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OPERAÇÃO SOCIAL
Para Cesar Victora, da OMS, serviços de saúde de qualidade trariam mais resultado que projetos contra desnutrição
Morrer de fome é raro no país, diz especialista
JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL
Em tempos de Fome Zero, um
raciocínio interessante: a mortalidade infantil é hoje oficialmente
de 29,7 por 1.000 nascidos vivos
(IBGE, censo 2000). Caso inexistisse a desnutrição, ela cairia em
apenas 2% ou no máximo em
14,5%, dependendo do critério
utilizado para o cálculo.
É o que afirma o epidemiologista Cesar G. Victora, 51, consultor
da OMS (Organização Mundial
da Saúde), professor da Universidade Federal de Pelotas e também
o autor, sob encomenda do Banco
Mundial, de pesquisa publicada
há dois anos sobre formas de reduzir a morte de crianças.
Comparando: um outro estudo
da OMS revelou em 2000 que,
sem desnutrição, a mortalidade
infantil cairia pela metade em países como o Sudão, Etiópia ou
Zâmbia. A situação brasileira é incomparavelmente outra.
Victora afirma que o Fome Zero
é uma grande iniciativa, por chamar a atenção sobre as desigualdades. As crianças nas 20% de famílias mais pobres morrem seis
vezes mais que as crianças na faixa de 20% das famílias mais ricas.
Mas o problema não está só na
fome. Está "também no acesso a
serviços de saúde de boa qualidade, cujo impacto potencial sobre a
mortalidade infantil é bem maior
do que o de qualquer programa
contra a desnutrição", diz ele.
Victora rebate a afirmação do
governo de que o país tem 44 milhões com problemas de alimentação: "Não se pode confundir
pobreza com desnutrição e com
fome. Fome é rara, desnutrição é
intermediária, e pobreza é comum. É importante levar em conta essa distinção para não acharmos que o programa [Fome Zero"
trará resultados maiores do que
ele pode. Eu passo um terço ou
um quarto de meu tempo em lugares da África ou da Ásia que são
muito, mas muito pobres. O Brasil felizmente não tem nada a ver".
O Ministério da Saúde não tem
estudo sobre o impacto da desnutrição na mortalidade infantil. A
Folha foi informada pela Secretaria de Atenção à Saúde que a
questão não foi pesquisada de forma sistemática pelas três áreas
que acompanham a questão: saúde da criança, saúde do adolescente e alimentação e nutrição.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista de Victora.
Folha - Quanto cairia a mortalidade infantil se o país não tivesse
crianças malnutridas?
Cesar Victora - Há duas formas
de fazer o cálculo. A primeira:
24% das mortes infantis se devem
a doenças infecciosas, e, entre estas, 60% ocorrem em crianças
desnutridas. Portanto, evitaríamos 14,4% das mortes se acharmos que, caso não fossem desnutridas, essas crianças não teriam
morrido. Mas ao morrer desnutrida a criança não morreu necessariamente por desnutrição.
Folha - E o segundo cálculo?
Victora - Seria o risco de morrer
para crianças desnutridas, comparado ao das demais crianças.
Temos no Brasil 5,7% de crianças
com déficit de peso para a idade.
Se reduzirmos isso para 2,3%
(crianças magras por motivos não
nutricionais, mesmo nos países
desenvolvidos), só 2% das mortes
infantis seriam prevenidas.
Folha - Qual das alternativas é
metodologicamente a correta?
Victora - Seria provavelmente
esta última. Mas a literatura internacional, inclusive na OMS, tem
usado a primeira. Poderíamos
afirmar que, na melhor das hipóteses, não mais de 15% das mortes
infantis seriam evitadas pela total
eliminação da desnutrição.
Folha - Qual é a diferença entre
fome e desnutrição?
Victora - Fome e desnutrição são
coisas diferentes. A fome é a sensação provocada por uma quantidade insuficiente de alimentos. As
crianças são muito magras, têm
pouco peso para a idade, são pele
e osso. São casos que se vêem bastante na Somália, na Tanzânia, em
Uganda, em Moçambique. São
crianças que têm um déficit de peso para altura. No Brasil o problema atinge só 2,3% das crianças.
Folha - E a criança desnutrida?
