São Paulo, domingo, 05 de janeiro de 2003

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Historiador Luiz Felipe de Alencastro afirma que socialistas estrangeiros cobram atos que podem gerar crise

"Viúvas da esquerda são risco para Lula"

PLÍNIO FRAGA
DA REPORTAGEM LOCAL

O historiador Luiz Felipe de Alencastro, 56, professor de história do Brasil na Universidade de Paris 4 (Sorbonne), aponta um risco internacional para o governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
"Há uma série de viúvas da esquerda do mundo inteiro que começam a achar que Lula pode resolver os recalques acumulados nestes tempos todos", analisa, numa referência a cobrança de atos de Lula em relação ao ditador cubano Fidel Castro, mas que poderia ser estendida a Venezuela, Hugo Chávez, em crise política grave.
"Há um tipo de expectativa e de transferência de responsabilidade da esquerda que tem de ser esconjurada", afirma o historiador, de Paris, em entrevista por telefone concedida à Folha.
Otimista, o autor de "O Trato dos Viventes - Formação do Brasil no Atlântico Sul", define o papel do presidente eleito: "O Lula é o conciliador das camadas sociais brasileiras. É o mediador interno, o verdadeiro Tancredo Neves, que sempre foi um mediador inter-regional, na velha tradição do marquês de Paraná, na qual se faz conciliação entre as elites".
 

Folha - Pesquisas de opinião pública têm revelado graus recordes de expectativa positiva em relação ao governo Lula. Mas, depois da divulgação do ministério, consolidou-se em parcelas dos formadores de opinião a sensação de que o novo governo caminha para ser "mais do mesmo", principalmente nas diretrizes econômicas e nas restrições orçamentárias. Como o sr. vê esses extremos?
Luiz Felipe de Alencastro -
Quinze dias antes da eleição, estavam prometendo o apocalipse no caso da vitória do Lula. Fernando Henrique chegou a dizer que poderíamos virar uma nova Argentina, momento no qual o dólar começou a disparar. O [José" Serra [PSDB" chegou a acusá-lo de renegar, por causa de uma frase que o Lula disse, o Tratado de Não-Proliferação Nuclear. Havia um clima de anúncio do dilúvio para logo depois da eleição.
O dilúvio não veio imediatamente. Ao contrário, veio uma série de medidas prudentes e até esperadas, como a idéia do pacto social, que jogou a expectativa do governo mais para a frente. Estava nos Estados Unidos logo depois da eleição, para uma conferência do Council on Foreign Relations, organizada pelo [brasilianista e historiador" Kenneth Maxwell. O clima que havia lá, no meio de diplomatas, funcionários do Departamento de Estado e parlamentares americanos, era meio de pânico. Três dias antes o Paul O'Neill [ex-secretário do Tesouro dos EUA" havia dito que o mercado queria saber se Lula não era louco.
A partir daí, o retorno para uma análise de que a pasmaceira vai continuar me parece quase surrealista, com a ida de um extremo ao outro. Houve uma espécie de terrorismo eleitoral em cima da candidatura. O que está acontecendo é algo inevitável, porque qualquer mau passo dado, nesta conjuntura de recessão mundial e de expectativa grande em relação ao governo, poderia criar uma crise em três meses, com fuga de capital e especulação em torno de uma desvalorização brutal do real. Isso num contexto no qual a Argentina, o Uruguai e o Paraguai já estão numa crise profunda e com o governo conservador de Bush nos Estados Unidos. Lula não fará um governo que tenha condição de qualquer surpresa no início. Ao contrário.

Folha - Em que o PT pode diferir do governo que termina então?
Alencastro -
Sociologicamente, o PT é um partido de esquerda. Essa é toda a diferença. Uma coisa é o PSDB fazer aliança com o PFL. O PSDB nunca teve o fundamento sociológico de esquerda. Era um partido aliado dos banqueiros, não dos bancários. Disse isso em 1994, na primeira eleição do Fernando Henrique. Um partido que tem ligação com os banqueiros e vai ainda mais para a direita, malgrado o discurso social-democrata e uma parte dos desejos de quadros seus, é um partido facilmente paralisado pelas alianças à direita que faz.
Um partido que tem um eleitorado de esquerda, ligado ao movimento sindical e à sociedade civil, como é o caso do PT, ao fazer aliança com a direita garante a governabilidade. Acho que não compromete o programa do partido. Evidentemente, nessas nomeações de ministros, podemos ficar ressabiados com um ou outro. Eu próprio não vejo por que Miro Teixeira [Comunicações" está nesse governo. Penso que Gilberto Gil [Cultura", com auxiliares comprometidos com o programa cultural do PT, poderá ser um bom ministro. Miro Teixeira é o Brasil de anteontem.
Mas o fato é que o governo e a expectativa que ele criou terão de ser administrados e canalizados numa relação com o Congresso. É uma carga muito pesada para ficar nas costas do Lula, com toda essa perspectiva de mudança partindo só da caixola dele. Seria retornar a uma situação parecida com a do Fernando Henrique, se o PT esquecesse que é um partido ligado ao movimento social. No começo do governo Fernando Henrique, ele se passava por um grande adivinhador do capitalismo contemporâneo, mas o país foi três vezes ao FMI, à beira da bancarrota. Pela primeira vez, o grupo paulista que se reunia em torno do Fernando Henrique desde 1975 no Cebrap caiu do cavalo. Há lideranças novas, como o [governador reeleito de São Paulo" Geraldo Alckmin, mas que trilham caminhos próprios. O PSDB agora será mais mineiro, cearense e menos paulista. Numa derrota fragorosa.

