São Paulo, domingo, 05 de setembro de 2004

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ELIO GASPARI

O Senac entrou no aprendizado da fome canina

A editora do Serviço Nacional de Aprendizado do Comércio do Rio, o Senac-Rio, lançou na semana passada o livro "Bom pra Cachorro - Gastronomia Canina", de Roberta Sudbrack, chefe da cozinha de FFHH no palácio da Alvorada de 1997 a 2002.
O Senac é uma daquelas entidades semipatronais, semi-estatais e semi-coisa-nenhuma que formam o Sistema S. Elas custam à choldra algo como R$ 3,5 bilhões por ano. No caso do Senac, seu sustento vem do desconto de 1% do valor da folha de pagamento de todos os estabelecimentos comerciais brasileiros. Algo como R$ 450 milhões em 2003. Dois dias de trabalho anuais de cada comerciário. São muitas as suas atribuições, entre elas a de dar o que fazer, no Rio, a um encarregado das "atividades com animais".
Os bípedes sustentam uma entidade que edita um livro de receitas para quadrúpedes. A dieta canina foi trabalhada pela cozinheira que deu de comer a potentados como Fidel Castro (tortinha de maçã caramelizada), Bill Clinton (caldo de carne com trufas), Sofia da Espanha (aspargos em gema caipira, ela é vegetariana), Tony Blair (salmão e laranja-lima) e FFHH (picadinho com farofa).
Uma mulher que cozinha ouvindo Billie Holiday merece respeito. Aos 43 anos, Sudbrack faz bem ao paladar brasileiro. Seu livro de memórias culinárias do tucanato é um primor, e a tiragem de 4.000 exemplares esgotou-se. Chama-se "Roberta Sudbrack, Uma Chef, Um Palácio". Mesmo assim, fica uma pergunta: qual é o país do mundo onde o cozinheiro da corte publicou um livro de comida para bichos? É sabido que as mulheres da casa de Windsor gostam de cavalos, cachorros e homens, nesta ordem, mas nenhum cozinheiro do Palácio de Buckingham comercializou receitas para quadrúpedes. Seria divertido ouvir um lorde inglês, pedindo a FFHH (ou a Lula, depois de expor seu Fome Zero Mundial) um livro de comidinhas para sua matilha.
Num país com os indicadores sociais do Brasil, uma entidade paragovernamental lança um livro de receitas de petiscos para cachorros, preparada pela ex-chefe das cozinhas reais e ainda há quem acredite que o morro do Borel é o Borel por causa da choldra do Borel. O buraco é mais em cima.
Condenar liminarmente a senhora Sudbrack é coisa de faquir. Ela amou seu golden retriever "Junior" em quem via "um animal de alma elevada". Sofreu quando o bicho morreu de câncer. Como ela disse à repórter Mônica Bergamo, "sempre fiz comida para ele como se estivesse cozinhando para o presidente ou para um rei".
Sudbrack publicou 12 receitas de cumbucas, mais seis de sobremesas e biscoitos. "Bom pra Cachorro" ensina a fazer ragu de cordeiro, cozido de perdiz e risoto de codorna para au-aus. No seu cotidiano, Sudbrack ensina o ofício da cozinha a adolescentes da Rocinha. Faz isso uma vez por semana e só trata do assunto se for provocada. Ela teve suas razões para publicar "Bom pra Cachorro".
A editora do Senac-Rio também teve seus motivos. O responsável pela "área de atividades com animais" conta que preparou um ossobuco com polenta para sua querida cachorrinha Kika e o acepipe agradou até a sua mulher. A primeira edição de 3.000 exemplares do opus canino de Sudbrack está praticamente esgotada. A R$ 48 a cópia, foi um bom negócio para a editora. A bem da justiça, registre-se que entre os 39 livros publicados pelo Senac-Rio há títulos que tem muito a ver com o aprendizado do comércio. Por exemplo: "O Novo Mercado de Trabalho - Guia para Iniciantes e Sobreviventes", ou até "Sommelier - Profissão do Futuro".
Se a senhora Sudbrack tivesse publicado seu livro numa editora privada, como fez com o primeiro, ninguém poderia latir. Fazê-lo numa dessas instituições marfagafescas que vivem à custa do confisco do dinheiro dos empresários e dos trabalhadores é coisa que retrata, num só episódio, Pindorama de FFHH e Pindorovski de Lula. No reinado de FFHH, Sudbrack cozinhou para bípedes do andar de cima. No de Lula, publicou um livro para quadrúpedes.
Chegou-se a argumentar que, apesar do título, "Bom pra Cachorro" é um livro que conta uma história de afeto, a de Sudbrack com "Junior", acrescentando receitas de cumbucas que podem ser comidas tanto por cães como por contribuintes. Falso como uma nota de três reais. Dois nativos que comeram o ragu de cordeiro da senhora Sudbrack, preparado com todo respeito à receita, asseguram que se trata de um manjar inesquecível pela ruindade. Falta-lhe sal e abunda-lhe o pior dos travos de gordura. É provável que tenha sabor de suco de escapamento de caminhão. Não lhes foi possível obter a opinião de quadrúpedes.

