas. A nação brasileira já passou pelo constrangimento de saber, em 2001, que seu ministro das Relações Exteriores, Celso Lafer, teve que tirar os sapatos em duas revistas diferentes durante suas viagens aos Estados Unidos (não foi único, a impertinência atingiu o russo e a chilena).
Bem aventurado o juiz federal Julier Sebastião da Silva, que ordenou à polícia a imediata reciprocidade: na quinta-feira os americanos começaram a ser fotografados e identificados pelas digitais ao entrar em território brasileiro. Yes, nós temos juízes.
É possível que a ordem de Silva seja contestada, mas é necessário que o governo brasileiro dê alguma resposta ao tratamento que seus nacionais vêm recebendo da burocracia americana. Lula repete, com razão, que o governo deve defender os interesses dos brasileiros. Está diante de um belo caso.
Admita-se que a decisão do juiz seja uma demasia. Ele é o diretor jurídico da Associação dos Juízes Federais. Sua comparação das leis de Bush com "os piores horrores do nazismo" é um horror de exagero histórico. Mesmo assim, há campo para a reciprocidade. Depois de colecionar abraços de ditadores como o eterno Fidel Castro, o jovem Assad e o velho Gadaffi, Lula tem a oportunidade de praticar um ato diplomático que tem a ver com com a vida dos cidadãos que governa.
O governo americano exige que os brasileiros que pretendem ir aos Estados Unidos compareçam aos seus consulados para entrevistas pessoais. Um cidadão que vive no Mato Grosso do Sul deve vir a São Paulo para cumprir essa exigência. É inteiro direito dos americanos pedir o que bem entenderem, pois o país é deles e só vai para lá quem quer. É direito dos brasileiros pedir aos americanos que cumpram o por cá o que exigem por lá.
Ocorreram casos grotescos de humilhação de brasileiros que entravam, com a devida documentação, em território americano. Há poucos meses uma médica, ex-presidente da Sociedade Mineira de Cardiologia, foi deportada quando viajava para uma reunião internacional. Tecnicamente, tinha o visto errado, pois o carimbo de turista pode ser considerado impróprio para quem vai a um congresso.
A bem-aventurança posta na mesa pelo juiz Julier Sebastião da Silva deve ser mantida, ou refinada. Coisa assim: todos os americanos que pedirem visto para entrar no Brasil recebem um folheto com a descrição das exigências que o seu governo faz para a entrada de brasileiros. Seriam convidados a assinar um documento, pedindo ao governo de Pindorama que não os trate como o governo americano trata os brasileiros. Quem pedir, leva. Quem preferir a reciprocidade, ganha o tratamento George W. Bush.
O que não se pode é deixar o doutor Bush acreditar que isso aqui é a casa da sogra.

Há um partido sem rumo, é o PSDB

A civilizada aproximação de FFHH e Lula ajudou a expor o tamanho da crise pela qual passa o PSDB. É muito maior que a do PT.Enquanto o príncipe tucano sente-se melhor perto do governo que considera uma prorrogação de seu reinado, o partido divide-se entre a adesão e a falta de rumo. Os tucanos governam os Estados de São Paulo e de Minas Gerais e não têm candidato a prefeito em nenhuma das duas capitais. Uma situação dessas não resulta de uma falta de quadros. É falta de idéias mesmo.

Os livros de Portinari estavam no sebo

Como parte dos festejos do centenário do nascimento de Candido Portinari, vai aqui uma colaboração para o rastreamento do que ainda possa sobrar de sua biblioteca. Portinari tinha pelo menos uns cinco mil volumes e devia gostar muito deles. Quase toda a biblioteca estava encadernada, com as lombadas em couro marrom, ligeiramente trabalhado com relevos. Tinham as iniciais C.P. Em meados dos anos 60, essa biblioteca apareceu num sebo de segunda categoria do centro do Rio de Janeiro. Todas as páginas que tinham dedicatória estavam arrancadas. Um curioso resolveu desafiar a competência do delinquente que canibalizou a biblioteca e teve a prova: um pequeno volume do poeta italiano Giuseppe Ungaretti dedicado "all'amico" Portinari. De lambuja, levou a preço de banana uma primeira edição de Casa Grande & Senzala, com a dedicatória arrancada.

Depois do aço, a guerra do camarão

A indústria da pesca de camarões dos Estados Unidos denunciou seis países exportadores (inclusive o Brasil) acusando-os de venderem suas marcas a preços abaixo do valor de mercado. Uma aula demonstrativa do zelo com que os Estados Unidos defendem os seus interesses. O Congresso americano já deu US$ 35 milhões para socorrer os produtores. O governo do Estado da Louisiana reservou US$ 600 mil para ajudar as empresas a pagar as custas do processo contra os seis países. Ele deve custar mais de US$ 6 milhões. Se alguém propusesse coisa parecida em Brasília a ekipekonômica satanizaria os empresários, dizendo que estão procurando um cartório. A indústria brasileira de criação de camarões tem sete anos de vida, duplica de tamanho a cada três anos e tornou-se a de mais alta produtividade do mundo. Ela rende US$ 240 milhões anuais para a balança comercial. Numa previsão otimista, pode vir a exportar US$ 500 milhões em 2005. Metade das vendas são feitas para os Estados Unidos. História de sucesso de empreendedores nordestinos, ela emprega mão-de-obra de baixa escolaridade, aquela que os sábios condenaram ao desemprego. Por enquanto, a única defesa dos países que produzem camarão em cativeiro veio da associação de compradores dos Estados Unidos. Denunciaram os produtores dizendo que, se eles prevalecerem, o consumidor vai pagar mais caro pelo camarão de cada dia.

