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ENTREVISTA/ANTHONY GIDDENS
Sociólogo inglês afirma que escândalos prejudicam presidente, mas sustenta que só conservadorismo econômico muda o país
Pai da Terceira Via defende política de Lula
"O esquerdismo
responsável funciona com restrições, com as quais um líder tem de
lidar"
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"Por achar que
ele está conduzindo um programa muito bom, espero que ele [Lula] se
recupere"
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FÁBIO VICTOR
DE LONDRES
Em julho de 2003, o sociólogo
Anthony Giddens, 68, então diretor da LSE (London School of
Economics and Political Science),
recebeu Luiz Inácio Lula da Silva e
o saudou como a grande esperança da esquerda mundial. "Lula
quer mudar o Brasil, mas eu seriamente penso que ele pode mudar
o mundo", afirmou, à época.
Quase três anos e um escândalo
do "mensalão" depois, o ideólogo
da um dia chamada Terceira Via,
hoje Governança Progressista,
baixou o tom do discurso e incorporou a ele algumas críticas. Mas
permanece um admirador de Lula, que chega amanhã à noite a
Londres para visita oficial de três
dias. Mais do que isso, Giddens
defendeu com fervor a política
econômica do governo petista.
Em entrevista à Folha, realizada
na última terça-feira em sua sala
no Centro de Estudos da Governança Global da LSE, ele afirmou
que o conservadorismo econômico adotado pelo Brasil é a única
forma possível de se iniciar uma
reforma social profunda.
Para ele, o país não crescerá se
não for competitivo em algum setor da economia globalizada e, em
crítica a uma das principais batalhas do governo Lula no plano internacional, observou que não
basta insistir em liberalizar a agricultura. "Não se pode, nos dias de
hoje, ancorar uma economia na
agricultura, isso é ridículo."
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
Folha - Na última vez em que Lula
esteve aqui, o sr. o apresentou como a nova promessa da esquerda
progressista. E agora, como vê o
governo dele?
Anthony Giddens - Em qualquer
governo de centro-esquerda, haverá os que dirão que ele não é suficientemente de esquerda, que
deveria gastar mais com o social.
Penso que a maioria das estratégias de Lula é correta. Ele teve de
ser cauteloso do ponto de vista fiscal, por causa da enorme dívida
brasileira. Você tem que saná-la,
do contrário gastará ainda mais
com pagamento de juros.
Se você tem a economia mais estável, pode começar a reconstruir
as instituições. Evidente que o desempenho econômico poderia ser
melhor, mas não tem sido tão
mau. A reforma da Previdência
foi importante, o desemprego
caiu. Acho que é uma situação razoável. E Lula tem causado um
grande impacto no cenário mundial, desempenhando um papel
ativo nos encontros da OMC [Organização Mundial do Comércio]
e consolidando um bloco de nações em desenvolvimento. Mas,
como você sabe, essas acusações
de corrupção prejudicam, e muito, alguém que se pretendia um
político novo. Mesmo se ele, pessoalmente, é totalmente inocente,
continua sendo sério que seja parte envolvida nas denúncias.
Folha - O escândalo de corrupção
foi uma surpresa para o sr.?
Giddens - Foi muito mais uma
decepção. Surpresa não foi tanto,
porque o Brasil quase sempre foi
conduzido numa linha tênue entre clientelismo e corrupção -e
aqui neste país também há essa linha. Mas foi tristemente decepcionante, pois se esperava que essas coisas fossem ser removidas
antes mesmo que Lula assumisse,
mas jamais após sua eleição.
Folha - Como Lula era uma aposta
da chamada esquerda progressista, o que o escândalo representa
para esse espectro?
Giddens - Por achar que ele está
conduzindo um programa muito
bom, espero que ele se recupere. E
que as pessoas acreditem e confiem nele como indivíduo, mesmo que não estendam necessariamente isso para o resto do partido. Acho que seria a melhor coisa
para o Brasil. Se você olhar para a
América Latina e perguntar onde
está a esperança, a maioria dos
europeus dirá que o Chile é o país
mais bem-sucedido. Mostrou
que, mesmo após uma terrível ditadura, pode haver líderes de esquerda responsáveis. O que o Brasil precisa é o que qualquer democracia estável precisa, uma classe
média substancial. É um erro
pensar em apenas transferir renda dos ricos para os pobres.
Folha - O Chile é o
exemplo a ser seguido pelo Brasil?