Folha - A agenda parlamentar do novo governo repete a de FHC: reformas tributária, previdenciária, trabalhista e política. Mas a base no Congresso é menor do que a dos tucanos. Por que poderia dar certo com Lula aquilo que não ocorreu no governo FHC, num contexto mais favorável?
Alencastro
- É essa a idéia do pacto social. Construir um tipo de consenso nas lideranças civis e nos movimentos sociais que funcione como elemento de referência para o Congresso. O Lula aparece hoje como o grande mediador. O Fernando Henrique apresentou-se como um mediador entre o Brasil e o grande capital, por isso teve o voto de toda a direita.
Era o homem que falava inglês, que tinha dado aula aqui, aula acolá. Captou todos esses doutorados honoris causa numa operação sempre pilotada pelo Itamaraty, que dava sinais antes às embaixadas para que essas coisas fossem desencavadas nas universidades. Foi sempre assim. Era o homem que iria viabilizar a inserção do Brasil no movimento do capitalismo mundial.
A aposta do Lula é outra, dada a situação de degradação da América Latina. Jogar a política do quanto pior melhor agora, isso no caso da direita, será levar a América Latina de roldão. Será a africanização da América do Sul, com conflito, guerra civil e por extensão tráfico de drogas, levando a uma situação sem controle, com intervenção de tropa americana lá na fronteira com Paraguai e Argentina, em Foz do Iguaçu, sob alegação de terrorismo.
O Lula aparece como mediador desse Brasil de baixo com a classe política. É o mediador interno, o verdadeiro Tancredo [Neves (1910-1985), presidente eleito na transição do regime militar para o civil, morto antes de ser empossado". Tancredo sempre foi um mediador inter-regional, na velha tradição do marquês de Paraná, na qual se faz conciliação entre as elites. O Lula é o conciliador das camadas sociais brasileiras. Isso é percebido desse jeito, cada vez mais, dentro e fora do país. Explica a disposição [para as administrações do PT" de nomes como o de João Sayad e Jorge Wilheim. Gente que era quadro da direita e que começa a trabalhar com uma prefeita da esquerda de modo premonitório.

Folha - O sr. colocaria nesse quadro nomes como os dos ministros Luiz Fernando Furlan (Desenvolvimento), amigo de FHC, e Roberto Rodrigues (Agricultura), que fez campanha para Serra?
Alencastro
- Aí é o Brasil exportador, que está vendo além da costura interna.

Folha - Mas não tiram a característica de governo de esquerda?
Alencastro -
Dias depois da eleição, o Perry Anderson chamou a atenção para isso, o "Financial Times" e "The Economist", que era o pessoal amigo do FHC, começaram a chamar seu governo de centro-direita. De repente, o mundo inteiro descobre que no Brasil há esquerda.
Uma esquerda historicamente parecidíssima com o Partido Trabalhista inglês, na qual o movimento sindical se organiza em partido e assume o poder. É uma surpresa histórica, porque todo mundo estava enterrando esse modelo como arcaico.

Folha - Que tipo de interferência internacional pode vir a ter um governo Lula?
Alencastro -
Isso depende muito do seu sucesso. A construção de um partido igual ao PT na Argentina ou no Uruguai é tarefa para dez, 15 anos. A sobrevivência do peronismo na Argentina é muito mais dramática do que foi o varguismo no Brasil. Isso o eleitorado brasileiro já havia resolvido em 1989, quando jogou o Lula no segundo turno [em vez do trabalhista Leonel Brizola".
No nível internacional, o que há é uma coisa perigosa, uma espécie de polarização no Brasil de uma série de viúvas da esquerda do mundo inteiro, que começam a achar que Lula pode resolver os recalques acumulados nesses tempos todos.
Por exemplo, o Daniel Cohn-Bendit [intelectual francês, um dos líderes estudantis em maio de 1968" deu uma declaração dizendo que a primeira coisa que Lula deveria fazer é mandar uma comissão a Cuba para pedir abertura ao Fidel Castro. Mitterrand e a esquerda aqui ficaram 14 anos no poder e não fizeram andar um milímetro; o Felipe González [ex-primeiro-ministro da Espanha", que era amigo de Fidel, não fez andar um milímetro, e agora é o Lula que tem de resolver o problema da ditadura em Cuba? Aí não dá. Há um tipo de expectativa e de transferência de responsabilidade da esquerda que tem de ser esconjurada. Dar um chega para lá.

Folha - Quando FHC nomeou Pelé para o Ministério dos Esportes, o sr. disse que era um reforço ao estereótipo de que o negro só ascende socialmente por meio do futebol. O mesmo não pode ser dito da nomeação de Gil, fazendo um paralelo entre o futebol e a música?
Alencastro
- Não estou de acordo, porque a cultura negra é o que diferencia o Brasil do resto da América Latina. A música brasileira é o único lugar no qual a hegemonia americana não se manifesta. O Ministério dos Esportes era simbólico. O da Cultura não. Se o Gil não for sensível à política cultural do PT... Os oito anos do Francisco Weffort foram muito criticados. É preciso lembrar ainda as presenças da Benedita da Silva e da Marina Silva no governo. Há um efeito simbólico.



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