São Paulo, segunda-feira, 04 de novembro de 2002

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ENTREVISTA DA 2ª

Para presidente da Fiesp, há risco de volta da inflação caso o presidente eleito não dê início ao debate

Lula deve iniciar já pacto social, diz Piva

GUILHERME BARROS
EDITOR DO PAINEL S.A.

O presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), Horacio Lafer Piva, 45, acha que o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva não deve perder tempo e deve dar imediatamente a partida para o pacto social. "Se o governo não começar a discussão do pacto, há o risco da volta da inflação", alerta.
Para Piva, todos os setores da sociedade terão de sentar na mesa de negociação dispostos ao sacrifício. "Se alguém pensar em ganhar, o pacto estará liquidado", diz. Segundo ele, os empresários deverão contribuir com o adiamento de investimentos e o não-reajuste de preços. Já os trabalhadores, com o não-reajuste dos salários. O governo deverá promover as reformas estruturais.
De acordo com o empresário, outra vantagem de o governo Lula iniciar logo as discussões do pacto é de que ele poderá reunir melhores argumentos para convencer a sociedade de que 2003 não será um ano bom para a economia. "O melhor é ter um ano ruim para ter três bons".
 

Folha - O sr. acredita no pacto?
Horacio Lafer Piva
-Trata-se de um processo de interação muito novo no Brasil. Há muitas restrições. Muitos dizem que pacto é uma palavra desgastada e que tem muito mais a ver com a retórica do que com a prática. Eu não concordo. Há um espaço muito grande para o pacto. Esse espaço foi construído não só pelo processo de discussão que aconteceu durante as eleições, onde se puderam identificar com muita clareza os gargalos que impediam o crescimento da economia brasileira e os problemas sociais de fato do país, mas também pela transição que está sendo muito bem conduzida pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. O pacto exigirá um enorme grau de desprendimento de cada um dos atores. Cada grupo deve assumir as suas responsabilidades. O pacto só vai acontecer com sacrifícios. Ninguém poderá entrar no pacto achando que vai ganhar. Todo mundo perderá um pouco, para poder ganhar mais à frente.

Folha - Mas todos estão preparados para perder?
Piva
- Pela primeira vez, vive-se uma situação no Brasil na qual a ideologia é mais fraca do que o interesse da sociedade. Nós temos um exemplo muito bom que foi o Pacto de Moncloa, na Espanha. Havia impostos trabalhistas enormes, inflação, desequilíbrio enorme na balança de pagamentos, não havia poupança e nem investimento. Eles focaram o pacto em duas questões: saneamento fiscal e reformas. Na questão do saneamento fiscal, eles mexeram com a estabilidade, com a redução do gasto público, adotaram o câmbio flutuante e os salários passaram a ser reajustados pela inflação futura e não mais pela inflação passada. Na questão das reformas, eles enfrentaram a reforma da previdência, fizeram uma reforma tributária e flexibilizaram as leis trabalhistas, enfim, com tudo isso conseguiram bons resultados. A coisa funcionou. Tiveram muita lucidez no reconhecimento da dificuldade e as negociações foram conduzidas com muita transparência. Na hora de todos sentarem à mesa no Brasil, o governo deveria dar o exemplo e sair rapidamente fazendo o ajuste pela via das reformas. Não só iria criar uma percepção positiva, como também permitiria baixar as taxas de juros e reduzir as pressões inflacionárias.

Folha - Em que os trabalhadores poderiam ceder, no pacto?
Piva
- Eu tenho a impressão que nós vamos ter de identificar aquelas categorias de empregados que tiveram uma perda de renda muito significativa e, nessas, promover um reajuste salarial, mas também teremos de identificar aquelas que poderão esperar um pouco mais para reajustar os salários.

