São Paulo, Domingo, 05 de Setembro de 1999
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INFÂNCIA
Legislação brasileira proíbe a divulgação de imagens e a obtenção de lucros na intermediação
ONG americana oferece crianças pela Internet e cobra US$ 5.500 por adoção

MARIO CESAR CARVALHO
enviado especial a Curitiba

MARCIO AITH
de Washington

Uma entidade dos Estados Unidos, a Limiar, cobra US$ 5.500 para intermediar a adoção de uma criança brasileira. O valor não cobre os gastos da família com passagens para o Brasil, hospedagem e tradução de documentos, os quais consomem mais US$ 15 mil, em média.
As crianças são oferecidas pela Internet. Um dos garotos é descrito assim: "Se Nelson Mandella tivesse 12 anos, seria parecido com Marcelo. Menino normal, saudável. Seu sorriso derrete seu coração. Vídeo disponível" (veja mais cinco ofertas de crianças no quadro ao lado).
"É uma barbaridade", classifica o desembargador Moacir Guimarães, vice-presidente da comissão de adoções internacionais do Paraná, de onde é a maioria das crianças oferecidas pela Limiar.
"Adoção internacional está virando comércio", diz o promotor Clilton Guimarães dos Santos, da área da infância e da juventude em São Paulo.
É proibido obter lucros com a intermediação de adoção e oferecer crianças pela Internet, segundo a legislação brasileira (veja ao lado o que pode e o que não pode no Brasil).

Sem dinheiro, sem criança
A Folha desvendou a forma de atuação da Limiar após dois meses de investigação no Brasil e nos Estados Unidos. O ponto de partida foi o site na Internet (www.limiar.org) com a oferta de crianças brasileiras.
A pedido da reportagem da Folha, um casal norte-americano inscreveu-se no site da Limiar para obter uma adoção.
Foi por meio desse casal que a reportagem descobriu que a Limiar cobra pelas adoções e oferece um catálogo em vídeo com imagens das crianças.
Os US$ 5.500 (ou R$ 10.461) pedidos para intermediar a adoção de uma criança -o valor sobe para US$ 8.000 (R$ 15.216) quando há um grupo de irmãos- são compulsórios, segundo a Folha apurou.
A descoberta de que a "doação" é compulsória foi obtida por duas vias. Primeiro, por intermédio do casal americano que simulava a adoção. Quando o casal disse, por correio eletrônico, que não tinha condições de fazer a doação, a Limiar interrompeu o envio de novas informações.
A segunda evidência veio de uma família que buscava uma criança brasileira para adotar. A Folha teve acesso a reclamações por escrito dessa família, que adotou duas crianças no Paraná.
Segundo os Anderson, uma família do Texas (oeste dos EUA), a Limiar ameaçou processá-los caso não pagassem US$ 8.000. A Folha obteve correios eletrônicos trocados entre essa família e Nancy Cameron, presidente da Limiar, e reclamações feitas pelo casal em conversas públicas sobre adoção na Internet.
"Meu advogado comunicou que a Limiar está querendo US$ 8.000 dele (de nós) pela adoção. Isso é maluco. Eles não estão fazendo nossa adoção. É o nosso advogado que está", escreveu Terry Denise Anderson, numa conversa pública via Internet.
Cameron disse à Folha que o pagamento não é compulsório, mas uma doação para custear os projetos desenvolvidos com crianças carentes no Brasil (leia texto abaixo sobre os projetos).
Ela afirma que entre 25% e 50% dos casais que fazem adoções pela Limiar não fazem doação, mas não quis revelar o nome de nenhum deles.
A Limiar diz ter intermediado a adoção de mil crianças desde que se instalou no Brasil, em 1984. Na hipótese de ter cobrado em todos os casos, teria arrecadado US$ 5,5 milhões, no mínimo. A Convenção de Haia, que regulamenta as adoções internacionais e da qual o Brasil é signatário desde julho deste ano, proíbe as entidades que atuam na área de ter lucros.

Catálogo de crianças
Duas semanas depois de se inscrever no site da Limiar, o casal americano recebeu uma fita de vídeo com imagens de 76 crianças brasileiras para adoção. É uma espécie de catálogo.
As crianças contam quantos anos têm, do que gostam de brincar ou se passaram de ano na escola. A maioria está constrangida. São convidadas por um funcionário da Limiar em Curitiba e por Nancy Cameron a repetir expressões em inglês, como "bye bye" (tchau) ou "good morning" (bom dia). "Fala "I love you", fala!", convida o funcionário da Limiar. A criança fica calada.
"Esse vídeo é um absurdo, fere todas as leis. Fizeram um pacote para adoção", diz o juiz Fabian Schweitzer, da 2ª Vara da Infância e da Juventude de Curitiba e integrante da Ceja (Comissão Estadual Judiciária de Adoção).
Há pelo menos duas irregularidades no vídeo, segundo o juiz. Primeira: a família não pode escolher a criança a ser adotada; é uma prerrogativa do juiz. "Escolher uma criança contraria o princípio moderno de adoção, que é encontrar pais para crianças sem família, e não encontrar bebês para pais sem filhos", explica a psicóloga Lidia Weber, professora da Universidade Federal do Paraná, onde pesquisa adoções. Se a escolha fosse permitida, a criança poderia ir para uma família que não é a mais adequada ao seu perfil.
A segunda irregularidade é que as imagens em vídeo das crianças não podem ser usadas para compor um catálogo.
Crianças passíveis de adoção só podem ser fotografadas ou gravadas em vídeo com autorização judicial. Os juízes costumam autorizar os casos excepcionais, segundo Schweitzer: quando há cinco irmãos que não podem ser separados ou quando a idade da criança dificulta a adoção -o que costuma ocorrer após os 7 anos.
"Mas o vídeo só pode ser mostrado para a família interessada. Não pode haver divulgação pública", frisa o juiz.
A Limiar diz ter autorização judicial para gravar as 76 crianças que aparecem no vídeo, segundo Emmy Andersen, diretora da Limiar no Brasil. O que a entidade não tem é autorização para reunir os vídeos em um catálogo e oferecê-lo pela Internet. "Nós não sabíamos que era proibido. Agimos inocentemente e com as melhores intenções", diz Andersen.



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