Victora - É quando a criança pode ter problemas na qualidade do
alimento. A criança é baixinha. É
o caso de 10,5% delas, no Brasil.
Elas não passam necessariamente
fome, mas sentem falta de proteínas ou alguns micronutrientes.
Folha - A desnutrição está sempre
ligada à pobreza?
Victora - Sem dúvida. A regra é a
criança que come muita farinha,
muito arroz e às vezes não está
nem magra. Mas ela não cresce o
que deveria crescer para a idade.
Folha - A OMS diz que em certos
países muito pobres a mortalidade
infantil cairia pela metade com boa
nutrição. Por que não aqui?
Victora - A situação brasileira é
outra. Nestes países a maioria das
mortes se dá por doenças infecciosas. No Brasil a maioria das
mortes de crianças se dá o período neonatal.
Folha - Seu estudo mostra que
não foi por causa da renda que a
mortalidade infantil caiu bastante
no Brasil, mas porque diminuiu a
morte por diarréia. É a ação dos
agentes comunitários de saúde?
Victora - São os agentes, mas há
também os efeitos da campanha
de massa para o soro caseiro. É
trabalho da Pastoral da Criança,
de campanha da Rede Globo nos
anos 80. A gente quase não vê
mais morte por diarréia no Brasil.
Folha - A diarréia caiu a uma velocidade maior que a expansão das
redes de saneamento básico.
Victora - É verdade, por mais
que a qualidade da água também
tenha contribuído. A metade da
queda da diarréia se dá pelo melhor atendimento médico, pelo
soro, pelo agente de saúde, e a outra metade se dá por fatores extramédicos, como a mudança no saneamento e na amamentação.
Folha - O fato de a mãe ser bem
alimentada dá a ela condições de
se alimentar melhor e diminuir a
mortalidade infantil?
Victora - Não há quase desnutrição entre adultos no Brasil. Alimentar a mãe não é para nós uma
solução para baixar a mortalidade
infantil. Um estudo do professor
Carlos Augusto Monteiro, da
USP, demonstra até que estamos
mudando o nosso padrão, da desnutrição para a obesidade.
Folha - Então não existe adulto
que passa fome no Brasil?
Victora - Existem muito poucos.
Mas as mães magras no Brasil são
6,3%, o que já não é muito, mesmo porque mães magras em países ricos seriam 2% a 3%. Ela não
é magra por ser desnutrida. Isso
não significa, no entanto, que não
haja bolsões de pobreza.
Folha - São esses bolsões os alvos
do Fome Zero, certo?
Victora - O Fome Zero tem a
vantagem de o Brasil estar agora
olhando pela primeira vez para os
seus pobres. O enfoque e a vontade política são excelentes.
Folha - Dar alimento faz baixar a
mortalidade?
Victora - Não. Não baixa. O principal problema da mortalidade
infantil está na qualidade do pré-natal e do parto, que são hoje em
dia ainda muito ruins.
Folha - O governo diz haver 44
milhões de pessoas com problemas
de alimentação. É isso mesmo?
Victora - Isso não é verdade. Não
se pode confundir pobreza com
desnutrição e com fome. Fome é
rara, desnutrição é intermediária,
e pobreza é comum. É importante
levar em conta essa distinção para
não acharmos que o programa
trará resultados maiores do que
ele pode. Eu passo um terço ou
um quarto de meu tempo em lugares da África ou da Ásia que são
muito, mas muito pobres. O Brasil felizmente não tem nada a ver.
Folha - O que mudou em 50 anos,
desde "A Geografia da Fome", do
Josué de Castro?
Victora - A desnutrição tem causas indiretas, como o subdesenvolvimento e a pobreza. As causas
diretas: falta qualitativa ou quantitativa de alimentos e infecções
(que desnutrem as crianças). Nenhum país reduziu a mortalidade
infantil apenas com base em alimentos. Um outro fator é o cuidado: uma criança precisa ser bem
cuidada, bem tratada.
Folha - Quais os casos de países
de sucesso no combate a fome?
Victora - Como experiência recente há o "Progresa", do México,
em que a complementação da
renda da família estava condicionada à frequência a postos de saúde, a exames da criança, à vacinação. Num passado um pouco
mais distante, as três histórias de
sucesso na América Latina são as
de Cuba, Costa Rica e Chile.
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