São Paulo, domingo, 04 de março de 2007

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Frias e a busca modesta da verdade

Biografia do publisher da Folha foge do tom laudatório; combinação de realismo e comedimento resulta em retrato desmistificador

Folha Imagem - 5.jul.1964
O empresário com a sua mulher, Dagmar


MARIO SERGIO CONTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

ENTRE OS MÉRITOS de "A Trajetória de Octavio Frias de Oliveira", e eles são vários, o que se impõe logo de início é a combinação de objetividade e modéstia. Objetividade porque o livro pretende ser tão-somente, como diz seu autor, Engel Paschoal, um perfil -o retrato de um empresário que, já cinqüentão, comprou e reformulou a Folha de S. Paulo. E modéstia porque o perfilado nunca foi homem de fazer praça de seus feitos.

A combinação de realismo e comedimento dá ao livro, porém, uma contundência desmistificadora rara na literatura sobre os barões da imprensa nacional. Não se espere de "A Trajetória" loas emboloradas à sagrada missão de bem informar, o registro engalanado das ações em prol do engrandecimento da pátria ou a ladainha das virtudes celestes da livre iniciativa. O livro está isento de toda a lorota ideológica que costuma fundamentar o exercício do jornalismo.
Na contramão do discurso embromador do baronato, Frias relata sem firulas suas atividades financeiras. "Eu disse para mim mesmo: "Se o negócio é ganhar dinheiro, eu vou ganhar mesmo". E eu era impiedoso. Aplicava dinheiro a juros, sim, senhor. Era usurário, cobrava 3% ao mês e não tinha conversa." Acrescenta que não praticava usura com pessoas físicas, só com empresas, e esclarece por quê: "Eu não queria ter que apertar o miserável".
Ao enumerar os seus objetivos existenciais na juventude, usa a mesma dureza: "Eu só pensava em ganhar dinheiro e gastar. Preferencialmente com mulher. Eu gostava de cinema, ia bastante, mas não era apaixonado. Meu hobby era mulher e esporte".
Ele conheceu escritores, artistas plásticos e intelectuais, mas confessa sem rebuços que, desde sempre, sua literatura predileta é a de manuais de auto-ajuda empresarial.
Frias participou do movimento separatista de 1932, na condição de voluntário. O relato que faz da "Revolução Constitucionalista" é sumário e revelador: "Aquilo era sacanagem dos paulistas da UDN (União Democrática Nacional). Sempre achei isso. Por que nenhum filho de gente importante estava lá? Só estavam o povinho ou os ingênuos como eu. Foi uma das sacanagens mais bem armadas que eu já vi".
Quanto ao chamado bem público, Frias conta que seu interesse por política era nenhum. Considerava a atividade desprezível; quase tão sem importância quanto jornais, que ele quase não lia -e, quando lia, era o "Estadão"...
E, sobre as circunstâncias da compra da sua propriedade mais importante, a Folha -o jornaleco que adquiriu, com Carlos Caldeira Filho, em 1962 e pouco mais de duas décadas depois tornou uma instituição-, o que Frias tem a dizer?
Primeiro, diz que usou um cheque que só teria fundos dali a dois dias. Acrescenta que, uma semana depois, era tamanha a certeza de que fizera um péssimo negócio que estava à cata de um desavisado para passar-lhe o abacaxi adiante. E, por fim, conta que a razão de fundo para ter comprado o jornal foi, talvez, a ambição de status, pois ficara, injustamente, com o nome sujo na praça.

