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ENTREVISTA
PAUL AUSSARESSES
A tortura se justifica quando pode evitar a morte de inocentes
General francês, que ensinou tortura a militares brasileiros, confirma atuação do país em golpe contra Salvador Allende
LENEIDE DUARTE-PLON
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE PARIS
O GENERAL francês Paul Aussaresses, 89, é
a memória viva dos atropelos aos direitos
humanos praticados durante a ditadura
brasileira (1964-1985). Ex-agente do serviço secreto da França, veterano das guerras do Vietnã e da Argélia, Aussaresses colaborou com o regime
militar no Brasil, ensinando aos oficiais técnicas de
tortura e também de combate à guerrilha.
"No curso, os estagiários representavam o papel dos torturadores e dos torturados", afirmou o militar reformado, no livro "Je N'ai Pas Tout Dit - Ultimes Révélations au Service de
la France" (Eu não contei tudo
- últimas revelações a serviço
da França), que acaba de ser
lançado em Paris.
A obra é uma série de entrevistas concedidas ao jornalista
Jean-Charles Deniau. Em suas
revelações, Aussaresses revelou que o governo Médici forneceu armas e aviões para o
golpe militar que derrubou o
presidente chileno Salvador
Allende, em 11 de setembro de
1973. E vai além, ao relatar que
o ex-presidente João Baptista
Figueiredo, então chefe do SNI
(Serviço Nacional de Informações), o telefonou para dizer
que seus homens haviam torturado e matado um "francês
subversivo", em referência a
Laurent Schwartz.
Aussaresses recebeu a Folha
para uma longa entrevista na
casa que tem na Alsácia. Não se
furtou a reiterar tudo o que disse no livro e acrescentou que
não se arrepende de nada, mesmo que seu livro anterior o tenha levado a responder a um
processo por "apologia de crimes de guerra". "Acho que Figueiredo apreciou minha conduta em relação aos brasileiros.
Minha colaboração foi frutuosa
para eles e para nós", disse.
FOLHA - O senhor viveu no Brasil
entre 1973 e 1975. Qual sua missão
junto à embaixada francesa?
PAUL AUSSARESSES - Eu era adido
militar.
FOLHA - O sr. fazia trabalho de informação?
AUSSARESSES - É isso que os adidos militares fazem. Todos eles
se informam sobre o que pode
interessar a seus países e sobretudo as necessidades do país no
qual servem, do ponto de vista
do que podemos vender a eles.
FOLHA - Naquela época, a França já
vendia armas ao Brasil?
AUSSARESSES - Claro. Havia
muito tempo existiam adidos
militares no Brasil. O chefe era
do Exército, mas havia um da
Aeronáutica e um oficial de
Marinha. O Brasil tinha se interessado pelos aviões franceses
fabricados pela Société Dassault. O Mirage.
FOLHA - Em seu livro, há um capítulo em que o senhor narra os cursos
de interrogatório e informação a oficiais no Centro de Instrução de Guerra na Selva, em Manaus. Quais eram
suas atribuições?
AUSSARESSES - Eu dava aulas
nessa escola militar porque tinha sido instrutor das Forças
Especiais do Exército Americano no Fort Bragg. Fui nomeado
instrutor dos pára-quedistas da
infantaria americana em Fort
Benning, na Geórgia, e me pediram para ser também instrutor em Fort Bragg, na Carolina
do Norte. Isso foi nos anos 60.
Nessa escola, encontrei oficiais estagiários das forças especiais de vários países da
América do Sul.
FOLHA - Inclusive do Brasil?
AUSSARESSES - Exatamente.
FOLHA - Quem eram esses oficiais?
AUSSARESSES - Não me lembro
de seus nomes. Lembro de Umberto Gordon, que se tornou
chefe das Forças Especiais do
Chile, a DINA, o serviço secreto
de Pinochet. Éramos muito
amigos.
FOLHA - O senhor chegou ao Brasil
em outubro de 1973, pouco depois
do golpe militar do Chile. O Brasil
participou ativamente no golpe
contra Allende?
AUSSARESSES - Que pergunta!
Você pensaria que sou um idiota se não estivesse a par. Claro
que o Brasil participou!
