São Paulo, domingo, 05 de agosto de 2001

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ELIO GASPARI

O Rolls-Royce acabou no Acari

Poucas vezes a vocação colonial do andar de cima de Pindorama produziu uma cena tão típica quanto a de FFHH e o primeiro-ministro britânico Tony Blair contemplando um carro velho no gramado do Alvorada. Era o Rolls-Royce, modelo 1952, presenteado pela rainha Elisabeth a Getúlio Vargas e recentemente restaurado pela empresa. Como escreveu o ex-presidente José Sarney: "Salamaleque colonial".
FFHH preside um país onde está instalado um dos maiores parques automobilísticos do mundo. Mesmo assim, preservou o culto ao velho Rolls-Royce e quando tomou posse usou-o para passear pela Esplanada dos Ministérios. Se o presidente Bush fizer coisa parecida, com 150 mil carros nos pátios das montadoras, é deposto.
O repórter Jesuan Xavier descobriu o responsável pela importação do carro, em 1953. Ele se chama Gastão Correia da Veiga Filho. Revelou que o RR foi comprado por 7.339 libras. Presente foi o conjunto de colar, brincos e tiara de águas-marinhas que a rainha Elisabeth recebeu no ano seguinte, quando foi coroada.
Os presidentes brasileiros que gostam de velharias deveriam circular nas carruagens deixadas por d. Pedro 2º. Já que o Rolls-Royce está novo, bem que poderia ser mandado ao Museu Histórico, como símbolo de uma época em que o Brasil não fabricava automóveis. (As montadoras americanas achavam que a mão-de-obra nordestina não seria capaz de fazê-lo.)
A história, essa malvada, fez com que no mesmo dia da figuração inglesa do Alvorada, no Rio, mil moradores da favela do Acari e da redondeza estivessem a saquear sobras de comida estragada nos restos de um incêndio de um pavilhão da Ceasa. Essa era a cena brasileira.
Em 1952, quando Getúlio Vargas comprou o Rolls-Royce do Alvorada, o Brasil não tinha indústria automobilística, mas tinha um sonho industrial. Acabara-se de inaugurar a avenida Brasil e, na região do Acari, terminara-se a construção de uma vila operária. Era uma área de sítios, quase rural. Tinha até jacarés. Hoje é uma das favelas mais estigmatizadas do Rio de Janeiro.
Para felicidade geral, o professor Marcos Alvito, da Universidade Federal Fluminense, acaba de publicar o livro "As Cores de Acari - Uma Favela Carioca". Lê-lo é uma comovente e instrutiva viagem pelo Brasil dos sem-Rolls. Alvito era professor de história antiga e pesquisava a vida das mulheres de Atenas e Esparta quando resolveu se meter na vida do povo brasileiro. Tem 40 anos e estuda a favela há três.
Desde os anos 90, quando a professora Alba Zaluar produziu seu clássico estudo sobre a Cidade de Deus ("A máquina e a Revolta") ninguém mergulhou tão fundo numa comunidade do andar de baixo.
O livro tem a virtude de desmontar mitos, o que, nessa matéria, não é coisa difícil. Mostra que o Complexo do Acari é, na verdade, um conjunto de três favelas e um conjunto residencial (o parque construído por Vargas). A palavra "complexo" foi inventada no mundo das cadeias. O Complexo Frei Caneca, por exemplo, agrupa duas penitenciárias e um hospital-cárcere.
A idéia de um "complexo" onde vive gente perigosa foi uma coisa que se formou fora da favela, e Alvito compara esse processo ao surgimento de um sentimento nacionalista em Timor Leste. Timor não tinha identidade étnica, linguística ou cultural. Os militares indonésios inventaram que tinha, reprimiram seus nativos e criaram algo mais que um país, um nacionalismo. O livro do professor é um mosaico no qual monta e explica um mundo onde se misturam trabalho, estigma, tráfico, violência, polícia, honra, religião e política.
O tucanato com-Rolls do gramado do Alvorada é personagem do Acari. Em 1996, a favela foi invadida pela polícia, que devolveu ao povo a liberdade de andar nas ruas. O grosso do tráfico migrou, sem perda dos faturamentos adquiridos.
No rastro dos policiais, vieram os tucanos, prometendo "novas cores para o Acari".
Prometeram programas de saúde. Hoje, o único posto que opera no pedaço funciona na casa construída com essa finalidade pelo traficante Tonicão, nos anos 80, e reformado por seu sucessor, Jorge Luís.
Prometeram uma sala de leitura. Nem pensar.
Prometeram cursos de capacitação profissional. Houve um, rápido, e acabou depois que os agentes comunitários ficaram sem receber.
Prometeram creches. As que existem são mantidas por moradores e por uma ONG alemã.
Prometeram uma rádio comunitária. Ninguém viu.
FFHH disse que seu governo significava "o fim da Era Vargas". Ficou com o Rolls-Royce e talvez, até a semana passada, quando a favela queimou seu filme inglês, fosse capaz de acreditar que o Acari é um coco da Amazônia.

