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São Paulo, terça-feira, 04 de março de 2003

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OPERAÇÃO SOCIAL

Para Cesar Victora, da OMS, serviços de saúde de qualidade trariam mais resultado que projetos contra desnutrição

Morrer de fome é raro no país, diz especialista

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Em tempos de Fome Zero, um raciocínio interessante: a mortalidade infantil é hoje oficialmente de 29,7 por 1.000 nascidos vivos (IBGE, censo 2000). Caso inexistisse a desnutrição, ela cairia em apenas 2% ou no máximo em 14,5%, dependendo do critério utilizado para o cálculo.
É o que afirma o epidemiologista Cesar G. Victora, 51, consultor da OMS (Organização Mundial da Saúde), professor da Universidade Federal de Pelotas e também o autor, sob encomenda do Banco Mundial, de pesquisa publicada há dois anos sobre formas de reduzir a morte de crianças.
Comparando: um outro estudo da OMS revelou em 2000 que, sem desnutrição, a mortalidade infantil cairia pela metade em países como o Sudão, Etiópia ou Zâmbia. A situação brasileira é incomparavelmente outra.
Victora afirma que o Fome Zero é uma grande iniciativa, por chamar a atenção sobre as desigualdades. As crianças nas 20% de famílias mais pobres morrem seis vezes mais que as crianças na faixa de 20% das famílias mais ricas.
Mas o problema não está só na fome. Está "também no acesso a serviços de saúde de boa qualidade, cujo impacto potencial sobre a mortalidade infantil é bem maior do que o de qualquer programa contra a desnutrição", diz ele.
Victora rebate a afirmação do governo de que o país tem 44 milhões com problemas de alimentação: "Não se pode confundir pobreza com desnutrição e com fome. Fome é rara, desnutrição é intermediária, e pobreza é comum. É importante levar em conta essa distinção para não acharmos que o programa [Fome Zero" trará resultados maiores do que ele pode. Eu passo um terço ou um quarto de meu tempo em lugares da África ou da Ásia que são muito, mas muito pobres. O Brasil felizmente não tem nada a ver".
O Ministério da Saúde não tem estudo sobre o impacto da desnutrição na mortalidade infantil. A Folha foi informada pela Secretaria de Atenção à Saúde que a questão não foi pesquisada de forma sistemática pelas três áreas que acompanham a questão: saúde da criança, saúde do adolescente e alimentação e nutrição.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista de Victora.
 

Folha - Quanto cairia a mortalidade infantil se o país não tivesse crianças malnutridas?
Cesar Victora -
Há duas formas de fazer o cálculo. A primeira: 24% das mortes infantis se devem a doenças infecciosas, e, entre estas, 60% ocorrem em crianças desnutridas. Portanto, evitaríamos 14,4% das mortes se acharmos que, caso não fossem desnutridas, essas crianças não teriam morrido. Mas ao morrer desnutrida a criança não morreu necessariamente por desnutrição.

Folha - E o segundo cálculo?
Victora -
Seria o risco de morrer para crianças desnutridas, comparado ao das demais crianças. Temos no Brasil 5,7% de crianças com déficit de peso para a idade. Se reduzirmos isso para 2,3% (crianças magras por motivos não nutricionais, mesmo nos países desenvolvidos), só 2% das mortes infantis seriam prevenidas.

Folha - Qual das alternativas é metodologicamente a correta?
Victora -
Seria provavelmente esta última. Mas a literatura internacional, inclusive na OMS, tem usado a primeira. Poderíamos afirmar que, na melhor das hipóteses, não mais de 15% das mortes infantis seriam evitadas pela total eliminação da desnutrição.

Folha - Qual é a diferença entre fome e desnutrição?
Victora -
Fome e desnutrição são coisas diferentes. A fome é a sensação provocada por uma quantidade insuficiente de alimentos. As crianças são muito magras, têm pouco peso para a idade, são pele e osso. São casos que se vêem bastante na Somália, na Tanzânia, em Uganda, em Moçambique. São crianças que têm um déficit de peso para altura. No Brasil o problema atinge só 2,3% das crianças.

