São Paulo, domingo, 05 de março de 2006

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ENTREVISTA/ANTHONY GIDDENS

Sociólogo inglês afirma que escândalos prejudicam presidente, mas sustenta que só conservadorismo econômico muda o país

Pai da Terceira Via defende política de Lula


"O esquerdismo responsável funciona com restrições, com as quais um líder tem de lidar"


"Por achar que ele está conduzindo um programa muito bom, espero que ele [Lula] se recupere"

FÁBIO VICTOR
DE LONDRES

Em julho de 2003, o sociólogo Anthony Giddens, 68, então diretor da LSE (London School of Economics and Political Science), recebeu Luiz Inácio Lula da Silva e o saudou como a grande esperança da esquerda mundial. "Lula quer mudar o Brasil, mas eu seriamente penso que ele pode mudar o mundo", afirmou, à época.
Quase três anos e um escândalo do "mensalão" depois, o ideólogo da um dia chamada Terceira Via, hoje Governança Progressista, baixou o tom do discurso e incorporou a ele algumas críticas. Mas permanece um admirador de Lula, que chega amanhã à noite a Londres para visita oficial de três dias. Mais do que isso, Giddens defendeu com fervor a política econômica do governo petista.
Em entrevista à Folha, realizada na última terça-feira em sua sala no Centro de Estudos da Governança Global da LSE, ele afirmou que o conservadorismo econômico adotado pelo Brasil é a única forma possível de se iniciar uma reforma social profunda.
Para ele, o país não crescerá se não for competitivo em algum setor da economia globalizada e, em crítica a uma das principais batalhas do governo Lula no plano internacional, observou que não basta insistir em liberalizar a agricultura. "Não se pode, nos dias de hoje, ancorar uma economia na agricultura, isso é ridículo."
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

Folha - Na última vez em que Lula esteve aqui, o sr. o apresentou como a nova promessa da esquerda progressista. E agora, como vê o governo dele?
Anthony Giddens -
Em qualquer governo de centro-esquerda, haverá os que dirão que ele não é suficientemente de esquerda, que deveria gastar mais com o social. Penso que a maioria das estratégias de Lula é correta. Ele teve de ser cauteloso do ponto de vista fiscal, por causa da enorme dívida brasileira. Você tem que saná-la, do contrário gastará ainda mais com pagamento de juros.
Se você tem a economia mais estável, pode começar a reconstruir as instituições. Evidente que o desempenho econômico poderia ser melhor, mas não tem sido tão mau. A reforma da Previdência foi importante, o desemprego caiu. Acho que é uma situação razoável. E Lula tem causado um grande impacto no cenário mundial, desempenhando um papel ativo nos encontros da OMC [Organização Mundial do Comércio] e consolidando um bloco de nações em desenvolvimento. Mas, como você sabe, essas acusações de corrupção prejudicam, e muito, alguém que se pretendia um político novo. Mesmo se ele, pessoalmente, é totalmente inocente, continua sendo sério que seja parte envolvida nas denúncias.

Folha - O escândalo de corrupção foi uma surpresa para o sr.?
Giddens -
Foi muito mais uma decepção. Surpresa não foi tanto, porque o Brasil quase sempre foi conduzido numa linha tênue entre clientelismo e corrupção -e aqui neste país também há essa linha. Mas foi tristemente decepcionante, pois se esperava que essas coisas fossem ser removidas antes mesmo que Lula assumisse, mas jamais após sua eleição.

Folha - Como Lula era uma aposta da chamada esquerda progressista, o que o escândalo representa para esse espectro?
Giddens -
Por achar que ele está conduzindo um programa muito bom, espero que ele se recupere. E que as pessoas acreditem e confiem nele como indivíduo, mesmo que não estendam necessariamente isso para o resto do partido. Acho que seria a melhor coisa para o Brasil. Se você olhar para a América Latina e perguntar onde está a esperança, a maioria dos europeus dirá que o Chile é o país mais bem-sucedido. Mostrou que, mesmo após uma terrível ditadura, pode haver líderes de esquerda responsáveis. O que o Brasil precisa é o que qualquer democracia estável precisa, uma classe média substancial. É um erro pensar em apenas transferir renda dos ricos para os pobres.

