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ENTREVISTA DA 2ª
ANTHONY PEREIRA
Estudioso diz que, diferentemente de Chile e Argentina, os processos políticos frearam a violência no Brasil
Via judicial da repressão evitou mortes, afirma brasilianista
FABIANO MAISONNAVE
DA REDAÇÃO
Classificadas muitas vezes apenas como regimes de exceção e
conhecidas pela violenta repressão política, as ditaduras militares
implantadas a partir de 1964 no
Brasil, na Argentina e no Chile
apresentaram procedimentos legais bastante distintos para justificar e avançar a perseguição contra
os "inimigos do Estado".
A tese é do cientista político
norte-americano Anthony Pereira, formulada a partir de uma pergunta delicada: por que, em 21
anos de regime militar no Brasil,
houve cerca de 300 mortos e desaparecidos enquanto na Argentina
esse número chegou a cerca de 30
mil em apenas sete anos e no Chile, a 5.000 ao longo de 17 anos?
Segundo Pereira, parte da resposta está no que chamou de "judicialização da repressão". Se no
Brasil o Poder Judiciário foi um
braço auxiliar da repressão ao
aplicar a Lei de Segurança Nacional, argumenta ele, esses processos judiciais também garantiram
que o preso político tivesse o paradeiro "rastreado" e algum espaço para exercer sua defesa, sobretudo a partir da atuação, ainda
que limitada, dos advogados.
Essa forma de "judicialização"
com participação de civis praticamente não existiu na violenta repressão dos primeiros anos do ditador chileno Augusto Pinochet e
seus tribunais militares "de guerra". Muito menos nas milhares de
execuções extrajudiciais da guerra suja na Argentina.
Para demonstrar sua tese, o brasilianista contabilizou também os
processos políticos: no Brasil, foram cerca de 7.400; na Argentina,
irrisórios 350.
O pesquisador atribui também
as distintas situações da esquerda
nos três países no momento do
golpe militar: enquanto na Argentina e no Chile já havia reformas
em andamento, no Brasil era apenas uma promessa. Além disso, a
esquerda armada brasileira não
tinha a mesma força que as dos
outros dois países.
Por outro lado, afirma Pereira,
enquanto na Argentina e no Chile
a redemocratização provocou
uma ampla reforma no Judiciário,
no Brasil parte dos juízes tem conseguido bloquear as mudanças ao
perpetuar a idéia de que a repressão não foi tão ruim assim.
Leia a seguir trechos da entrevista concedida à Folha:
Folha - O sr. argumenta que a ditadura militar brasileira, diferentemente da do Chile e da Argentina, promoveu uma "judicialização
da repressão", que acabou abrandando a violência contra dissidentes. Em que medida a repressão política brasileira era diferente?
Anthony Pereira - A forma com
que o regime militar brasileiro lidou com o sistema legal e suas
instituições foi mais gradualista e
conservadora do que o regime Pinochet, no Chile (1973-90), e o último regime militar da Argentina
(1976-83). Ou seja, as mudanças
introduzidas eram uma série de
passos graduais e de aperfeiçoamento, que preservaram elementos de continuidade com relação
ao regime anterior. Mesmo que, já
em 1969, as leis de segurança nacional fossem bastante draconianas, o regime militar brasileiro as
construiu ao longo dos anos de
forma a permitir que instituições-chave do establishment legal tivessem um papel limitado na sentença de "crimes" políticos. No
Brasil, juízes civis serviram nas
cortes militares que julgavam
"crimes" políticos. Além disso, os
réus tinham o direito de apelar:
das cortes regionais militares para
o Superior Tribunal Militar
(STM) e do STM para o Supremo
Tribunal civil. Nenhuma dessas
condições existiu durante as ditaduras chilena e argentina, fazendo
com os julgamentos políticos se
transformassem em processos
muito mais arrastados no Brasil.
O segundo aspecto distintivo da
repressão brasileira foi seu alto
grau de "judicialização". Uma
grande parte das pessoas submetidas à repressão foi acusada formalmente e julgada por tribunais,
em geral militares. No Chile, por
outro lado, milhares de pessoas
foram mortos e desapareceram
durante e após o golpe de setembro de 1973. Algumas pessoas foram julgadas em tribunais militares "em tempo de guerra" organizados às pressas. A Argentina teve
a repressão menos judicializada
desses três regimes. Seus governantes militares autorizaram desaparecimentos em massa sem
nenhum tipo de formalidade legal. Houve apenas algumas centenas de julgamentos políticos no
período, e a maioria desses casos
era de pessoas detidas antes do
golpe de março de 1976.
Folha - É um aspecto positivo do
regime militar brasileiro?
Pereira - O gradualismo e a judicialização da repressão brasileira
tiveram um lado positivo, pois
dava tempo aos advogados de defesa e espaço institucional para
defender a vida e os direitos de
seus clientes. Por outro lado, também "normalizou" a repressão e
dividiu a responsabilidade com
ela de uma forma bastante prejudicial à perspectiva de uma reforma judiciária democrática após o
fim do regime militar. Na repressão brasileira, os promotores do
Ministério Publico acusavam pessoas por crimes de segurança nacional, juízes civis nas cortes militares julgavam os crimes, e a Suprema Corte revisava (e freqüentemente mantinha) as sentenças.
Para setores importantes da elite
judiciária civil, isso motivou a defesa do regime militar e incentivou o bloqueio de reformas depois da volta do regime civil. Eles
perpetuaram a visão de que a repressão do regime militar não havia sido "tão ruim assim".
Quando pesquisei sobre o tema
nos três países, apenas no Brasil
encontrei inúmeros artigos em
jornais especializados da Justiça
Militar publicados nos anos 90
elogiando as sentenças de julgamentos políticos. Encontrei cópias de "O Direito de Segurança
Nacional" à venda numa livraria
do Exército em 1996!