Folha - E a criança desnutrida?
Victora -
É quando a criança pode ter problemas na qualidade do alimento. A criança é baixinha. É o caso de 10,5% delas, no Brasil. Elas não passam necessariamente fome, mas sentem falta de proteínas ou alguns micronutrientes.

Folha - A desnutrição está sempre ligada à pobreza?
Victora -
Sem dúvida. A regra é a criança que come muita farinha, muito arroz e às vezes não está nem magra. Mas ela não cresce o que deveria crescer para a idade.

Folha - A OMS diz que em certos países muito pobres a mortalidade infantil cairia pela metade com boa nutrição. Por que não aqui?
Victora -
A situação brasileira é outra. Nestes países a maioria das mortes se dá por doenças infecciosas. No Brasil a maioria das mortes de crianças se dá o período neonatal.

Folha - Seu estudo mostra que não foi por causa da renda que a mortalidade infantil caiu bastante no Brasil, mas porque diminuiu a morte por diarréia. É a ação dos agentes comunitários de saúde?
Victora -
São os agentes, mas há também os efeitos da campanha de massa para o soro caseiro. É trabalho da Pastoral da Criança, de campanha da Rede Globo nos anos 80. A gente quase não vê mais morte por diarréia no Brasil.

Folha - A diarréia caiu a uma velocidade maior que a expansão das redes de saneamento básico.
Victora -
É verdade, por mais que a qualidade da água também tenha contribuído. A metade da queda da diarréia se dá pelo melhor atendimento médico, pelo soro, pelo agente de saúde, e a outra metade se dá por fatores extramédicos, como a mudança no saneamento e na amamentação.

Folha - O fato de a mãe ser bem alimentada dá a ela condições de se alimentar melhor e diminuir a mortalidade infantil?
Victora -
Não há quase desnutrição entre adultos no Brasil. Alimentar a mãe não é para nós uma solução para baixar a mortalidade infantil. Um estudo do professor Carlos Augusto Monteiro, da USP, demonstra até que estamos mudando o nosso padrão, da desnutrição para a obesidade.

Folha - Então não existe adulto que passa fome no Brasil?
Victora -
Existem muito poucos. Mas as mães magras no Brasil são 6,3%, o que já não é muito, mesmo porque mães magras em países ricos seriam 2% a 3%. Ela não é magra por ser desnutrida. Isso não significa, no entanto, que não haja bolsões de pobreza.

Folha - São esses bolsões os alvos do Fome Zero, certo?
Victora -
O Fome Zero tem a vantagem de o Brasil estar agora olhando pela primeira vez para os seus pobres. O enfoque e a vontade política são excelentes.

Folha - Dar alimento faz baixar a mortalidade?
Victora -
Não. Não baixa. O principal problema da mortalidade infantil está na qualidade do pré-natal e do parto, que são hoje em dia ainda muito ruins.

Folha - O governo diz haver 44 milhões de pessoas com problemas de alimentação. É isso mesmo?
Victora -
Isso não é verdade. Não se pode confundir pobreza com desnutrição e com fome. Fome é rara, desnutrição é intermediária, e pobreza é comum. É importante levar em conta essa distinção para não acharmos que o programa trará resultados maiores do que ele pode. Eu passo um terço ou um quarto de meu tempo em lugares da África ou da Ásia que são muito, mas muito pobres. O Brasil felizmente não tem nada a ver.

Folha - O que mudou em 50 anos, desde "A Geografia da Fome", do Josué de Castro?
Victora -
A desnutrição tem causas indiretas, como o subdesenvolvimento e a pobreza. As causas diretas: falta qualitativa ou quantitativa de alimentos e infecções (que desnutrem as crianças). Nenhum país reduziu a mortalidade infantil apenas com base em alimentos. Um outro fator é o cuidado: uma criança precisa ser bem cuidada, bem tratada.

Folha - Quais os casos de países de sucesso no combate a fome?
Victora -
Como experiência recente há o "Progresa", do México, em que a complementação da renda da família estava condicionada à frequência a postos de saúde, a exames da criança, à vacinação. Num passado um pouco mais distante, as três histórias de sucesso na América Latina são as de Cuba, Costa Rica e Chile.

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