São Paulo, domingo, 04 de junho de 2006

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MENSALÃO EM DEBATE

O abalo das instituições e dos valores

Executivo, Legislativo e Judiciário tiveram atuação lastimável na crise

BORIS FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

HÁ UM ANO do início dos escândalos sintetizados no neologismo "mensalão", uma sensação de desalento toma conta das pessoas informadas. Elas têm muitos motivos para tanto e, se quisermos traduzir essa sensação em uma breve análise, convém focar dois pontos: o abalo das instituições e a crise dos valores. As principais instituições da República comportaram-se de forma quase sempre lamentável no curso dos escândalos. No caso do Congresso, após as denúncias do ex-deputado Roberto Jefferson e da instalação das Comissões Parlamentares de Inquérito, diante dos estarrecedores indícios e das provas da existência de uma rede de corrupção política no país, tendo como pólo o PT e integrantes do governo do presidente Lula, a população acreditou que desta vez as investigações seriam feitas em profundidade e a maioria dos culpados exemplarmente punidos. Tudo começou bem, com a cassação inevitável do próprio deputado Jefferson, que prestou um serviço à nação, mas estava evidentemente envolvido nas tramas. A ela se seguiu à do ex-deputado José Dirceu -o grande cérebro da rede corruptora, ao que tudo indica. Mas depois, excetuado o caso do ex-deputado Pedro Corrêa, presidente do PP, o que se viu foi um triste recuo da grande maioria dos parlamentares. Como se sabe, ninguém mais foi punido, as investigações se arrastaram e o trabalho em boa medida eficaz do Conselho de Ética foi desmentido em plenário, com seguidas absolvições. A tal ponto, que o tema do desvio de dinheiro público, da compra de votos, do mistério que cerca os crimes de Santo André e de Campinas tornou-se aborrecido, mesmo aos olhos dos cidadãos informados. O recuo se deve a vários fatores. Dentre eles, destaco a ação entre amigos em que a absolvição de uns servia de moeda de troca à absolvição de outros, tanto mais que as acusações respingaram em membros da oposição, embora em bem menor escala. Muitos congressistas lavaram as mãos e se saíram com a fórmula "o povo que julgue", numa referência marota às eleições de outubro. O Poder Judiciário, em particular o STF (Supremo Tribunal Federal), não teve melhor desempenho. Podemos discutir infinitamente o que constituiu garantia de direitos e o que constituiu intromissão na área de outro poder da República, em suas decisões acerca dos trabalhos das CPIs. É inegável, em qualquer hipótese, que houve um clima de politização do chamado Pretório Excelso, evidenciado, por contraste, agora que a ministra Ellen Gracie assumiu a presidência da instituição. Lembremos, porém, que o desprestígio do Judiciário como um todo decorreu menos dos escândalos políticos e mais de decisões que, em nome de direitos individuais abusivamente interpretados, vêm permitindo a liberdade de criminosos confessos, de nível social elevado. No que se refere ao Poder Executivo, o comportamento do presidente Lula diante dos escândalos foi e continua sendo lastimável. Ele tratou de negar as evidências quando elas se acumularam, disse depois que puniria os culpados, fossem eles quem fossem, considerou-se traído não se sabe por quem, e quando a crise entrou em banho-maria, pintou o quadro de um presidente que deseja trabalhar e é perturbado por acusações sem fundamento. A melhor resposta a esse jogo esquivo partiu do procurador-geral da República, denunciando colaboradores íntimos do presidente como integrantes de uma quadrilha -os famosos 40 ladrões que deram origem a justificadas alusões. Quanto aos partidos, com um papel mediador entre a sociedade e o Estado, a crise do PT não produziu nada de alentador. O PT, que despontou para muitos como uma grande esperança e teve inegável capacidade de organização dos movimentos sociais, preferiu proteger sua cúpula, em vez de tentar uma profunda revisão de seus descaminhos. Como resultado, o partido perdeu legitimidade e vai se transformando numa máquina bem azeitada, incrustada no aparelho de Estado, cujas peças funcionam tendo em vista seus próprios interesses. Por outro lado, tudo isso veio acompanhado de uma crise de valores perturbadora, em que alguns intelectuais, ditos de esquerda, tiveram um papel nocivo. Para enfrentar a realidade dos fatos, eles engendraram a teoria da "conspiração da direita", quando, pelo contrário, o temor oposicionista de se instabilizar as instituições ajudou a salvar o mandato e a retomada do prestígio do presidente Lula. Pior ainda foi a insistência em desmoralizar sua própria bandeira da "ética na política", convertida em moralismo reacionário. Apesar dos pesares, o desalento precisa ser superado. Lembremos que, apesar do quadro negativo, algo avançou em sentido didático. Exemplificando, tornou-se gritante a necessidade de discutir a reforma política, de regular o financiamento e os limites das campanhas eleitorais, como se vem fazendo. Tornou-se clara a necessidade de se rever a forma de processamento dos parlamentares acusados de procedimento incompatível com o decoro parlamentar, diante dos problemas de funcionamento das CPIs. Tornou-se também clara a necessidade de se pôr fim à malandragem da renúncia, expediente utilizado por peixes grandes e pequenos, que vão assim disputar impávidos as próximas eleições legislativas. Convém ainda ressaltar o papel positivo desempenhado pela mídia, pelo Ministério Público, pela Polícia Federal, cujo desempenho foi importante para as demissões ocorridas nos escalões superiores do governo, apesar das resistências presidenciais, até o limite em que sua sobrevivência estava em risco. Instituições e valores atingidos não se restauram facilmente. Por isso seria ilusório acreditar numa renovação e reconstrução a curto prazo. Elas dependerão das iniciativas de uma sociedade civil indignada, mas pouco mobilizada, e da ação de lideranças políticas que se ponham à altura de suas tarefas.


BORIS FAUSTO é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP (Universidade de São Paulo). É autor de "A Revolução de 1930" (Cia. das Letras), "Getúlio Vargas - O Poder e o Sorriso" (Cia. das Letras), "Memória e História" (Graal), "História do Brasil" (Edusp), "Pensamento Nacionalista Autoritário" (Jorge Zahar), "Crime e Cotidiano" (Edusp) e "Trabalho Urbano e Conflito Social" (Bertrand Brasil).


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