Folha - E os empresários?
Piva
- Já em relação aos empresários, teremos que detectar aqueles setores que tiveram pressão de custo, seja pela via do câmbio, seja pela via do não-reajuste dos últimos tempos, para permitir o aumento dos preços, mas também aqueles que poderão esperar um pouco mais para um novo reajuste dos preços. Se um dos setores for para a mesa de negociação achando que irá ganhar, o pacto estará liquidado. Nós estamos assistindo a uma pressão de negociação das dívidas por parte dos Estados e municípios. Se o governo ceder nisso agora, estará liquidado. Ele já irá começar o governo com um enorme buraco, e dando um sinal muito duvidoso para fora. O Lula terá que ser muito firme em não ceder nesse primeiro ano para poder viabilizar os próximos três anos.

Folha - O Lula, até agora, tem demonstrado firmeza?
Piva
-Isso, sem dúvida nenhuma. Ele está dando essa demonstração. Eu achei muito inteligente, por exemplo, ele ter escolhido o programa da fome como prioridade do primeiro ano de governo.

Folha - O sr. acha que os trabalhadores também terão que ceder nas leis trabalhistas?
Piva
- Nessa questão da flexibilização, eu acho que terá de prevalecer a tese do negociado em detrimento à do legislado. Eu até compreendo que há uma série de conquistas trabalhistas a serem mantidas, como o 13º salário e o fundo de garantia, mas as negociações trabalhistas terão de prevalecer em relação à legislação. Todo mundo terá de ser muito transparente, tanto por parte dos empregados como dos empregadores. É bem capaz, por exemplo, de os empresários terem de fazer algum sacrifício de investimento, o que é uma pena, já que o investimento é a melhor forma de crescer sem pressão inflacionária. Mas talvez tenhamos de fazer isso para não termos outros custos que uma nova fase de investimentos exigiria, a não ser que consigamos recursos de fora ou invistamos com recursos próprios. Eu acho que, se a percepção do pacto for positiva, as empresas irão manter os investimentos com recursos próprios.

Folha - Além do investimento, em que o empresário poderá abrir mão?
Piva
- É bem capaz de ele ter de ceder em aumento de preço. E isso é o que mais toca o empresário. Afinal de contas, afeta a rentabilidade da empresa e a capacidade de investir.

Folha - Isso não pode gerar mais desemprego?
Piva
- Acho que não. Se você não investir, o que acontece é que você não gera mais empregos, o que é muito ruim para um país que joga todo ano 1,7 milhão de jovens no mercado de trabalho, mas isso não significa gerar desemprego. Um esforço muito grande que é preciso ser feito pelo empresário e pelo governo é o de reduzir o grau de informalidade do mercado. Hoje em dia, há um mercado excessivamente informal, uma boa parte disso certamente por causa do custo do emprego, já que não sai a reforma tributária, mas uma boa parte também se deve ao fato de muitos segmentos terem se acostumado a trabalhar com mão-de-obra informal. Terá de haver um esforço enorme para formalizar essa mão-de-obra, até porque isso significa melhora de arrecadação para o governo.

Folha - O sr. acha que o governo já deve dar a partida para as discussões do pacto?
Piva
- Eu acho que isso tem de acontecer relativamente rápido, até porque é uma forma de ajudar o novo governo a vender para a sociedade a idéia de que boa parte das suas demandas não serão atendidas no início do governo. Nos últimos dias, já tivemos passeata do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), da Força Sindical, enfim, são pressões que se já tivéssemos sentado numa mesa de negociação certamente poderiam não ter existido. Acho ruim já começar a acontecer essas pressões num governo que nem começou ainda. Estamos num momento que, em primeiro lugar, se deve aproveitar esse clima positivo para fazer com que tudo dê certo. Em segundo lugar, sair desse eterno sentimento de esperança para já começar a negociar o pacto.

Folha - O governo deve tomar a iniciativa do pacto?
Piva
- O governo Lula deve tomar a iniciativa, até porque ele é que tem a legitimidade para isso. Eu não sei como ele vai fazer isso, mas acho que ele deve começar o quanto antes.

