São Paulo, segunda-feira, 05 de abril de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ENTREVISTA DA 2ª

ANTHONY PEREIRA

Estudioso diz que, diferentemente de Chile e Argentina, os processos políticos frearam a violência no Brasil

Via judicial da repressão evitou mortes, afirma brasilianista

FABIANO MAISONNAVE
DA REDAÇÃO

Classificadas muitas vezes apenas como regimes de exceção e conhecidas pela violenta repressão política, as ditaduras militares implantadas a partir de 1964 no Brasil, na Argentina e no Chile apresentaram procedimentos legais bastante distintos para justificar e avançar a perseguição contra os "inimigos do Estado".
A tese é do cientista político norte-americano Anthony Pereira, formulada a partir de uma pergunta delicada: por que, em 21 anos de regime militar no Brasil, houve cerca de 300 mortos e desaparecidos enquanto na Argentina esse número chegou a cerca de 30 mil em apenas sete anos e no Chile, a 5.000 ao longo de 17 anos?
Segundo Pereira, parte da resposta está no que chamou de "judicialização da repressão". Se no Brasil o Poder Judiciário foi um braço auxiliar da repressão ao aplicar a Lei de Segurança Nacional, argumenta ele, esses processos judiciais também garantiram que o preso político tivesse o paradeiro "rastreado" e algum espaço para exercer sua defesa, sobretudo a partir da atuação, ainda que limitada, dos advogados.
Essa forma de "judicialização" com participação de civis praticamente não existiu na violenta repressão dos primeiros anos do ditador chileno Augusto Pinochet e seus tribunais militares "de guerra". Muito menos nas milhares de execuções extrajudiciais da guerra suja na Argentina.
Para demonstrar sua tese, o brasilianista contabilizou também os processos políticos: no Brasil, foram cerca de 7.400; na Argentina, irrisórios 350.
O pesquisador atribui também as distintas situações da esquerda nos três países no momento do golpe militar: enquanto na Argentina e no Chile já havia reformas em andamento, no Brasil era apenas uma promessa. Além disso, a esquerda armada brasileira não tinha a mesma força que as dos outros dois países.
Por outro lado, afirma Pereira, enquanto na Argentina e no Chile a redemocratização provocou uma ampla reforma no Judiciário, no Brasil parte dos juízes tem conseguido bloquear as mudanças ao perpetuar a idéia de que a repressão não foi tão ruim assim.
Leia a seguir trechos da entrevista concedida à Folha:

 

Folha - O sr. argumenta que a ditadura militar brasileira, diferentemente da do Chile e da Argentina, promoveu uma "judicialização da repressão", que acabou abrandando a violência contra dissidentes. Em que medida a repressão política brasileira era diferente?
Anthony Pereira -
A forma com que o regime militar brasileiro lidou com o sistema legal e suas instituições foi mais gradualista e conservadora do que o regime Pinochet, no Chile (1973-90), e o último regime militar da Argentina (1976-83). Ou seja, as mudanças introduzidas eram uma série de passos graduais e de aperfeiçoamento, que preservaram elementos de continuidade com relação ao regime anterior. Mesmo que, já em 1969, as leis de segurança nacional fossem bastante draconianas, o regime militar brasileiro as construiu ao longo dos anos de forma a permitir que instituições-chave do establishment legal tivessem um papel limitado na sentença de "crimes" políticos. No Brasil, juízes civis serviram nas cortes militares que julgavam "crimes" políticos. Além disso, os réus tinham o direito de apelar: das cortes regionais militares para o Superior Tribunal Militar (STM) e do STM para o Supremo Tribunal civil. Nenhuma dessas condições existiu durante as ditaduras chilena e argentina, fazendo com os julgamentos políticos se transformassem em processos muito mais arrastados no Brasil.
O segundo aspecto distintivo da repressão brasileira foi seu alto grau de "judicialização". Uma grande parte das pessoas submetidas à repressão foi acusada formalmente e julgada por tribunais, em geral militares. No Chile, por outro lado, milhares de pessoas foram mortos e desapareceram durante e após o golpe de setembro de 1973. Algumas pessoas foram julgadas em tribunais militares "em tempo de guerra" organizados às pressas. A Argentina teve a repressão menos judicializada desses três regimes. Seus governantes militares autorizaram desaparecimentos em massa sem nenhum tipo de formalidade legal. Houve apenas algumas centenas de julgamentos políticos no período, e a maioria desses casos era de pessoas detidas antes do golpe de março de 1976.

Folha - É um aspecto positivo do regime militar brasileiro?
Pereira -
O gradualismo e a judicialização da repressão brasileira tiveram um lado positivo, pois dava tempo aos advogados de defesa e espaço institucional para defender a vida e os direitos de seus clientes. Por outro lado, também "normalizou" a repressão e dividiu a responsabilidade com ela de uma forma bastante prejudicial à perspectiva de uma reforma judiciária democrática após o fim do regime militar. Na repressão brasileira, os promotores do Ministério Publico acusavam pessoas por crimes de segurança nacional, juízes civis nas cortes militares julgavam os crimes, e a Suprema Corte revisava (e freqüentemente mantinha) as sentenças. Para setores importantes da elite judiciária civil, isso motivou a defesa do regime militar e incentivou o bloqueio de reformas depois da volta do regime civil. Eles perpetuaram a visão de que a repressão do regime militar não havia sido "tão ruim assim".
Quando pesquisei sobre o tema nos três países, apenas no Brasil encontrei inúmeros artigos em jornais especializados da Justiça Militar publicados nos anos 90 elogiando as sentenças de julgamentos políticos. Encontrei cópias de "O Direito de Segurança Nacional" à venda numa livraria do Exército em 1996!
Na Argentina e no Chile, em contraste, a transição democrática trouxe fortes pressões para a reforma do Judiciário. Na Argentina, o governo Raul Alfonsín (1984-89) expurgou a Suprema Corte e implantou outras reformas importantes, como a proibição incondicional de civis serem processados num tribunal militar. No Chile, os governos civis desde 1990 implantaram uma das reformas judiciárias mais abrangentes da América Latina. No Brasil, nada disso ocorreu, e o país paga hoje o preço dessa omissão.

