|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
NO PLANALTO
Tucanato nega ao Brasil o direito de conhecer um naco de sua história
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Se Fernando Henrique tivesse tomado posse, a guerrilha do Araguaia talvez já repousasse sobre uma página da história. Como um outro Cardoso se
apossou da faixa presidencial, esse naco do passado continua
trancado num cofre do Exército.
Se Fernando Henrique fosse o
presidente, as família dos guerrilheiros talvez já dispusessem de
suas porções de ossos e de uma lápide para depositar flores sobre os
seus mortos. Como o outro Cardoso ocupou o Planalto, o Exército gasta dinheiro público numa
operação para monitorar seus ex-colaboradores no Araguaia.
Intimidando-os, impede que
ajudem a localizar os esqueletos
que intoxicam a historiografia
nacional. Morreram, como se sabe, cerca de 60 guerrilheiros. A
maioria executada.
Se Fernando Henrique estivesse
dando as cartas, o Exército teria
parado de fazer de conta que não
houve guerrilha. Mas como o jogo
é comandado por outro Cardoso,
a sociedade é forçada a digerir a
única versão disponível, a do PC
do B, dono do monopólio do legado histórico.
O Ministério Público grava, há
um mês, depoimentos de brasileiros que guardam na memória
fragmentos do que houve. São palavras que ajudam a explicar o silêncio Exército.
O lavrador José Moraes Silva,
portador da carteira de identidade 385 1074 (SSP-PPA), contou
que seu pai, Francisco Barros da
Silva, "ficou louco" em função do
sofrimento que o Exército lhe impôs: "espancamento, fome, choques na cabeça e na boca". Foi
"dependurado pelos testículos".
Margarida Ferreira Félix, moradora do número 30 da Travessa
Brasispanha, em São Domingos
do Araguaia (PA), disse ter presenciado a seguinte cena: o lavrador Pedro Carretel foi levado por
soldados à presença da mulher
dele, Joana. Pedro estava "travestido de mulher".
Tinha "as unhas dos pés e das
mãos pintadas, batom nos lábios,
sobrancelhas pintadas, sombra
nos olhos, cabeça raspada e um
círculo de esmalte vermelho na
parte superior da cabeça". Pedro
jamais foi visto depois desse encontro.
Maria Nazaré Ferreira Brito,
identidade 288 2189 (SSP-PA),
disse ter sido detida pelo Exército.
Grávida de oito meses, levava outro filho, Mauro, no colo. Foi
"obrigada a passar a noite sentada, tendo à sua frente uma cobra
jibóia". Seu marido, Benedito
Ferreira Fernandes Alves, foi levado de casa em 1973. Jamais voltou a vê-lo.
José Rufino Pinheiro, identidade 25 356 (SSP-PA), foi detido pelo Exército em Buriti (GO) e levado, "junto com mais 18" prisioneiros, para um quartel em Araguaína. Aplicaram-lhe "golpes de cassetete no estômago, no pescoço e
na cabeça". Chamaram-no de
"terrorista".
José disse que se viu forçado a
servir como "guia" do Exército na
mata. Testemunhou a morte de
vários guerrilheiros. Um deles,
Osvaldão, "foi alvejado de costas,
comendo macaxeira, sentado
num tronco".
Sinésio Martins Ribeiro, identidade 55 300 (SSP-PA), ficou "preso num curral de arame farpado".
Também virou "guia". Presenciou a morte de um sujeito que
identificou como Ari. Ele não esboçou reação. Morto, teve "a cabeça cortada e levada para a base
do Exército em Xambioá".
À cata dos depoimentos, os procuradores flagraram movimentos
de agentes do Exército na região.
Munido de autorização judicial,
pescaram um lote de papéis num
ninho de espionagem militar.
Se Fernando Henrique não estivesse sumido, desperdiçaria um
naco de tempo com os efeitos da
ação dos procuradores. O outro
Cardoso, porém, silencia. E permite que o Exército se perca em
movimentos heterodoxos.
Na última quarta-feira, o general Rui Monarca da Silveira, comandante da 23ª Brigada de Infantaria de Selva, enviou ofício ao
juiz Jeferson Schneider, que autorizara a apreensão dos documentos do Exército.
O general anotou: "(...) não é
admissível, no atual Estado Democrático de Direito, que uma
instituição, constituída e respeitada pelo povo brasileiro, tenha
uma de suas organizações militares invadida (...), sob o manto
protetor de um mandado de intimação mal interpretado".
Se o monarca fosse Fernando
Henrique, o general Monarca estaria redigindo outro tipo de texto. Talvez um ofício em que explicasse por que mantinha sob sua
guarda um documento em que se
admite "arranhar direitos individuais".
É pena que o outro Cardoso perca a oportunidade de desatar o nó
que sonega à sociedade brasileira
o sacrossanto direito de conhecer
a própria história. Feia ou bonita,
foi a história que conseguimos
produzir.
Texto Anterior: Manual ensina a seduzir informantes Próximo Texto: Paraná: Escavações não encontram ossadas de guerrilheiros Índice
|