FOLHA - O senhor conta no livro.
Gostaria que repetisse. O Brasil enviou aviões e armas?
AUSSARESSES - Mas claro, armas
e aviões.
FOLHA - E enviou oficiais também?
AUSSARESSES - Sim, claro. As armas não sei dizer exatamente
quais. Mas os brasileiros enviaram aviões franceses com projéteis fabricados na França pela
sociedade Thomson-Brandtà
FOLHA - Para a qual trabalhou depois, quando saiu do Exército.
AUSSARESSES - Exatamente.
FOLHA - O senhor foi muito amigo
de João Baptista Figueiredo, chefe
do SNI e último presidente militar.
Ele e o delegado Sérgio Fleury eram
os responsáveis pelos esquadrões
da morte brasileiros, como o senhor
escreveu?
AUSSARESSES - É uma maneira
de falar. Nós não chamávamos
assim. Sérgio Fleury era o responsável pelos esquadrões da
morte e Figueiredo, pelo SNI. O
embaixador Michel Legendre
não podia ouvir falar de esquadrões da morte.
FOLHA - O sr. diz que o embaixador
não suportava Sérgio Fleury. E de Figueiredo, tinha melhor impressão?
AUSSARESSES - Um dia o embaixador me disse: "Você tem amigos estranhos". Eu respondi:
"São eles que me permitem
manter o senhor bem informado". Ele não disse mais nada.
FOLHA - Como seu trabalho era importante para a França?
AUSSARESSES - Todas as informações são importantes. Mas
era sobretudo para mostrar que
a França era um país amigo. Os
brasileiros tinham a necessidade de tal material, estávamos
dispostos a vender. Tinham necessidade de fabricar.
FOLHA - De quais materiais?
AUSSARESSES - Materiais de
aviação. Tínhamos conhecimentos técnicos, mas o que era
importante é que podíamos ir
aos nossos superiores pedir informação para os brasileiros.
FOLHA - No livro o sr. narra o episódio de tortura de uma mulher que
veio ao Brasil para, segundo o general Figueiredo, espionar o senhor. Figueiredo o fez vir de Manaus às
pressas para mostrar a moça, já irreconhecível depois das sessões. Ele
depois o informou que ela morrera
no hospital. Nunca questionou o
método bárbaro usado para obter
informações daquela mulher?
AUSSARESSES - De jeito algum! A
morte dessa mulher era um ato
de defesa.
FOLHA - Qual é sua impressão sobre os presidentes militares: Ernesto
Geisel, João Figueiredo e Garrastazu
Médici?
AUSSARESSES - Ernesto Geisel
era um homem racional, de
uma profunda moralidade. Era
um homem que tinha uma fé
religiosa e respeitava as regras
da moral cristã que considera
que os homens merecem viver
numa atmosfera de ordem que
lhes permite trabalhar, cuidar
da família.
De Emilio Garrastazu Medici
tenho boas lembranças. Conheci-o na embaixada da França, conversamos em português.
João Figueiredo era adorável,
sedutor. Era o chefe do SNI
quando eu cheguei como adido.
O representante francês dos
serviços especiais no Brasil me
disse: "Todo mundo sabe que
você fez parte do serviço de inteligência francês, principalmente do "Action", logo, não deve esconder. Você vai encontrar Figueiredo, chefe do SNI,
não esconda que você pertenceu ao serviço equivalente na
França".
FOLHA - E vocês ficaram amigos?
AUSSARESSES - Muito amigos.
Acho que Figueiredo apreciou
minha conduta em relação aos
brasileiros. Minha contribuição foi apreciada. Minha colaboração foi frutuosa para eles e
para nós.
FOLHA - Quais são os fundamentos
que justificam o uso da tortura numa guerra ou como no caso do Brasil, nos anos 60 e 70?
AUSSARESSES - Acho que, se podemos evitá-la, nada a justifica.
FOLHA - E quando é que não se pode evitá-la?
AUSSARESSES - Quando a ação
terrorista adversa quer ter efeitos de propaganda e tem por vítimas sobretudo mulheres e
crianças. Penso que, se a tortura pode evitar a morte de inocentes, ela se justifica. É meu
ponto de vista. Não a aprecio,
não a aprecio, não a aprecio.