Sem melodrama
Quando o livro aborda fatos da vida pessoal, a mistura de modéstia e clareza adquire tensão. É sofrido o relato que Frias faz de três episódios da infância que lhe definiram a existência: as visitas dominicais à casa de parentes ricos; a morte da mãe, quando tinha sete anos; e o empobrecimento súbito da família. Os fatos são dickensianos. Mas a maneira como são expostos não tem nada de melodramático. Desamparo e insegurança são mostrados com distância analítica -para não provocar a piedade do leitor.
A intenção, nítida, é desmistificar o sofrimento, retirar o véu católico-piegas que o envolve. "A Trajetória" busca demonstrar que a dor nada ensina, as adversidades não forjam o caráter, que as aflições são uma péssima escola de vida. A tensão surge do choque entre a necessidade de relatar o sofrimento, para que ele possa ser compreendido e corretamente dimensionado, e o pudor de rememorá-lo em público.
Adulto, ele sofreu outros baques. Ao dirigir na via Dutra, bateu o carro num caminhão. No acidente, morreram sua primeira mulher, Zuleika, e seu irmão José. Restaram Frias e Beth, menina negra e miserável que o casal adotara. Na mesma época, o banco que fundara sofreu intervenção e seus bens ficaram indisponíveis. Frias juntou todo o dinheiro que tinha e o entregou à família da mulher falecida.
Ele conta a situação: "Eu estava na rua da Consolação, com as mãos no bolso, e disse: "Não tenho mais nada o que fazer: estou sem dinheiro, sem mulher, sem nada, partindo da estaca zero". Não tinha um sacana que me oferecesse emprego".
Três meses depois, Frias já ganhava dinheiro de novo. Vendia assinaturas da Folha, que ainda não era sua, e ficava com 30% de comissão. "A única coisa que me restava era vender, aproveitar a minha capacidade de venda", avalia.
No plano afetivo, a situação também melhorou com rapidez. Ele conheceu Dagmar de Arruda Camargo, senhora casada, mãe de uma filha. No mesmo ano, 1955, ela se separou e foi morar com Frias (o drama familiar terá outros episódios lancinantes: com o novo casamento, Beth, a filha adotiva, passa a viver com uma tia, irmã de Frias; e virá a se suicidar em 1981).
Assim como não se queixa do que padeceu, Frias não se jacta dos seus triunfos. Ao contrário. Ele atribui o sucesso primeiro à sorte, aos colegas de trabalho, à conjuntura, e só então à sua persistência -e nunca a sua inteligência ou tirocínio.
O que resta, então, como fundamento de toda a sua frenética atividade empresarial é o pragmatismo. Ao longo de todo o livro, Frias não pára quieto. Não relaxa. Não contempla o que construiu e pouco frui do que acumulou. Está sempre bolando novos negócios, lançando mercadorias e serviços, batalhando para vendê-los, para ter lucro, para reaplicá-lo e expandir o capital. A iniciativa capitalista é, para ele, uma segunda natureza.
O melhor exemplo do seu afã em produzir é a Granja Itambi, em São José dos Campos. O empresário a comprou com a intenção de ser um sítio familiar, para descansar nos fins de semana. Ato contínuo, cismou que gerasse dinheiro. Botou à frente dela o seu motorista, um espanhol que entendia um pouco de agricultura. A granja se tornou uma das maiores do Brasil. Chegou a ter 1.700 funcionários. Deu lucro. Nos anos 90, com a competição de colossos como a Sadia e a Perdigão, começou a soçobrar. Em 1996, Frias decidiu fechá-la.
Foi a sua maior frustração profissional. Ele adorava a Itambi. Talvez gostasse mais dela do que da Folha? Eis o que ele diz, no único momento em que aproxima o jornal da granja: "É muito bom para o empresário produzir coisas palpáveis, como leite, carne, frango. Jornal não é uma coisa palpável".
Seria errado supor, a partir da afirmação, que tanto se lhe dá qual mercadoria produza, seja jornal ou frango, desde que ela lhe seja rentável. Nos últimos 45 anos, Frias dedicou a maior parte do seu tempo e de sua energia ao jornal e às empresas que lhe são correlatas, como o Datafolha, o UOL, o "Valor" e o "Agora". Seja pelos seus pares empresários, seja pelos seus concorrentes, pelos seus funcionários, pelo governo, pelos políticos, pelos leitores, pela sua família, Frias é universalmente reconhecido como o responsável pela virada que fez da Folha o maior jornal brasileiro -e não como um granjeiro fracassado.
Outra questão é que Frias não se considera jornalista. Ele tem, sem dúvida, traços de um jornalista, como a sensibilidade para a notícia, a curiosidade, o gosto pela clareza e a casca grossa para resistir a pressões. Essas características fizeram dele um empresário de imprensa. E não um jornalista.
Há uma outra característica, mais abstrata, difícil de definir, que aproxima Octavio Frias de Oliveira do jornalismo. Ao longo de "A Trajetória", às vezes o empresário a define como "franqueza". Familiares e amigos complementam a definição, afirmando que a franqueza dele tende a ser "brutal".
Engel Paschoal diz que o empresário "sempre quis um jornal que fosse sério, honesto e só imprimisse verdades". Ao que Frias acrescenta: "Mas é custoso, a gente briga com muita gente para fazer isso. As pessoas queriam que eu publicasse uma coisa e eu não deixava. Sabia que não era verdade".
"Verdade", eis a palavra. Pode parecer pomposo, mas é real: Frias preza a verdade. Ele deixa claro, praticamente a cada página, que não gosta de se iludir nem de engabelar os outros. Como ocorre com os jornais sérios, ele busca se aproximar da verdade. Sem grandiloqüência ou estardalhaço.
O próprio "A Trajetória" é prova desse apreço pela veracidade. Frias conhece, emprega e convive com excelentes jornalistas. Poderia ter escolhido um deles para lhe compor uma biografia formidanda. Não fez nada. E quando, já na casa dos 90 anos de idade, a idéia lhe foi apresentada, o que resultou foi a escolha de um jornalista desconhecido, mas aplicado e sério, para realizar a tarefa.
Com isso, "A Trajetória de Octavio Frias de Oliveira" ficou bem parecido com o dono da Folha. É um livro modesto e simples, e não um monumento rebarbativo. Mas que não foge de questões difíceis, não escamoteia fatos desagradáveis. E, por isso mesmo, é surpreendente e está cheio de novidades. É um livro que, singelamente, busca a verdade.


MARIO SERGIO CONTI é jornalista, autor de "Notícias do Planalto" (Cia. das Letras) e diretor de Redação da revista "Piauí".

A TRAJETÓRIA DE OCTAVIO FRIAS DE OLIVEIRA
Autor:
Engel Paschoal
Editora: Publifolha/ Mega Brasil
Quanto: R$ 44,00 (328 págs.)


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