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Frias e a busca modesta da verdade
Biografia do publisher da Folha foge do tom laudatório; combinação de realismo e comedimento resulta em retrato desmistificador
Folha Imagem - 5.jul.1964
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O empresário com a sua mulher, Dagmar |
MARIO SERGIO CONTI
ESPECIAL PARA A FOLHA
ENTRE OS MÉRITOS de "A Trajetória de Octavio
Frias de Oliveira", e eles são vários, o que se impõe logo de início é a combinação de objetividade
e modéstia. Objetividade porque o livro pretende ser tão-somente, como diz seu autor, Engel Paschoal, um
perfil -o retrato de um empresário que, já cinqüentão, comprou e reformulou a Folha de S. Paulo. E modéstia porque o perfilado nunca foi homem de fazer praça de seus feitos.
A combinação de realismo e
comedimento dá ao livro, porém, uma contundência desmistificadora rara na literatura
sobre os barões da imprensa
nacional. Não se espere de "A
Trajetória" loas emboloradas à
sagrada missão de bem informar, o registro engalanado das
ações em prol do engrandecimento da pátria ou a ladainha
das virtudes celestes da livre
iniciativa. O livro está isento de
toda a lorota ideológica que
costuma fundamentar o exercício do jornalismo.
Na contramão do discurso
embromador do baronato,
Frias relata sem firulas suas
atividades financeiras. "Eu disse para mim mesmo: "Se o negócio é ganhar dinheiro, eu vou
ganhar mesmo". E eu era impiedoso. Aplicava dinheiro a juros,
sim, senhor. Era usurário, cobrava 3% ao mês e não tinha
conversa." Acrescenta que não
praticava usura com pessoas físicas, só com empresas, e esclarece por quê: "Eu não queria ter
que apertar o miserável".
Ao enumerar os seus objetivos existenciais na juventude,
usa a mesma dureza: "Eu só
pensava em ganhar dinheiro e
gastar. Preferencialmente com
mulher. Eu gostava de cinema,
ia bastante, mas não era apaixonado. Meu hobby era mulher
e esporte".
Ele conheceu escritores, artistas plásticos e intelectuais,
mas confessa sem rebuços que,
desde sempre, sua literatura
predileta é a de manuais de auto-ajuda empresarial.
Frias participou do movimento separatista de 1932, na
condição de voluntário. O relato que faz da "Revolução Constitucionalista" é sumário e revelador: "Aquilo era sacanagem
dos paulistas da UDN (União
Democrática Nacional). Sempre achei isso. Por que nenhum
filho de gente importante estava lá? Só estavam o povinho ou
os ingênuos como eu. Foi uma
das sacanagens mais bem armadas que eu já vi".
Quanto ao chamado bem público, Frias conta que seu interesse por política era nenhum.
Considerava a atividade desprezível; quase tão sem importância quanto jornais, que ele
quase não lia -e, quando lia,
era o "Estadão"...
E, sobre as circunstâncias da
compra da sua propriedade
mais importante, a Folha -o
jornaleco que adquiriu, com
Carlos Caldeira Filho, em 1962
e pouco mais de duas décadas
depois tornou uma instituição-, o que Frias tem a dizer?
Primeiro, diz que usou um
cheque que só teria fundos dali
a dois dias. Acrescenta que,
uma semana depois, era tamanha a certeza de que fizera um
péssimo negócio que estava à
cata de um desavisado para
passar-lhe o abacaxi adiante. E,
por fim, conta que a razão de
fundo para ter comprado o jornal foi, talvez, a ambição de status, pois ficara, injustamente,
com o nome sujo na praça.
Sem melodrama
Quando o livro aborda fatos
da vida pessoal, a mistura de
modéstia e clareza adquire tensão. É sofrido o relato que Frias
faz de três episódios da infância
que lhe definiram a existência:
as visitas dominicais à casa de
parentes ricos; a morte da mãe,
quando tinha sete anos; e o empobrecimento súbito da família. Os fatos são dickensianos.
Mas a maneira como são expostos não tem nada de melodramático. Desamparo e insegurança são mostrados com distância analítica -para não provocar a piedade do leitor.
A intenção, nítida, é desmistificar o sofrimento, retirar o
véu católico-piegas que o envolve. "A Trajetória" busca demonstrar que a dor nada ensina, as adversidades não forjam
o caráter, que as aflições são
uma péssima escola de vida. A
tensão surge do choque entre a
necessidade de relatar o sofrimento, para que ele possa ser
compreendido e corretamente
dimensionado, e o pudor de rememorá-lo em público.
Adulto, ele sofreu outros baques. Ao dirigir na via Dutra,
bateu o carro num caminhão.
No acidente, morreram sua primeira mulher, Zuleika, e seu irmão José. Restaram Frias e
Beth, menina negra e miserável
que o casal adotara. Na mesma
época, o banco que fundara sofreu intervenção e seus bens ficaram indisponíveis. Frias juntou todo o dinheiro que tinha e
o entregou à família da mulher
falecida.
Ele conta a situação: "Eu estava na rua da Consolação, com
as mãos no bolso, e disse: "Não
tenho mais nada o que fazer: estou sem dinheiro, sem mulher,
sem nada, partindo da estaca
zero". Não tinha um sacana que
me oferecesse emprego".