Giddens - No que
defino como liderança responsável
de esquerda.
Quando Lula assumiu o poder, eu
disse que o Brasil
precisava de um
esquerdismo responsável, distinto
do esquerdismo
populista. O esquerdismo responsável funciona
com restrições, com as quais um
líder tem de lidar. Isso inclui rigor
fiscal, integração ao mercado global etc. E no Chile essas coisas foram muito bem conduzidas.
Folha - É possível fazer uma mudança social radical com a política
econômica adotada pelo Brasil?
Giddens - Acho impossível fazer
uma mudança social profunda se
você não tem uma política econômica como esta. Não digo ditada
pelo FMI [Fundo Monetário Internacional] ou por organizações
internacionais, mas o Brasil estava numa situação muito problemática por causa de tantos empréstimos anteriores, tinha uma
posição fiscal que estimulava a
corrupção. A menos que as pessoas paguem seus impostos da
maneira adequada, você não consegue obter avanços sociais. Mas
eu sou um centro-esquerdista
progressista, não acredito que o
mercado resolva tudo. Você precisa de política industrial, de políticas sociais para os pobres, mas
também que o país cresça. Não
sabemos de outra maneira para
tirar milhões de pessoas da exclusão que não o crescimento.
Folha - Mas essa política econômica não tem ajudado o país a crescer muito. Ao contrário, a média está bem abaixo da
dos países em desenvolvimento,
2,6% nos últimos
três anos. A que
atribuir esse desempenho?
Giddens - Não
sou um expert em
economia brasileira, mas pegue a
Índia, cuja infra-estrutura é ainda
pior que a do Brasil, mas que tem
feito mais progressos na liberalização de sua economia. Eles manejaram de várias formas para
crescer, mas principalmente investindo em setores de alta tecnologia, o que os torna competitivos
mundialmente. O Brasil não parece, até onde eu sei, fazer nada parecido. Não tem um setor em que
seja especificamente competitivo.
Permanece tentando com a agricultura, culpando a União Européia por não liberalizar tarifas,
mas na realidade o Brasil poderia
estar competindo num setor em
que pode de fato se colocar nos
mercados competitivos internacionais. Se um país como a Índia
pode, por que o Brasil não?
Talvez carros, porque o Brasil
parece estar numa boa posição
com o etanol e os combustíveis alternativos. Se o Brasil projetar um
carro, nacional ou em conjunto
com outros fabricantes, que use
etanol e seja vendável em escala
mundial, poderia ser uma boa.
Pois há agora na Europa uma fuga
do [petróleo do] Oriente Médio e
uma preocupação real com a Rússia. Assim, a agenda da energia
ecológica será realmente importante nos próximos anos.
Folha - O Brasil já produz carros
movidos a etanol e também bicombustíveis, mas feitos por multinacionais...
Giddens - Teria
de ser um carro
realmente muito
bom, com bom
design. Não bastará que seja apenas
econômico. Todos os países desenvolvidos se integraram efetivamente ao mercado mundial com
seus próprios produtos.
Folha - O sr. não crê que, com o
fim dos subsídios, a agricultura poderia ser significativa para a economia brasileira?
Giddens - Ajudaria se a agricultura fosse liberalizada, e eu acho
que deveria ser, não há dúvida de
que o Brasil é prejudicado pelo
protecionismo da União Européia e dos EUA. Mas você não pode, hoje, ancorar uma economia
na agricultura, isso é ridículo.
Folha - Como o sr. avalia o programa social Bolsa-Família?
Giddens - Você precisaria me dizer que tipo de programa é. Não é
o Fome Zero, é?
Folha - Não. Em termos gerais, é
um programa que paga um salário
a famílias que se comprometem a
manter os filhos na escola e cuidar
de sua saúde.
Giddens - É semelhante ao que
fazem no México. Isso foi iniciado
por [Fernando Henrique] Cardoso, não foi?
Folha - Em nível federal sim, embora o PT reclame sua paternidade
em outras esferas.
Giddens - Se é como você descreve, sou a favor. Para conseguir desenvolver áreas pobres, você tem
que mudar a estrutura tradicional
das famílias e das comunidades.
Você não pode simplesmente trazer dinheiro e colocar lá, mas mudar o cotidiano
das pessoas, e claro que a alfabetização é crucial,
assim como a posição da mulher.
