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Historiador Luiz Felipe de Alencastro afirma que socialistas estrangeiros cobram atos que podem gerar crise
"Viúvas da esquerda são risco para Lula"
PLÍNIO FRAGA
DA REPORTAGEM LOCAL
O historiador Luiz Felipe de
Alencastro, 56, professor de história do Brasil na Universidade de
Paris 4 (Sorbonne), aponta um
risco internacional para o governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
"Há uma série de viúvas da esquerda do mundo inteiro que começam a achar que Lula pode resolver os recalques acumulados
nestes tempos todos", analisa, numa referência a cobrança de atos
de Lula em relação ao ditador cubano Fidel Castro, mas que poderia ser estendida a Venezuela, Hugo Chávez, em crise política grave.
"Há um tipo de expectativa e de
transferência de responsabilidade
da esquerda que tem de ser esconjurada", afirma o historiador, de
Paris, em entrevista por telefone
concedida à Folha.
Otimista, o autor de "O Trato
dos Viventes - Formação do Brasil
no Atlântico Sul", define o papel
do presidente eleito: "O Lula é o
conciliador das camadas sociais
brasileiras. É o mediador interno,
o verdadeiro Tancredo Neves,
que sempre foi um mediador inter-regional, na velha tradição do
marquês de Paraná, na qual se faz
conciliação entre as elites".
Folha - Pesquisas de opinião pública têm revelado graus recordes
de expectativa positiva em relação
ao governo Lula. Mas, depois da divulgação do ministério, consolidou-se em parcelas dos formadores
de opinião a sensação de que o novo governo caminha para ser "mais
do mesmo", principalmente nas diretrizes econômicas e nas restrições orçamentárias. Como o sr. vê
esses extremos?
Luiz Felipe de Alencastro -Quinze dias antes da eleição, estavam
prometendo o apocalipse no caso
da vitória do Lula. Fernando Henrique chegou a dizer que poderíamos virar uma nova Argentina,
momento no qual o dólar começou a disparar. O [José" Serra
[PSDB" chegou a acusá-lo de renegar, por causa de uma frase que
o Lula disse, o Tratado de Não-Proliferação Nuclear. Havia um
clima de anúncio do dilúvio para
logo depois da eleição.
O dilúvio não veio imediatamente. Ao contrário, veio uma série de medidas prudentes e até esperadas, como a idéia do pacto
social, que jogou a expectativa do
governo mais para a frente. Estava
nos Estados Unidos logo depois
da eleição, para uma conferência
do Council on Foreign Relations,
organizada pelo [brasilianista e
historiador" Kenneth Maxwell. O
clima que havia lá, no meio de diplomatas, funcionários do Departamento de Estado e parlamentares americanos, era meio de pânico. Três dias antes o Paul O'Neill
[ex-secretário do Tesouro dos
EUA" havia dito que o mercado
queria saber se Lula não era louco.
A partir daí, o retorno para uma
análise de que a pasmaceira vai
continuar me parece quase surrealista, com a ida de um extremo
ao outro. Houve uma espécie de
terrorismo eleitoral em cima da
candidatura. O que está acontecendo é algo inevitável, porque
qualquer mau passo dado, nesta
conjuntura de recessão mundial e
de expectativa grande em relação
ao governo, poderia criar uma
crise em três meses, com fuga de
capital e especulação em torno de
uma desvalorização brutal do
real. Isso num contexto no qual a
Argentina, o Uruguai e o Paraguai
já estão numa crise profunda e
com o governo conservador de
Bush nos Estados Unidos. Lula
não fará um governo que tenha
condição de qualquer surpresa no
início. Ao contrário.
Folha - Em que o PT pode diferir
do governo que termina então?
Alencastro - Sociologicamente, o
PT é um partido de esquerda. Essa é toda a diferença. Uma coisa é
o PSDB fazer aliança com o PFL.
O PSDB nunca teve o fundamento sociológico de esquerda. Era
um partido aliado dos banqueiros, não dos bancários. Disse isso
em 1994, na primeira eleição do
Fernando Henrique. Um partido
que tem ligação com os banqueiros e vai ainda mais para a direita,
malgrado o discurso social-democrata e uma parte dos desejos
de quadros seus, é um partido facilmente paralisado pelas alianças
à direita que faz.
Um partido que tem um eleitorado de esquerda, ligado ao movimento sindical e à sociedade civil,
como é o caso do PT, ao fazer
aliança com a direita garante a governabilidade. Acho que não
compromete o programa do partido. Evidentemente, nessas nomeações de ministros, podemos
ficar ressabiados com um ou outro. Eu próprio não vejo por que
Miro Teixeira [Comunicações"
está nesse governo. Penso que
Gilberto Gil [Cultura", com auxiliares comprometidos com o programa cultural do PT, poderá ser
um bom ministro. Miro Teixeira é
o Brasil de anteontem.
Mas o fato é que o governo e a
expectativa que ele criou terão de
ser administrados e canalizados
numa relação com o Congresso. É
uma carga muito pesada para ficar nas costas do Lula, com toda
essa perspectiva de mudança partindo só da caixola dele. Seria retornar a uma situação parecida
com a do Fernando Henrique, se
o PT esquecesse que é um partido
ligado ao movimento social. No
começo do governo Fernando
Henrique, ele se passava por um
grande adivinhador do capitalismo contemporâneo, mas o país
foi três vezes ao FMI, à beira da
bancarrota. Pela primeira vez, o
grupo paulista que se reunia em
torno do Fernando Henrique desde 1975 no Cebrap caiu do cavalo.