Três meses depois, Frias já
ganhava dinheiro de novo. Vendia assinaturas da Folha, que
ainda não era sua, e ficava com
30% de comissão. "A única coisa que me restava era vender,
aproveitar a minha capacidade
de venda", avalia.
No plano afetivo, a situação
também melhorou com rapidez. Ele conheceu Dagmar de
Arruda Camargo, senhora casada, mãe de uma filha. No
mesmo ano, 1955, ela se separou e foi morar com Frias (o
drama familiar terá outros episódios lancinantes: com o novo
casamento, Beth, a filha adotiva, passa a viver com uma tia,
irmã de Frias; e virá a se suicidar em 1981).
Assim como não se queixa do
que padeceu, Frias não se jacta
dos seus triunfos. Ao contrário.
Ele atribui o sucesso primeiro à
sorte, aos colegas de trabalho, à
conjuntura, e só então à sua
persistência -e nunca a sua inteligência ou tirocínio.
O que resta, então, como fundamento de toda a sua frenética atividade empresarial é o
pragmatismo. Ao longo de todo
o livro, Frias não pára quieto.
Não relaxa. Não contempla o
que construiu e pouco frui do
que acumulou. Está sempre
bolando novos negócios, lançando mercadorias e serviços,
batalhando para vendê-los, para ter lucro, para reaplicá-lo e
expandir o capital. A iniciativa
capitalista é, para ele, uma segunda natureza.
O melhor exemplo do seu afã
em produzir é a Granja Itambi,
em São José dos Campos. O
empresário a comprou com a
intenção de ser um sítio familiar, para descansar nos fins de
semana. Ato contínuo, cismou
que gerasse dinheiro. Botou à
frente dela o seu motorista, um
espanhol que entendia um
pouco de agricultura. A granja
se tornou uma das maiores do
Brasil. Chegou a ter 1.700 funcionários. Deu lucro. Nos anos
90, com a competição de colossos como a Sadia e a Perdigão,
começou a soçobrar. Em 1996,
Frias decidiu fechá-la.
Foi a sua maior frustração
profissional. Ele adorava a
Itambi. Talvez gostasse mais
dela do que da Folha? Eis o que
ele diz, no único momento em
que aproxima o jornal da granja: "É muito bom para o empresário produzir coisas palpáveis,
como leite, carne, frango. Jornal não é uma coisa palpável".
Seria errado supor, a partir
da afirmação, que tanto se lhe
dá qual mercadoria produza,
seja jornal ou frango, desde que
ela lhe seja rentável. Nos últimos 45 anos, Frias dedicou a
maior parte do seu tempo e de
sua energia ao jornal e às empresas que lhe são correlatas,
como o Datafolha, o UOL, o
"Valor" e o "Agora". Seja pelos
seus pares empresários, seja
pelos seus concorrentes, pelos
seus funcionários, pelo governo, pelos políticos, pelos leitores, pela sua família, Frias é
universalmente reconhecido
como o responsável pela virada
que fez da Folha o maior jornal
brasileiro -e não como um
granjeiro fracassado.
Outra questão é que Frias
não se considera jornalista. Ele
tem, sem dúvida, traços de um
jornalista, como a sensibilidade para a notícia, a curiosidade,
o gosto pela clareza e a casca
grossa para resistir a pressões.
Essas características fizeram
dele um empresário de imprensa. E não um jornalista.
Há uma outra característica,
mais abstrata, difícil de definir,
que aproxima Octavio Frias de
Oliveira do jornalismo. Ao longo de "A Trajetória", às vezes o
empresário a define como
"franqueza". Familiares e amigos complementam a definição, afirmando que a franqueza
dele tende a ser "brutal".
Engel Paschoal diz que o empresário "sempre quis um jornal que fosse sério, honesto e
só imprimisse verdades". Ao
que Frias acrescenta: "Mas é
custoso, a gente briga com muita gente para fazer isso. As pessoas queriam que eu publicasse
uma coisa e eu não deixava. Sabia que não era verdade".
"Verdade", eis a palavra. Pode parecer pomposo, mas é
real: Frias preza a verdade. Ele
deixa claro, praticamente a cada página, que não gosta de se
iludir nem de engabelar os outros. Como ocorre com os jornais sérios, ele busca se aproximar da verdade. Sem grandiloqüência ou estardalhaço.
O próprio "A Trajetória" é
prova desse apreço pela veracidade. Frias conhece, emprega e
convive com excelentes jornalistas. Poderia ter escolhido um
deles para lhe compor uma biografia formidanda. Não fez nada. E quando, já na casa dos 90
anos de idade, a idéia lhe foi
apresentada, o que resultou foi
a escolha de um jornalista desconhecido, mas aplicado e sério, para realizar a tarefa.
Com isso, "A Trajetória de
Octavio Frias de Oliveira" ficou
bem parecido com o dono da
Folha. É um livro modesto e
simples, e não um monumento
rebarbativo. Mas que não foge
de questões difíceis, não escamoteia fatos desagradáveis. E,
por isso mesmo, é surpreendente e está cheio de novidades. É um livro que, singelamente, busca a verdade.
MARIO SERGIO CONTI é jornalista, autor de
"Notícias do Planalto" (Cia. das Letras) e diretor
de Redação da revista "Piauí".
A TRAJETÓRIA DE OCTAVIO
FRIAS DE OLIVEIRA
Autor: Engel Paschoal
Editora: Publifolha/ Mega Brasil
Quanto: R$ 44,00 (328 págs.)
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