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INCONSCIENTE ELEITORAL
Erros humanos e direitos divinos
MARCELO COELHO
Toda vez que William Bonner
ia sortear uma pergunta aos
candidatos à presidência, no debate de quinta-feira na Globo, era
usada uma câmera que parecia
pendurada do teto. A câmera estava tão no alto que não parece
absurda a idéia de que, mais do
que um motivo técnico, havia um
procedimento retórico nesse enquadramento.
É como se tivesse desaparecido
a velha onipotência da Rede Globo. A tendência para manipular
debates eleitorais, tão clara nos
tempos de Lula versus Collor, cedeu lugar a uma inegável competência jornalística e a uma visível
humildade diante do eleitor.
Essas imagens de William Bonner visto de cima, como que submetido à vigilância pública, foram as únicas, aliás, que fugiram
ao rígido esquema de apresentar
sempre o rosto, e só o rosto, de
quem estava falando. Com isso,
cada candidato parecia mais solitário do que nunca.
E José Serra mais do que todos.
Sua tirada mais agressiva -afirmar que Garotinho deveria estar
no programa "Casseta & Planeta"- talvez arrancasse risadas
da claque de assessores. Mas não
havia ninguém para rir.
Quando queria ser mais leve e
irônico, Serra também errava o
tom. Queixou-se, de forma supostamente jocosa, de que Lula não
lhe fazia perguntas sobre sua
atuação no Ministério da Saúde.
Mas o que Serra queria? Que o
adversário lhe desse essa chance
de bandeja? Claro, era brincadeira. Mas, de certo modo, não era
brincadeira de jeito nenhum.
Conquistar a Presidência, para
Serra, parece ser quase uma questão de direito divino.
Daí, provavelmente, os maiores
erros de sua campanha. Na corrida maluca dos presidenciáveis,
Serra começou vencendo Penélope Charmosa; mostrou-se um
motorista de olhos ávidos e barba
cerrada, abalroando seus concorrentes dentro e fora do partido,
enquanto a voz, amena, falava de
equilíbrio emocional e fiscal.
No debate de quinta-feira, Serra insistiu em desvincular-se da
administração FHC; é como se
suas qualidades individuais superassem qualquer identidade política com o governo. Não queria
falar "do passado", mas sim de
programas para o futuro.
Ciro Gomes foi ao ponto: não é
do passado que se está falando, é
da situação atual, gravíssima; e
não há como negar a responsabilidade do governo quanto a isso.
"Não é comigo", parecia dizer
Serra. "Nem comigo", rebatia Ciro Gomes.
O fantasma do calote, involuntariamente, ronda esse raciocínio,
pois dizer "o que passou, passou"
é sempre típico de quem renega as
dívidas contraídas no passado.
Quem, como Lula, fala o tempo
todo em "sentar em volta de uma
mesa e negociar" também não está longe de ter o modelo da insolvência na cabeça. E é Garotinho,
que não tem nada a perder nem
nada a pagar, quem assume então o papel de cobrador. Reclamou do tom genérico das respostas de Lula, como se dissesse:
"mas esse cara não responde nada, pô!"
Lula, de fato, não acha que precise responder muita coisa. Os técnicos, os especialistas resolverão
as perguntas mais difíceis: são capazes até, acredita ele, de determinar cientificamente quem é negro e quem não é.
Não digo que todo mundo seja
pardo, como os gatos à noite, mas
é certo que todo candidato é criticável. O importante a notar é que
nesta eleição o papel dos jornalistas teve de se sofisticar mais. Não
basta duvidar, é preciso saber perguntar: e, nesse ponto, devemos
tirar o chapéu para William Bonner; foi o grande vencedor do debate.
MARCELO COELHO, colunista da Folha,
escreve aos sábados
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