Na Argentina e no Chile, em
contraste, a transição democrática trouxe fortes pressões para a
reforma do Judiciário. Na Argentina, o governo Raul Alfonsín
(1984-89) expurgou a Suprema
Corte e implantou outras reformas importantes, como a proibição incondicional de civis serem
processados num tribunal militar. No Chile, os governos civis
desde 1990 implantaram uma das
reformas judiciárias mais abrangentes da América Latina. No
Brasil, nada disso ocorreu, e o país
paga hoje o preço dessa omissão.
Folha - Por que, ao contrário da
Argentina e do Chile, o regime militar permitiu um funcionamento
mais normalizado do Judiciário?
Pereira - Há diversos fatores relevantes. Em primeiro lugar, o regime militar brasileiro tinha uma
trajetória diferente dos outros
-foi liderado inicialmente por
uma corrente relativamente moderada. O regime apenas endureceu com o tempo, enquanto os regimes chileno e argentino começaram bastante severos. Isso significa que o regime
militar brasileiro
tendeu a adaptar as
instituições existentes para o seu
governo, por exemplo, estendendo a
jurisdição das corte
militares para os civis em 1965, com o
AI-2. Isso ocorreu
na esfera eleitoral
também -o regime militar brasileiro continuou realizando eleições, ainda que controladas,
e deixou o Congresso funcionar durante a maior parte
do tempo.
Em segundo lugar, o nível de mobilização popular
no Brasil não alcançou os níveis do governo Unidade Popular chileno ou o
governo peronista
argentino. Os golpes nesses países eram, de certa
forma, golpes de "recuo", que
buscavam desfazer reformas iniciadas por governos populares. O
golpe de 1964 no Brasil era mais
preventivo, desenhado para impedir que o governo João Goulart
implantasse suas "reformas de
base", que obviamente ainda não
haviam sido introduzidas.
Além disso, a esquerda armada
no Brasil nunca foi muito forte,
certamente não tanto quanto a
Argentina. Por essa razão, o regime militar nunca percebeu a
ameaça de seus interesses nos termos cataclísmicos articulados pelo governantes militares argentinos, por exemplo.
Folha - O sr. defende que essa "judicialização" fez com que houvesse
menos mortes de perseguidos políticos no Brasil, mas ressalva que
não evitou a tortura. Como corria
um processo típico da época?
Pereira - A judicialização provavelmente contribuiu para o número de mortos relativamente
baixo sob o regime militar brasileiro. Creio que não tenha sido pela boa vontade dos líderes do regime militar, mas devido às ações
dos advogados de defesa. Quando
os prisioneiros políticos eram formalmente acusados de crimes e
eram registrados nas cortes militares, eles poderiam ser representados pelos poucos advogados
dispostos a aceitar casos políticos
naquela época. Esses advogados
faziam o chamado "primeiro socorro jurídico", notificando grupos de direitos humanos sobre a
detenção de seus clientes e fazendo com que as autoridades soubessem que o mundo tinha conhecimento sobre quem estava
detido. Esse monitoramento foi
eficiente em impedir o pior -a
execução sumária dos detidos.
Mas apenas funcionava depois de
o prisioneiro ter sido acusado formalmente de um crime -antes
disso, quando o preso era inicialmente detido pela Oban (Operação Bandeirante) ou, depois, pelo
DOI-Codi (Destacamento de
Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna), sua vida estava em risco.
Um exemplo é a prisão do então
estudante de sociologia Vinícius
Caldeira Brandt, capturado em
São Paulo, em 1970. Caldeira
Brandt foi levado ao DOI e torturado brutalmente por várias horas. Mais tarde, foi acusado de vários crimes de segurança nacional. Ele foi julgado num tribunal
militar, em São Paulo. Seu advogado, Idebal Piveta, recorreu ao
STM. Um ano mais tarde, o STM
manteve a condenação, mas reduziu a sentença para três anos.
Piveta recorreu de novo, agora
para o Supremo Tribunal Federal,
que manteve a decisão do STM.
Caldeira Brandt cumpriu três
anos de prisão e se tornou professor em Minas Gerais.
As cortes militares nos primeiros seis anos da ditadura Pinochet, em contraste, duravam no
máximo alguns dias; na Argentina pouquíssimas
pessoas foram julgadas.
Isso não quer dizer que foram julgamentos de forma alguma que estavam
próximos do ideal
de um Estado de
Direito. Longe disso
-as cortes rotineiramente condenavam as pessoas baseadas em evidências obtidas sob tortura.
Folha - No seu plano análise, como fica
a guerrilha do Araguaia (1972)?
Pereira - Embora
houvesse um grande consenso e cooperação entre as elites do Judiciário e
militares sobre a necessidade de "judicializar" a repressão
no Brasil, esse consenso e cooperação
foram abandonados em certos
tempos e lugares. O Araguaia foi
um desses momentos. Elio Gaspari fez uma análise importante
no seu livro "As Ilusões Armadas:
A Ditadura Escancarada". O que
seu relato mostra é que, ao ir à remota região do Araguaia com 20
mil homens, o Exército criou uma
zona de autonomia para si mesmo. Os comandantes do Exército
sentiram que podiam arbitrariamente "desaparecer" quem eles
desejassem, sem recorrer ao Judiciário, e foi o que eles fizeram. Eles
se portaram de forma semelhante
aos militares argentinos no país
inteiro de 1976 a 1983. No Brasil, a
repressão no Araguaia ocorreu
apesar do fato de, no resto do país,
a maior da repressão continuar
"judicializada". O Araguaia não
foi o único momento de repressão
extrajudicial, mas foi o responsável por uma grande proporção
dos desaparecidos sob o regime.
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