Há uma correlação entre emancipação das mulheres e sucesso econômico. É um
bom começo,
aliado a outros
programas. Mas a
chave é mudar a
posição das mulheres.
Folha - O sr. concorda com os que
dizem que não há diferenças entre
as gestões de Lula e FHC?
Giddens - Eu sempre desejei, como observador externo, que Lula
continuasse e até radicalizasse as
políticas de Cardoso. E acho bom
que ele esteja continuando boa
parte dessas políticas. Mas, pelo
que entendo, ele tem tentado radicalizá-las, para dar mais atenção aos pobres, o que acho válido,
se você conseguir tornar as políticas efetivas.
Folha - Se pudesse aconselhar Lula em relação a disputar ou não a
reeleição, o que lhe diria?
Giddens - Ainda bem que eu não
tenho que aconselhá-lo [risos],
porque todas as energias estão focadas na Europa. Penso que ele
deveria continuar as políticas vigentes e agir para que acusações
de corrupção como essas não surjam de novo, porque uma segunda vez poderia ser desastrosa.
Acho que seria bom para o Brasil
que ele continuasse.
Folha - Há, na América Latina, a
chamada "onda esquerdista", também dita neopopulista. Por que ali
e agora?
Giddens - Acho que [o neopopulismo] é fruto da desilusão popular com políticas econômicas que
não funcionaram. Esses países
precisam de um recomeço e de esperança. Mas não dá para recomeçar se não for adotando o tipo
de coisa de que falamos anteriormente. Não vejo nenhum período
na história da América Latina em
que populistas tenham feito bem
a algum país, o mesmo na Europa. Na Venezuela [com Hugo
Chávez], há um mix difícil entre
populismo e um Estado petrolífero. Lá há muito petróleo, e você
pode usar o dinheiro do petróleo
responsavelmente, para construir
uma sociedade mais ativa, como
se fez na Noruega e, em menor
medida, na Rússia. Mas não me
parece que é o que Chávez está fazendo. Ele está mais preocupado
com a mídia.
Mas a Venezuela não é modelo
para ninguém mais. O mundo vai
deixar o petróleo de lado, a ficha
caiu na consciência global. É no
nível da bioenergia que as novas
batalhas serão travadas, é isso que
redefinirá a geopolítica. A era dos
Estados petrolíferos não deve ir
além de 20 ou 30 anos mais.
Folha - O avanço do conservadorismo nos EUA e na Europa fez muitos dizerem que, após o boom dos
anos 90, a chamada Terceira Via
havia falhado. Agora, até conservadores, como o novo líder trabalhista britânico, David Cameron,
incorporam aquelas idéias. É a prova da vitória da tendência ou, como
dizem alguns críticos, a melhor maneira de vencer uma eleição?
Giddens - Eu diria que o termo
Terceira Via é totalmente dispensável, é só um rótulo, a que muitos
atribuíram demasiada importância. O que falo é de como agir a
centro-esquerda num mundo que
se modificou radicalmente nos últimos 30 anos. As políticas keynesianas que eram a base do Estado
de Bem-Estar Social não funcionam mais, é preciso inovação.
Nesse sentido, as idéias do que se
chamou Terceira Via continuam
vivas. Governança Progressista
significa simplesmente renovar
governos de centro-esquerda que
estão alertas a essas tendências.
Folha - De que forma a Guerra do
Iraque danificou a imagem da Governança Progressista, dado que
seu maior representante, Tony
Blair [premiê britânico], por sua
aliança com George W. Bush, passou a ser associado ao conservadorismo e à conivência com práticas
como tortura e mentiras de guerra?
Giddens - Certamente a guerra
rachou a esquerda européia, e
ainda há resíduos disso, mas a
maior parte passou. A maioria,
independente do que pensa da
guerra, agora trabalha para que
surja no Iraque uma sociedade
decente. Em relação a Blair e à
guerra em si, sou profundamente
ambivalente. Porque penso que
havia várias razões para remover
Saddam Hussein. Nunca sabemos o que ocorreria sem a guerra,
então é fácil para as pessoas dizer
que tudo deu errado. Acho que
Blair imaginou que teria o apoio
da ONU, e esteve perto de alcançá-lo, mas, claro, ele não veio. Então ele teve de decidir se iria ou
não com os americanos, e acho
que ele acreditou que seria melhor para o mundo se os EUA não
fizessem tudo aquilo isolados.
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