Há lideranças novas, como o [governador reeleito de São Paulo"
Geraldo Alckmin, mas que trilham caminhos próprios. O PSDB
agora será mais mineiro, cearense
e menos paulista. Numa derrota
fragorosa.
Folha - A agenda parlamentar do
novo governo repete a de FHC: reformas tributária, previdenciária,
trabalhista e política. Mas a base
no Congresso é menor do que a dos
tucanos. Por que poderia dar certo
com Lula aquilo que não ocorreu no
governo FHC, num contexto mais
favorável?
Alencastro - É essa a idéia do
pacto social. Construir um tipo de
consenso nas lideranças civis e
nos movimentos sociais que funcione como elemento de referência para o Congresso. O Lula aparece hoje como o grande mediador. O Fernando Henrique apresentou-se como um mediador entre o Brasil e o grande capital, por
isso teve o voto de toda a direita.
Era o homem que falava inglês,
que tinha dado aula aqui, aula
acolá. Captou todos esses doutorados honoris causa numa operação sempre pilotada pelo Itamaraty, que dava sinais antes às embaixadas para que essas coisas
fossem desencavadas nas universidades. Foi sempre assim. Era o
homem que iria viabilizar a inserção do Brasil no movimento do
capitalismo mundial.
A aposta do Lula é outra, dada a
situação de degradação da América Latina. Jogar a política do
quanto pior melhor agora, isso no
caso da direita, será levar a América Latina de roldão. Será a africanização da América do Sul, com
conflito, guerra civil e por extensão tráfico de drogas, levando a
uma situação sem controle, com
intervenção de tropa americana lá
na fronteira com Paraguai e Argentina, em Foz do Iguaçu, sob
alegação de terrorismo.
O Lula aparece como mediador
desse Brasil de baixo com a classe
política. É o mediador interno, o
verdadeiro Tancredo [Neves
(1910-1985), presidente eleito na
transição do regime militar para o
civil, morto antes de ser empossado". Tancredo sempre foi um mediador inter-regional, na velha
tradição do marquês de Paraná,
na qual se faz conciliação entre as
elites. O Lula é o conciliador das
camadas sociais brasileiras. Isso é
percebido desse jeito, cada vez
mais, dentro e fora do país. Explica a disposição [para as administrações do PT" de nomes como o
de João Sayad e Jorge Wilheim.
Gente que era quadro da direita e
que começa a trabalhar com uma
prefeita da esquerda de modo
premonitório.
Folha - O sr. colocaria nesse quadro nomes como os dos ministros
Luiz Fernando Furlan (Desenvolvimento), amigo de FHC, e Roberto
Rodrigues (Agricultura), que fez
campanha para Serra?
Alencastro - Aí é o Brasil exportador, que está vendo além da
costura interna.
Folha - Mas não tiram a característica de governo de esquerda?
Alencastro - Dias depois da eleição, o Perry Anderson chamou a
atenção para isso, o "Financial Times" e "The Economist", que era
o pessoal amigo do FHC, começaram a chamar seu governo de
centro-direita. De repente, o
mundo inteiro descobre que no
Brasil há esquerda.
Uma esquerda historicamente
parecidíssima com o Partido Trabalhista inglês, na qual o movimento sindical se organiza em
partido e assume o poder. É uma
surpresa histórica, porque todo
mundo estava enterrando esse
modelo como arcaico.
Folha - Que tipo de interferência
internacional pode vir a ter um governo Lula?
Alencastro - Isso depende muito
do seu sucesso. A construção de
um partido igual ao PT na Argentina ou no Uruguai é tarefa para
dez, 15 anos. A sobrevivência do
peronismo na Argentina é muito
mais dramática do que foi o varguismo no Brasil. Isso o eleitorado brasileiro já havia resolvido em
1989, quando jogou o Lula no segundo turno [em vez do trabalhista Leonel Brizola".
No nível internacional, o que há
é uma coisa perigosa, uma espécie
de polarização no Brasil de uma
série de viúvas da esquerda do
mundo inteiro, que começam a
achar que Lula pode resolver os
recalques acumulados nesses
tempos todos.
Por exemplo, o Daniel Cohn-Bendit [intelectual francês, um
dos líderes estudantis em maio de
1968" deu uma declaração dizendo que a primeira coisa que Lula
deveria fazer é mandar uma comissão a Cuba para pedir abertura ao Fidel Castro. Mitterrand e a
esquerda aqui ficaram 14 anos no
poder e não fizeram andar um
milímetro; o Felipe González [ex-primeiro-ministro da Espanha",
que era amigo de Fidel, não fez
andar um milímetro, e agora é o
Lula que tem de resolver o problema da ditadura em Cuba? Aí não
dá. Há um tipo de expectativa e de
transferência de responsabilidade
da esquerda que tem de ser esconjurada. Dar um chega para lá.
Folha - Quando FHC nomeou Pelé
para o Ministério dos Esportes, o sr.
disse que era um reforço ao estereótipo de que o negro só ascende
socialmente por meio do futebol. O
mesmo não pode ser dito da nomeação de Gil, fazendo um paralelo entre o futebol e a música?
Alencastro - Não estou de acordo, porque a cultura negra é o que
diferencia o Brasil do resto da
América Latina. A música brasileira é o único lugar no qual a hegemonia americana não se manifesta. O Ministério dos Esportes
era simbólico. O da Cultura não.
Se o Gil não for sensível à política
cultural do PT... Os oito anos do
Francisco Weffort foram muito
criticados. É preciso lembrar ainda as presenças da Benedita da
Silva e da Marina Silva no governo. Há um efeito simbólico.
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