Folha - O Chile é o exemplo a ser seguido pelo Brasil?
Giddens -
No que defino como liderança responsável de esquerda. Quando Lula assumiu o poder, eu disse que o Brasil precisava de um esquerdismo responsável, distinto do esquerdismo populista. O esquerdismo responsável funciona com restrições, com as quais um líder tem de lidar. Isso inclui rigor fiscal, integração ao mercado global etc. E no Chile essas coisas foram muito bem conduzidas.

Folha - É possível fazer uma mudança social radical com a política econômica adotada pelo Brasil?
Giddens -
Acho impossível fazer uma mudança social profunda se você não tem uma política econômica como esta. Não digo ditada pelo FMI [Fundo Monetário Internacional] ou por organizações internacionais, mas o Brasil estava numa situação muito problemática por causa de tantos empréstimos anteriores, tinha uma posição fiscal que estimulava a corrupção. A menos que as pessoas paguem seus impostos da maneira adequada, você não consegue obter avanços sociais. Mas eu sou um centro-esquerdista progressista, não acredito que o mercado resolva tudo. Você precisa de política industrial, de políticas sociais para os pobres, mas também que o país cresça. Não sabemos de outra maneira para tirar milhões de pessoas da exclusão que não o crescimento.

Folha - Mas essa política econômica não tem ajudado o país a crescer muito. Ao contrário, a média está bem abaixo da dos países em desenvolvimento, 2,6% nos últimos três anos. A que atribuir esse desempenho?
Giddens -
Não sou um expert em economia brasileira, mas pegue a Índia, cuja infra-estrutura é ainda pior que a do Brasil, mas que tem feito mais progressos na liberalização de sua economia. Eles manejaram de várias formas para crescer, mas principalmente investindo em setores de alta tecnologia, o que os torna competitivos mundialmente. O Brasil não parece, até onde eu sei, fazer nada parecido. Não tem um setor em que seja especificamente competitivo. Permanece tentando com a agricultura, culpando a União Européia por não liberalizar tarifas, mas na realidade o Brasil poderia estar competindo num setor em que pode de fato se colocar nos mercados competitivos internacionais. Se um país como a Índia pode, por que o Brasil não?
Talvez carros, porque o Brasil parece estar numa boa posição com o etanol e os combustíveis alternativos. Se o Brasil projetar um carro, nacional ou em conjunto com outros fabricantes, que use etanol e seja vendável em escala mundial, poderia ser uma boa. Pois há agora na Europa uma fuga do [petróleo do] Oriente Médio e uma preocupação real com a Rússia. Assim, a agenda da energia ecológica será realmente importante nos próximos anos.

Folha - O Brasil já produz carros movidos a etanol e também bicombustíveis, mas feitos por multinacionais...
Giddens -
Teria de ser um carro realmente muito bom, com bom design. Não bastará que seja apenas econômico. Todos os países desenvolvidos se integraram efetivamente ao mercado mundial com seus próprios produtos.

Folha - O sr. não crê que, com o fim dos subsídios, a agricultura poderia ser significativa para a economia brasileira?
Giddens -
Ajudaria se a agricultura fosse liberalizada, e eu acho que deveria ser, não há dúvida de que o Brasil é prejudicado pelo protecionismo da União Européia e dos EUA. Mas você não pode, hoje, ancorar uma economia na agricultura, isso é ridículo.

Folha - Como o sr. avalia o programa social Bolsa-Família?
Giddens -
Você precisaria me dizer que tipo de programa é. Não é o Fome Zero, é?

Folha - Não. Em termos gerais, é um programa que paga um salário a famílias que se comprometem a manter os filhos na escola e cuidar de sua saúde.
Giddens -
É semelhante ao que fazem no México. Isso foi iniciado por [Fernando Henrique] Cardoso, não foi?

Folha - Em nível federal sim, embora o PT reclame sua paternidade em outras esferas.
Giddens -
Se é como você descreve, sou a favor. Para conseguir desenvolver áreas pobres, você tem que mudar a estrutura tradicional das famílias e das comunidades. Você não pode simplesmente trazer dinheiro e colocar lá, mas mudar o cotidiano das pessoas, e claro que a alfabetização é crucial, assim como a posição da mulher. Há uma correlação entre emancipação das mulheres e sucesso econômico. É um bom começo, aliado a outros programas. Mas a chave é mudar a posição das mulheres.