Sinais de fumaça

Um sábio capaz de ler o futuro da política nas nuvens saiu de uma conversa com FFHH convencido de que seu candidato à Presidência chama-se José Serra.
O sábio não ouviu isso. Ouviu que os ministros Pedro Malan e Paulo Renato Souza nunca disputaram uma eleição e que o governador Tasso Jereissati teria dificuldade para entrar no eleitorado do Sul.

Memória seletiva

A quem interessar possa: depois da bem-sucedida restauração do palacete de Madame Laurinda Santos Lobo, em Santa Teresa, no Rio, continua caindo aos pedaços a igreja de São José do Queimado, nas cercanias de Vitória. Foi tombada em 1996. Pouco depois, perdeu a fachada e dela hoje só restam duas paredes laterais, amarradas por um cabo de aço.
Dona Laurinda foi uma das locomotivas da sociedade do Rio nas primeiras décadas do século passado, e a recuperação de sua casa enriqueceu o patrimônio cultural carioca.
A igreja de São José do Queimado foi o centro de uma rebelião de escravos ocorrida no povoado em 1849. Duzentos negros haviam trabalhado na construção do templo, acreditando que depois de sua inauguração seriam alforriados. Veio a festa e nada. Rebelados, meteram-se no mato. Foram presos 36. Trinta foram condenados a penas de até mil açoites. Seis deveriam ser enforcados. Três fugiram (segundo a lenda, porque Nossa Senhora da Penha protegia um deles). Nunca mais foram vistos.
Dois foram para a forca.

Projeções furadas

Todas as pessoas metidas com projeções econômicas deveriam ser convidadas a alguns momentos de exercício da humildade. Conhecem-se as projeções feitas nos primeiros dias do racionamento. Diferiam apenas no tamanho do desastre. Agora saíram os números do emprego durante o mês de junho. Foi o segundo melhor resultado desse mês desde 1992, com 142 mil novos postos de trabalho.
No Nordeste, onde há seca e racionamento, o emprego cresceu 0,47% (15 mil novos postos de trabalho).
No Sul, onde abundam chuvas e energia, o emprego teve o pior desempenho, crescendo só 0,20% (8.000 postos de trabalho).
Pode-se dizer que isso se deve à crise argentina, mas a vida dos brasileiros só melhorará quando houver um crescimento da percentagem de sábios capazes de dizer uma coisa muito simples: "Não sei".

Itamar é neutro

A cabeça do PSDB está começando a achar que a eleição de Itamar Franco para a presidência do PMDB é irrelevante para seus projetos.
Com ou sem Itamar, o partido racha. Se ele for derrotado, o Planalto será acusado de ter comprado votos. Isso não decorrerá do fato de que queira comprá-los, mas da certeza de que há quem os queira vender.

Padilha vai em frente com o ProFerro

O ministro dos Transportes, Eliseu Padilha, continua montando o ProFerro. Trata-se de um programa destinado a botar financiamentos públicos nas ferrovias privatizadas. É o início de um lento processo de reestatização das empresas que se deram mal no negócio.
O ministro propôs ao Conselho Nacional de Desestatização que o governo colabore na recuperação das malhas privatizadas e que invista R$ 400 milhões na ferrovia Transnordestina. Pediu também a revisão das penalidades previstas nos contratos, irracionalmente limitadas a advertências e à caducidade dos negócios.
Como aconteceu em toda a privataria, a parolagem oficial assegurava que as empresas da Viúva seriam vendidas a empreendedores audaciosos. Eles pagariam pelo patrimônio (R$ 939 milhões), buscariam financiamentos externos, investiriam no descalabro estatal e produziriam os rios de mel do doutor Pedro Malan.
O doutor Padilha argumenta que a Viúva deve botar dinheiro no negócio porque, em 2029, essas ferrovias retornarão ao patrimônio público. É exatamente o contrário do que se contou à patuléia.
As ferrovias privatizadas estão com cinco pedidos de financiamento junto ao BNDES. Já foram aprovados R$ 817 milhões e desembolsados R$ 347 milhões. Trata-se de uma anomalia, pois o dinheiro deveria vir do chamado mundo globalizado. Ainda assim, não é socorro. Em tese, o BNDES receberá esse dinheiro de volta. Além disso, há ferrovias privatizadas que estão funcionando direito.
O grupo internacional que comprou a Novoeste pôs para fora 400 dos 1.750 funcionários e vendeu o ponto. Desde maio passado, a Novoeste sustenta na Justiça que o contrato assinado tornou-se iníquo, pois a desregulamentação ocorrida no setor de combustíveis prejudicou o seu movimento de carga. De duas uma: ou ela tem razão, e, nesse caso, o contrato era inepto, ou a razão lhe falta e não quer pagar o que deve.
Antes de privatizar a Malha Nordeste, o governo investiu US$ 60 milhões no negócio para poder vendê-la. Iludiu a choldra. A Malha Nordeste deveria ter sido passada adiante de graça ou, quem sabe, pagando algum para quem a quisesse. Privatizada, a empresa pediu R$ 62 milhões ao BNDES, e o projeto já foi aprovado.
Como bom quadro do PMDB, Padilha pode escolher entre duas bandas. Numa, conta o que aconteceu com a privatização ferroviária durante a privataria. Na outra, vai em frente com o ProFerro.

