São Paulo, domingo, 05 de agosto de 2001

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NO PLANALTO

Tucanato nega ao Brasil o direito de conhecer um naco de sua história

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Se Fernando Henrique tivesse tomado posse, a guerrilha do Araguaia talvez já repousasse sobre uma página da história. Como um outro Cardoso se apossou da faixa presidencial, esse naco do passado continua trancado num cofre do Exército.
Se Fernando Henrique fosse o presidente, as família dos guerrilheiros talvez já dispusessem de suas porções de ossos e de uma lápide para depositar flores sobre os seus mortos. Como o outro Cardoso ocupou o Planalto, o Exército gasta dinheiro público numa operação para monitorar seus ex-colaboradores no Araguaia.
Intimidando-os, impede que ajudem a localizar os esqueletos que intoxicam a historiografia nacional. Morreram, como se sabe, cerca de 60 guerrilheiros. A maioria executada.
Se Fernando Henrique estivesse dando as cartas, o Exército teria parado de fazer de conta que não houve guerrilha. Mas como o jogo é comandado por outro Cardoso, a sociedade é forçada a digerir a única versão disponível, a do PC do B, dono do monopólio do legado histórico.
O Ministério Público grava, há um mês, depoimentos de brasileiros que guardam na memória fragmentos do que houve. São palavras que ajudam a explicar o silêncio Exército.
O lavrador José Moraes Silva, portador da carteira de identidade 385 1074 (SSP-PPA), contou que seu pai, Francisco Barros da Silva, "ficou louco" em função do sofrimento que o Exército lhe impôs: "espancamento, fome, choques na cabeça e na boca". Foi "dependurado pelos testículos".
Margarida Ferreira Félix, moradora do número 30 da Travessa Brasispanha, em São Domingos do Araguaia (PA), disse ter presenciado a seguinte cena: o lavrador Pedro Carretel foi levado por soldados à presença da mulher dele, Joana. Pedro estava "travestido de mulher".
Tinha "as unhas dos pés e das mãos pintadas, batom nos lábios, sobrancelhas pintadas, sombra nos olhos, cabeça raspada e um círculo de esmalte vermelho na parte superior da cabeça". Pedro jamais foi visto depois desse encontro.
Maria Nazaré Ferreira Brito, identidade 288 2189 (SSP-PA), disse ter sido detida pelo Exército. Grávida de oito meses, levava outro filho, Mauro, no colo. Foi "obrigada a passar a noite sentada, tendo à sua frente uma cobra jibóia". Seu marido, Benedito Ferreira Fernandes Alves, foi levado de casa em 1973. Jamais voltou a vê-lo.
José Rufino Pinheiro, identidade 25 356 (SSP-PA), foi detido pelo Exército em Buriti (GO) e levado, "junto com mais 18" prisioneiros, para um quartel em Araguaína. Aplicaram-lhe "golpes de cassetete no estômago, no pescoço e na cabeça". Chamaram-no de "terrorista".
José disse que se viu forçado a servir como "guia" do Exército na mata. Testemunhou a morte de vários guerrilheiros. Um deles, Osvaldão, "foi alvejado de costas, comendo macaxeira, sentado num tronco".
Sinésio Martins Ribeiro, identidade 55 300 (SSP-PA), ficou "preso num curral de arame farpado". Também virou "guia". Presenciou a morte de um sujeito que identificou como Ari. Ele não esboçou reação. Morto, teve "a cabeça cortada e levada para a base do Exército em Xambioá".
À cata dos depoimentos, os procuradores flagraram movimentos de agentes do Exército na região. Munido de autorização judicial, pescaram um lote de papéis num ninho de espionagem militar.
Se Fernando Henrique não estivesse sumido, desperdiçaria um naco de tempo com os efeitos da ação dos procuradores. O outro Cardoso, porém, silencia. E permite que o Exército se perca em movimentos heterodoxos.
Na última quarta-feira, o general Rui Monarca da Silveira, comandante da 23ª Brigada de Infantaria de Selva, enviou ofício ao juiz Jeferson Schneider, que autorizara a apreensão dos documentos do Exército.
O general anotou: "(...) não é admissível, no atual Estado Democrático de Direito, que uma instituição, constituída e respeitada pelo povo brasileiro, tenha uma de suas organizações militares invadida (...), sob o manto protetor de um mandado de intimação mal interpretado".
Se o monarca fosse Fernando Henrique, o general Monarca estaria redigindo outro tipo de texto. Talvez um ofício em que explicasse por que mantinha sob sua guarda um documento em que se admite "arranhar direitos individuais".
É pena que o outro Cardoso perca a oportunidade de desatar o nó que sonega à sociedade brasileira o sacrossanto direito de conhecer a própria história. Feia ou bonita, foi a história que conseguimos produzir.



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