Folha - O sr. concorda com os que dizem que não há diferenças entre as gestões de Lula e FHC?
Giddens -
Eu sempre desejei, como observador externo, que Lula continuasse e até radicalizasse as políticas de Cardoso. E acho bom que ele esteja continuando boa parte dessas políticas. Mas, pelo que entendo, ele tem tentado radicalizá-las, para dar mais atenção aos pobres, o que acho válido, se você conseguir tornar as políticas efetivas.

Folha - Se pudesse aconselhar Lula em relação a disputar ou não a reeleição, o que lhe diria?
Giddens -
Ainda bem que eu não tenho que aconselhá-lo [risos], porque todas as energias estão focadas na Europa. Penso que ele deveria continuar as políticas vigentes e agir para que acusações de corrupção como essas não surjam de novo, porque uma segunda vez poderia ser desastrosa. Acho que seria bom para o Brasil que ele continuasse.

Folha - Há, na América Latina, a chamada "onda esquerdista", também dita neopopulista. Por que ali e agora?
Giddens -
Acho que [o neopopulismo] é fruto da desilusão popular com políticas econômicas que não funcionaram. Esses países precisam de um recomeço e de esperança. Mas não dá para recomeçar se não for adotando o tipo de coisa de que falamos anteriormente. Não vejo nenhum período na história da América Latina em que populistas tenham feito bem a algum país, o mesmo na Europa. Na Venezuela [com Hugo Chávez], há um mix difícil entre populismo e um Estado petrolífero. Lá há muito petróleo, e você pode usar o dinheiro do petróleo responsavelmente, para construir uma sociedade mais ativa, como se fez na Noruega e, em menor medida, na Rússia. Mas não me parece que é o que Chávez está fazendo. Ele está mais preocupado com a mídia.
Mas a Venezuela não é modelo para ninguém mais. O mundo vai deixar o petróleo de lado, a ficha caiu na consciência global. É no nível da bioenergia que as novas batalhas serão travadas, é isso que redefinirá a geopolítica. A era dos Estados petrolíferos não deve ir além de 20 ou 30 anos mais.

Folha - O avanço do conservadorismo nos EUA e na Europa fez muitos dizerem que, após o boom dos anos 90, a chamada Terceira Via havia falhado. Agora, até conservadores, como o novo líder trabalhista britânico, David Cameron, incorporam aquelas idéias. É a prova da vitória da tendência ou, como dizem alguns críticos, a melhor maneira de vencer uma eleição?
Giddens -
Eu diria que o termo Terceira Via é totalmente dispensável, é só um rótulo, a que muitos atribuíram demasiada importância. O que falo é de como agir a centro-esquerda num mundo que se modificou radicalmente nos últimos 30 anos. As políticas keynesianas que eram a base do Estado de Bem-Estar Social não funcionam mais, é preciso inovação. Nesse sentido, as idéias do que se chamou Terceira Via continuam vivas. Governança Progressista significa simplesmente renovar governos de centro-esquerda que estão alertas a essas tendências.

Folha - De que forma a Guerra do Iraque danificou a imagem da Governança Progressista, dado que seu maior representante, Tony Blair [premiê britânico], por sua aliança com George W. Bush, passou a ser associado ao conservadorismo e à conivência com práticas como tortura e mentiras de guerra?
Giddens -
Certamente a guerra rachou a esquerda européia, e ainda há resíduos disso, mas a maior parte passou. A maioria, independente do que pensa da guerra, agora trabalha para que surja no Iraque uma sociedade decente. Em relação a Blair e à guerra em si, sou profundamente ambivalente. Porque penso que havia várias razões para remover Saddam Hussein. Nunca sabemos o que ocorreria sem a guerra, então é fácil para as pessoas dizer que tudo deu errado. Acho que Blair imaginou que teria o apoio da ONU, e esteve perto de alcançá-lo, mas, claro, ele não veio. Então ele teve de decidir se iria ou não com os americanos, e acho que ele acreditou que seria melhor para o mundo se os EUA não fizessem tudo aquilo isolados.


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