O candidato que assina carteira

As coisas boas também acontecem. Em Nopuranga, município de 4.170 eleitores situado a 360 quilômetros de São Paulo, o fazendeiro Aristides Goes, de 49 anos, disputa a prefeitura com uma campanha de dar inveja. Não paga coisa alguma sem nota fiscal e assina a carteira de trabalho dos 12 cabos eleitorais que estão a seu serviço. Recusou-se a usar o expediente da contratação temporária.
O fazendeiro disputa a prefeitura pelo PTB e já gastou R$ 60 mil. Goes seria uma daquelas pessoas que, segundo o comissário Delúbio, levam a transparência ao nível da ingenuidade. Delúbio detonou uma iniciativa de deputados petistas para que os candidatos do partido mostrassem suas contas em tempo real.
No Recife, Raul Jungmann (PPS) tornou-se o primeiro candidato da história eleitoral brasileira a colocar suas contas na internet. Ele revela as doações que recebe e especifica as despesas que faz. Já recebeu R$ 156 mil e gastou R$ 122 mil, quase a metade disso nas programações de rádio e TV. Trata-se da exibição da silhueta financeira da campanha, pois Jungmann só revelará os nomes dos doadores e fornecedores no dia seguinte à eleição. Faz assim para evitar que sejam perseguidos.
Em março passado a candidata Luiza Erundina, de São Paulo, assumiu o compromisso de abrir suas contas:
"Darei total transparência às contas da campanha, divulgando-as em tempo real pela internet. Eu o farei, sem pretender dar lição a ninguém, para reafirmar meu compromisso com a ética no trato da coisa pública que entendo ser um dever de quem exerce um mandato popular".
Pena, porque já se passou o primeiro mês de campanha, e ela não mostrou nada, nem as dívidas.
Todos os partidos preferiram ficar dentro do que manda a lei, só mostrando suas contas depois da eleição. Resta saber se os gastos com produtoras de televisão continuarão chegando aos tribunais eleitorais com aquele forte cheiro de caixa dois de tantas campanhas.
É o caso dos cidadãos se perguntarem: se os candidatos não confiam aos eleitores o movimento de suas contas de campanha, por que os eleitores devem confiar neles?