Folha - Se o Lula não começar a discutir o pacto, teremos de volta a inflação?
Piva
- O Lula tem de começar imediatamente o processo de interlocução com todos os atores da sociedade. No meu entender, ele tem dois braços claros. Ele tem o José Dirceu cuidando das estruturação politica de coalizão e o [Antônio] Palocci cuidando da estruturação de conteúdo. Enquanto não sai o pacto, o Lula, pelo peso de seu cargo e por suas características, tem de abrir esse espaço de interlocução. Ele tem de começar a chamar os empresários, as entidades representativas, os atores econômicos, os atores sociais, os trabalhadores e começar a conversar. A partida para o pacto é uma forma de impedir esses espasmos de inflação, senão isso pode se tornar uma coisa complicada mais a frente.

Folha - A inflação não pode ser útil para engordar o Orçamento de 2003 do governo?
Piva
- O problema é esse. Como é que o governo vai resistir à tentação maravilhosa de deixar a inflação crescer? A inflação gera alguma espécie de crescimento, ela mascara as contas públicas, facilita a vida do governante, e é essa exatamente a tentação que Lula precisa resistir, senão ele faz um primeiro ano bom e três ruins. O que nós sugerimos é que ele faça um ano ruim para ter três bons. É muito complicado resistir ao apelo da inflação. O início do governo do PT será fundamental. E é por isso que eu acho que ele deve aproveitar esses dois meses para criar todos os canais com empresários, trabalhadores e partidos políticos para ter uma largada mais tranquila.

Folha - O empresário Antônio Ermírio de Moraes não acredita no pacto.
Piva
-Eu não tenho a mesma opinião do Antônio Ermírio. Eu acho essa uma opinião um pouco desesperançosa, por um lado, e um pouco pragmática demais, por outro. Nesse momento, você tem de aceitar o fato de o desprendimento ser uma variável importante na equação e que as pessoas estão maduras o suficiente para buscarem um entendimento melhor do que tivemos até agora.

Folha - O sr. não acha que a falta de recursos pode atrapalhar os planos sociais do novo governo?
Piva
- É por isso que eu acho que o programa escolhido de fome zero é uma decisão inteligente. O governo não poderia mesmo atacar todos os problemas sociais. Ele não terá recursos para isso. O Lula terá, no entanto, outra fonte importante de recursos que será a do combate à corrupção. Se o Lula conseguir fechar as torneiras da corrupção, sobrarão muitos recursos no Brasil.

Folha - Os governos anteriores foram lenientes com a corrupção?
Piva
- Não sei se foram lenientes, mas acho que o próximo governo terá aprendido com os governos anteriores. É preciso ver de que forma se otimiza a estrutura que está aí hoje montada para fechar os furos que ainda existem. O governo do PT tem um compromisso muito grande com a ética.

Folha - O sr. tem idéia de quanto o combate à corrupção poderá gerar de recursos?
Piva
- Ninguém consegue medir o tamanho da corrupção. Até porque existem várias formas de corrupção. Há a corrupção pública e a privada. Quero deixar claro que o Fernando Henrique foi um presidente muito correto.

Folha - O que faltou no governo FHC no combate à corrupção?
Piva
- O Fernando Henrique foi um presidente importante. Foi ele que trouxe a estabilidade, que conseguiu implantar a Lei de Responsabilidade Fiscal, que criou uma percepção positiva do mundo em relação ao Brasil, que fez as privatizações, mas faltou operação ao seu governo. A impressão que eu tenho é que, depois da morte do Serjão (Sérgio Motta, ministro das Comunicações morto em 1998), faltou um operador no governo. E aí as decisões demoraram, o câmbio fixo foi arrastado muito além do que devia, o custo da reeleição foi alto, a administração palaciana em relação aos partidos políticos foi complicada. Custou caro. Foi muito bem feita a administração palaciana, o governo teve apoio o tempo todo, mas era uma administração cara. Isso tudo aconteceu pela falta de operador.


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