Folha - Por que, ao contrário da Argentina e do Chile, o regime militar permitiu um funcionamento mais normalizado do Judiciário?
Pereira -
Há diversos fatores relevantes. Em primeiro lugar, o regime militar brasileiro tinha uma trajetória diferente dos outros -foi liderado inicialmente por uma corrente relativamente moderada. O regime apenas endureceu com o tempo, enquanto os regimes chileno e argentino começaram bastante severos. Isso significa que o regime militar brasileiro tendeu a adaptar as instituições existentes para o seu governo, por exemplo, estendendo a jurisdição das corte militares para os civis em 1965, com o AI-2. Isso ocorreu na esfera eleitoral também -o regime militar brasileiro continuou realizando eleições, ainda que controladas, e deixou o Congresso funcionar durante a maior parte do tempo.
Em segundo lugar, o nível de mobilização popular no Brasil não alcançou os níveis do governo Unidade Popular chileno ou o governo peronista argentino. Os golpes nesses países eram, de certa forma, golpes de "recuo", que buscavam desfazer reformas iniciadas por governos populares. O golpe de 1964 no Brasil era mais preventivo, desenhado para impedir que o governo João Goulart implantasse suas "reformas de base", que obviamente ainda não haviam sido introduzidas.
Além disso, a esquerda armada no Brasil nunca foi muito forte, certamente não tanto quanto a Argentina. Por essa razão, o regime militar nunca percebeu a ameaça de seus interesses nos termos cataclísmicos articulados pelo governantes militares argentinos, por exemplo.

Folha - O sr. defende que essa "judicialização" fez com que houvesse menos mortes de perseguidos políticos no Brasil, mas ressalva que não evitou a tortura. Como corria um processo típico da época?
Pereira -
A judicialização provavelmente contribuiu para o número de mortos relativamente baixo sob o regime militar brasileiro. Creio que não tenha sido pela boa vontade dos líderes do regime militar, mas devido às ações dos advogados de defesa. Quando os prisioneiros políticos eram formalmente acusados de crimes e eram registrados nas cortes militares, eles poderiam ser representados pelos poucos advogados dispostos a aceitar casos políticos naquela época. Esses advogados faziam o chamado "primeiro socorro jurídico", notificando grupos de direitos humanos sobre a detenção de seus clientes e fazendo com que as autoridades soubessem que o mundo tinha conhecimento sobre quem estava detido. Esse monitoramento foi eficiente em impedir o pior -a execução sumária dos detidos. Mas apenas funcionava depois de o prisioneiro ter sido acusado formalmente de um crime -antes disso, quando o preso era inicialmente detido pela Oban (Operação Bandeirante) ou, depois, pelo DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna), sua vida estava em risco.
Um exemplo é a prisão do então estudante de sociologia Vinícius Caldeira Brandt, capturado em São Paulo, em 1970. Caldeira Brandt foi levado ao DOI e torturado brutalmente por várias horas. Mais tarde, foi acusado de vários crimes de segurança nacional. Ele foi julgado num tribunal militar, em São Paulo. Seu advogado, Idebal Piveta, recorreu ao STM. Um ano mais tarde, o STM manteve a condenação, mas reduziu a sentença para três anos. Piveta recorreu de novo, agora para o Supremo Tribunal Federal, que manteve a decisão do STM. Caldeira Brandt cumpriu três anos de prisão e se tornou professor em Minas Gerais.
As cortes militares nos primeiros seis anos da ditadura Pinochet, em contraste, duravam no máximo alguns dias; na Argentina pouquíssimas pessoas foram julgadas.
Isso não quer dizer que foram julgamentos de forma alguma que estavam próximos do ideal de um Estado de Direito. Longe disso -as cortes rotineiramente condenavam as pessoas baseadas em evidências obtidas sob tortura.

Folha - No seu plano análise, como fica a guerrilha do Araguaia (1972)?
Pereira -
Embora houvesse um grande consenso e cooperação entre as elites do Judiciário e militares sobre a necessidade de "judicializar" a repressão no Brasil, esse consenso e cooperação foram abandonados em certos tempos e lugares. O Araguaia foi um desses momentos. Elio Gaspari fez uma análise importante no seu livro "As Ilusões Armadas: A Ditadura Escancarada". O que seu relato mostra é que, ao ir à remota região do Araguaia com 20 mil homens, o Exército criou uma zona de autonomia para si mesmo. Os comandantes do Exército sentiram que podiam arbitrariamente "desaparecer" quem eles desejassem, sem recorrer ao Judiciário, e foi o que eles fizeram. Eles se portaram de forma semelhante aos militares argentinos no país inteiro de 1976 a 1983. No Brasil, a repressão no Araguaia ocorreu apesar do fato de, no resto do país, a maior da repressão continuar "judicializada". O Araguaia não foi o único momento de repressão extrajudicial, mas foi o responsável por uma grande proporção dos desaparecidos sob o regime.


Texto Anterior: Imagem oficial: Lula gastou menos que FHC em publicidade
Próximo Texto: Perfil: Livro sobre ditaduras sai no ano que vem
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.