Entrevista Roberto Brant

(59 anos, ministro da Previdência)
Por que as escolas ditas filantrópicas não querem cumprir a lei que as obriga a dar em bolsas de estudo aquilo que deixam de pagar à Previdência?
Porque, em graus variáveis, elas tiravam proveito de uma situação ambígua. Deixavam de pagar R$ 490 milhões em contribuições previdenciárias, mas a lei dizia que a isenção desse pagamento devia ser compensada com "gastos em gratuidade". Como esse conceito é vago, incluíam nele coisas como o atendimento em laboratórios de odontologia ou mesmo atividades puramente assistenciais. Havia escolas que davam bolsas equivalentes a 10% da anuidade. Isso não é bolsa, é desconto de marketing. Agora a lei determina que a isenção de pagamento à Previdência seja compensada com a concessão de bolsas de estudos para jovens carentes. Elas devem corresponder, no mínimo, a 50% do valor da anuidade. Mais que isso: essas bolsas deverão ser concedidas por meio de critérios conhecidos, com resultados transparentes.

Quais critérios?
Primeiro vamos falar dos não-critérios que existem. Há escolas que dão bolsas para filhos de professores, de funcionários e de amigos. Isso não tem nada a ver com o propósito da isenção. As escolas deverão formar comissões tripartites com a participação dos professores, dos alunos e dos mantenedores. O critério de seleção será socioeconômico, as bolsas serão dadas a quem não pode pagar. As comissões decidirão quem receberá as bolsas, e os nomes dos beneficiados serão tornados públicos. Essa política resultará em 200 mil bolsas nas escolas superiores e em outras 100 mil nas escolas de ensino médio.

O senhor não acha que a exclusividade do critério de carência tem cheiro de demagogia? Veja um exemplo hipotético. Um estudante miserável tem nota cinco em todas as disciplinas e outro, de classe média, tem nota dez. As famílias de ambos não tem como pagar R$ 1.000 de mensalidade. A do menino que tem um desempenho escolar nota dez pode pagar R$ 500, mas tirou cinco em pobreza. Já a do menino que tirou cinco nas provas é nota dez em pobreza. Não se trata de uma opção irracional pelos pobres?
A nossa idéia é privilegiar os pobres e na origem do conceito dessa filantropia está a assistência social. Esse exemplo, ainda que exagerado, sugere uma situação a respeito da qual devemos refletir. Para ser sincero, se formos colocar mais ingredientes nessa questão, o resultado imediato será atrasar novamente a concessão de bolsas para os pobres. Todo dia vem gente aqui pedir exatamente esse adiamento. Temos organizações filantrópicas e pilantrópicas. Temos também um desequilíbrio na concorrência com as escolas que não tiram partido da renúncia fiscal. Ela dá uma margem de 14% para quem se beneficia da isenção previdenciária. Isso não é pouca coisa. Vamos fazer primeiro o que deve ser feito e, depois, vamos discutir a maneira de fazer melhor.

Aviso houve

Recordar é viver. ACM advertiu FFHH de que estava ajudando a eleição de um presidente do Senado que seria chamado a depor na Polícia Federal. Nem ACM chegou ao ponto de imaginar que FFHH ajudou a eleger um senador cujo indiciamento seria anunciado ao país pelo procurador-geral Geraldo Brindeiro.



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