FOLHA - Na Argélia, o sr. e o general Jacques Massu estavam de acordo com todos os métodos de informação, inclusive a tortura?
AUSSARESSES - Totalmente de
acordo. Mas quando houve o
ataque de Philipeville, Massu
ainda não estava comandando
os pára-quedistas. Descobri
que ia haver um ataque porque
havia compras diárias de uma
enorme quantidade de farinha
de cuscuz num armazém.
E tudo era comprado em dinheiro. E as notas de dinheiro
vinham da França, do salário
dos operários argelinos. Foi
meu serviço de informação que
descobriu tudo.
FOLHA - Parece que foi por causa
de compras em uma aldeia que Che
Guevara e seu grupo de guerrilheiros foram descobertos na Bolívia.
AUSSARESSES - Penso que Che
Guevara era um homem brilhante, muito inteligente mas
ambicioso. Ele queria substituir Fidel Castro, mas Fidel não
estava apressado em deixar o
posto de chefe de Estado de seu
país e enviou-o em missão à Bolívia com outro homem muito
brilhante que ainda está vivo,
Régis Debray. Então, Fidel Castro quis dar uma ocupação a esses homens brilhantes e enviou-os em missão à Bolívia.
FOLHA - O sr. pensa que Fidel Castro armou uma cilada?
AUSSARESSES - Eles eram brilhantes, mas bebiam muito e os
espiões de Fidel Castro ouviam
o que eles diziam. E eles escreviam também, escreviam demais e quando foram para a Bolívia as forças de segurança bolivianas sabiam de todos os detalhes dos deslocamentos deles. Debray foi capturado rapidamente e depois encontraram
sua agenda, uma bela agenda
Hermès, de couro.
FOLHA - E quem os denunciou?
AUSSARESSES - A tagarelice deles.
FOLHA - Mas a CIA [serviço de inteligência dos EUA] estava na Bolívia.
AUSSARESSES - Claro, que dúvida!
FOLHA - O senhor foi sempre anticomunista?
AUSSARESSES - Sempre. Não me
vanglorio disso, mas também
não nego.
FOLHA - Hoje, após a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética, qual seria o grande perigo para
um país como a França?
AUSSARESSES - A organização
terrorista maometana, árabe,
os islâmicos.
FOLHA - A maioria dos militares
pensa que o dever é manter o silêncio. Por que o sr. resolveu falar?
AUSSARESSES - Porque penso
que era meu dever falar.
FOLHA - Mesmo arriscando a sua
reputação?
AUSSARESSES - Há regras de vida
e da carreira militar que tratam
do dever. Eu fiz o que era meu
dever.
FOLHA - No livro anterior, "Services
Spéciaux - Algérie 1955-1957"
(Serviços especiais - Argélia 1955-1957), o sr. contou a participação na
guerra da Argélia, inclusive o uso da
tortura. Em 2003, foi processado por
apologia a crimes de guerra, mas
não houve condenação. Os crimes
estavam prescritos e anistiados. Por
que agora esse livro de entrevistas?
AUSSARESSES - Fui levado à Justiça por apologia à tortura. Disse que não era verdade e que escreveria outros livros para me
justificar de tudo o que tinha
feito em missões fora da França. Escrevi um outro livro depois, que era uma resposta aos
ataques injustos contra mim. O
livro é "Pour la France, Services
Spéciaux, 1942-1954" (Pela
França, serviços especiais)
FOLHA - O senhor se arrepende de
algo que fez?
AUSSARESSES - Não me arrependo de nada. E recusei uma proposta que me foi feita no tribunal, quando fui acusado de fazer a apologia da tortura, o que
não é verdade. Meu advogado e
meu editor me propuseram declarar que eu me arrependia do
que fizera e do que escrevera.
Não posso, não me arrependo, eu seria desprezado por minha mulher. Minha falecida esposa era uma heroína da Resistência Francesa antinazista, foi
ferida em combate. Fomos casados por mais de 50 anos. Ela
morreu e depois me casei novamente. E, se eu escrever que me
arrependo, merecerei o desprezo de minha atual esposa. Recusei o arrependimento que me
propunham e fui condenado.
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