Se Saddam falar

Se Saddam Hussein contar o que sabe aos seus interrogadores americanos, pode sobrar para os sábios do programa nuclear brasileiro durante os anos 70. É fato sabido que em 1981 o governo brasileiro vendeu 27 toneladas de pasta de urânio ao programa nuclear iraquiano. Ainda não se conseguiu saber direito a história de uma ilha em Angra dos Reis que teria sido passada a Saddam ou a um de seus protegidos. Era o troco de contratos de engenharia assinados pelo ditador. A Kroll já andou atrás dessa ilha.

Real malvadeza

Luís Favre, marido da prefeita Marta Suplicy, ganhou um apelido: Conde D'Eu.

Diluição

Na ponta do lápis, a corrente de esquerda do PT, que somava 10% da militância no Encontro Nacional de 2001, chegará à reunião de 2005 com metade desse tamanho. Isso não se deverá a uma migração. Será consequência da diluição numérica da esquerda militante pelo recrutamento dos comissários José Dirceu e Genoino.

Vento na cabeça

Passados três meses do furto de um bom pedaço do acervo da mapoteca do Itamaraty, não se sabe quem levou o butim, nem onde ele foi parar. Sabe-se, contudo, que a chave da mapoteca já tinha sumido do lugar onde era guardada. Depois reapareceu.

Espertalat

Depois da explosão italiana da matriz da Parmalat, percebe-se que no Brasil ela usa um salto mais alto do que devia.Em 2002 ela protegeu funcionários da Prefeitura de Ribeirão Preto informando ao Tribunal de Contas do Estado que fabricava um produto inexistente na sua linha e no catálogo de vendas: molho de tomate com ervilha.

MEMÓRIA

Conversa fiada

Com o propósito de ilustrar o debate em torno da instituição de cotas para para permitir a matrícula de negros aprovados no vestibular nas universidades públicas brasileiras, publicam-se abaixo algumas opiniões de políticos ilustres durante os debates daquilo que se denominava no final do século XIX de "questão servil".

A escravidão é condenável, mas a abolição é um perigo
Fala o deputado liberal Felício dos Santos, em 1884: "Senhores, não preciso dizer-vos que detesto a escravidão, como a detestam todos os brasileiros, todos os povos civilizados. (...) Ninguém no Brasil sustenta a escravidão pela escravidão, mas não há um só brasileiro que não se oponha aos perigos e às calamidades da desorganização do atual sistema de trabalho".

A Abolição é uma injustiça
Diz o deputado Almeida Nogueira, em 1884:
"Se a escravidão é uma violência, a emancipação sem a indenização, é uma violência da mesma natureza. Seria procurar reparar uma injustiça com outra injustiça".

A Abolição é uma ilegalidade
Com a palavra o valoroso Cansansão de Sinimbu:
"Sem indenização, a alforria de escravos, velhos ou moços, é um ataque ao direito de propriedade, garantido em toda a sua plenitude pela Constituição do Império".

O negro será o perdedor
Fala o deputado Dias Carneiro, em 1885:
"Que gênero de felicidade proporciona-se a um sexagenário, que passou toda a vida no cativeiro, onde formou hábitos, adquiriu necessidades, atou relações, oferecendo-lhe a liberdade quando mais precisa da proteção dos seus senhores, que em geral não lha negam."

A libertação é cruel
Explica o deputado Olímpio Campos, também em 1885:
"Não é humanitário, não é civilizador libertar escravos velhos. A liberdade como um favor da lei, a quem não pode gozar dela, é um presente cruel."

A Abolição pede calma
Fala o deputado Dias Carneiro, em 1871:
"Não devíamos, pois, fazer questão do tempo, porque ele é indispensável em questões desta ordem, que se prendem aos interesses sociais, por múltiplas relações; questões complexas, que devem resolver-se em todas as suas partes, e só o tempo é capaz de produzir uma solução harmônica".

A Abolição é demagogia
O deputado Moreira Barros achava imprudente deixar que o debate da questão servil prosperasse na rua:
"[Ele vai] dar aos escravos maiores esperanças do que as que podem corresponder à realidade, embalando esses pobres espíritos com idéias que não são exatas, que não têm o alcance que eles supõem, e que, introduzindo-os em erro, têm dado em resultado tantas calamidades, tantas injustiças".
Nenhum dos seis doutores tinha preconceito contra os negros, eles acreditavam que a questão servil devia ser resolvida com tempo e calma, muita calma. Serviço: as citações foram tiradas do livro "Entre a mão e os anéis - A lei dos sexagenários e os caminhos da Abolição no Brasil", da professora Joseli Maria Nunes Mendonça, da Universidade Metodista de Piracicaba, editado pela Unicamp.


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