R$ 4.500 viraram R$ 122,5 milhões

Um caso para fazer a alegria de todos aqueles que já passaram pela experiência de ter de negociar com surtos de prepotência dos grandes bancos.
No dia 30 de agosto de 1994, o piloto aposentado Walter Bandeira de Mello foi à agencia da Barra do Bradesco, no Rio, para movimentar sua conta e deu-se conta do sumiço de R$ 4.505,30. Tentou conseguir o seu dinheiro de volta amparado no valor de sua palavra. Mandaram-no passear. Ele foi à Justiça, pedindo que se desse ao pleito o mesmo tratamento que o Bradesco aplica aos clientes que devem no cheque especial. Os famosos juros compostos a uma taxa média mensal de 8% ao mês.
Bandeira de Mello sabia que comprara uma briga na qual o banco não pretendia vencê-lo mostrando que nada lhe devia. O Bradesco decidiu prevalecer recorrendo à pressão do tempo. O piloto tinha 70 anos e um advogado. O banco tinha a eternidade e quantos advogados quisesse.
Em 1995, o Bradesco foi condenado a pagar R$ 15 mil. Era um dinheiro que não faria falta a um banco que acabara de dar R$ 2,2 milhões à campanha do professor Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. O banco usou todos os recursos que a lei concede e jogou o caso para a frente. Em abril de 1999, a Justiça mandou executar a dívida. Ela estava em R$ 679 mil. O Bradesco continuou recorrendo. Perdeu por 22 a 0 no Tribunal de Justiça no Rio e por 16 a 0 no STJ.
No ano passado, Walter Bandeira de Mello morreu, aos 79 anos. Seus herdeiros continuam querendo que o banco pague o que deve desde 1994.
O Bradesco é muito poderoso, mas, por não ter devolvido R$ 4.500 a um correntista, corre o risco de ter que pagar uma conta que em março passado chegou a R$ 122,5 milhões.
A Justiça tarda, mas os juros não falham. Bem feito.

O orador
Comentário de Lula diante de um político da espécie dos papagaios de microfone:
"De madrugada, ele vai na cozinha pegar uma Coca-Cola. Está morrendo de sede. Abre a porta da geladeira e vê acender-se uma luz. Esquece tudo e começa a discursar".

PPPra quê?
Nova designação para a sigla PPP, aquela que, segundo o governo, destina-se a formar Parcerias Público-Privadas: Para o Próximo Pagar.

Curso Madame Natasha de piano e português
Madame Natasha tem horror a música e defende a criação do Conselho Nacional da Língua Portuguesa, com poderes para silenciar autoridades que maltratam o idioma. Ela concedeu mais uma de suas bolsas de estudo ao comissário Luiz Gushiken, secretário de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica, pelo seguinte texto de seu Núcleo de Assuntos Estratégicos:
"A realidade do ambiente que envolve a conquista de um objetivo estratégico não permite que sua gestão seja linear e contínua. A realidade se apresenta dentro de uma dinâmica própria, sujeita a variáveis não controladas e não identificadas com antecedência.
(...) Algumas teorias sociológicas, como o "Diagrama das Bifurcações", a "Análise de Risco", a "Aversão à Ambigüidade" e a "Teoria da Perspectiva", facilitam a gestão das curvas de futuro, por permitirem uma melhor análise da dinâmica social e da lógica encerrada no processo decisório dos indivíduos".
Madame acha que Gushiken tem pouco o que fazer.

Memória de Faoro
André, filho de Raymundo Faoro, encontrou parte da coleção de cadernos onde ele deixou anotações memorialísticas. O escritor morreu no ano passado acreditando que esses papéis se haviam perdido. Uma espécie de memória consolidada, com lembranças que vão da infância até 1952 é a peça mais rica do achado.
Só Raymundo Faoro poderia descrever uma professora de quem não gostava: "Alta, seca e amarela, com todas as características do medo".

Recordar é viver
Um veterano militante das causas esquerdistas dos anos 70 comprou um par de tênis e incomodou-se ao ver que vinham da grife "Terminator". Era uma homenagem ao personagem vivido por Arnold Schwarzenegger num filme de 1984.
Conferiu a sola e aprendeu: "Fabricado no Vietnã".

Caçarola Banestado
Apesar da seriedade do trabalho dos procuradores federais que colheram 548 maganos na rede de transferência ilegal de dinheiro para o exterior, ainda não se chegou à melhor panela desse banquete. Esse lote é densamente municipal, com pitadas de baixo clero. Tem panela melhor na documentação da CPI do Banestado.
A entrada da turma do procurador-geral Claudio Fontelles nessa trama tem a grande virtude de interromper o sistema de mútua chantagem que ainda funciona em cima dos papéis e CDs da CPI.


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