São Paulo, sábado, 05 de outubro de 2002

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INCONSCIENTE ELEITORAL

Erros humanos e direitos divinos

MARCELO COELHO

Toda vez que William Bonner ia sortear uma pergunta aos candidatos à presidência, no debate de quinta-feira na Globo, era usada uma câmera que parecia pendurada do teto. A câmera estava tão no alto que não parece absurda a idéia de que, mais do que um motivo técnico, havia um procedimento retórico nesse enquadramento.
É como se tivesse desaparecido a velha onipotência da Rede Globo. A tendência para manipular debates eleitorais, tão clara nos tempos de Lula versus Collor, cedeu lugar a uma inegável competência jornalística e a uma visível humildade diante do eleitor.
Essas imagens de William Bonner visto de cima, como que submetido à vigilância pública, foram as únicas, aliás, que fugiram ao rígido esquema de apresentar sempre o rosto, e só o rosto, de quem estava falando. Com isso, cada candidato parecia mais solitário do que nunca.
E José Serra mais do que todos. Sua tirada mais agressiva -afirmar que Garotinho deveria estar no programa "Casseta & Planeta"- talvez arrancasse risadas da claque de assessores. Mas não havia ninguém para rir.
Quando queria ser mais leve e irônico, Serra também errava o tom. Queixou-se, de forma supostamente jocosa, de que Lula não lhe fazia perguntas sobre sua atuação no Ministério da Saúde. Mas o que Serra queria? Que o adversário lhe desse essa chance de bandeja? Claro, era brincadeira. Mas, de certo modo, não era brincadeira de jeito nenhum. Conquistar a Presidência, para Serra, parece ser quase uma questão de direito divino.
Daí, provavelmente, os maiores erros de sua campanha. Na corrida maluca dos presidenciáveis, Serra começou vencendo Penélope Charmosa; mostrou-se um motorista de olhos ávidos e barba cerrada, abalroando seus concorrentes dentro e fora do partido, enquanto a voz, amena, falava de equilíbrio emocional e fiscal.
No debate de quinta-feira, Serra insistiu em desvincular-se da administração FHC; é como se suas qualidades individuais superassem qualquer identidade política com o governo. Não queria falar "do passado", mas sim de programas para o futuro.
Ciro Gomes foi ao ponto: não é do passado que se está falando, é da situação atual, gravíssima; e não há como negar a responsabilidade do governo quanto a isso.
"Não é comigo", parecia dizer Serra. "Nem comigo", rebatia Ciro Gomes.
O fantasma do calote, involuntariamente, ronda esse raciocínio, pois dizer "o que passou, passou" é sempre típico de quem renega as dívidas contraídas no passado.
Quem, como Lula, fala o tempo todo em "sentar em volta de uma mesa e negociar" também não está longe de ter o modelo da insolvência na cabeça. E é Garotinho, que não tem nada a perder nem nada a pagar, quem assume então o papel de cobrador. Reclamou do tom genérico das respostas de Lula, como se dissesse: "mas esse cara não responde nada, pô!"
Lula, de fato, não acha que precise responder muita coisa. Os técnicos, os especialistas resolverão as perguntas mais difíceis: são capazes até, acredita ele, de determinar cientificamente quem é negro e quem não é.
Não digo que todo mundo seja pardo, como os gatos à noite, mas é certo que todo candidato é criticável. O importante a notar é que nesta eleição o papel dos jornalistas teve de se sofisticar mais. Não basta duvidar, é preciso saber perguntar: e, nesse ponto, devemos tirar o chapéu para William Bonner; foi o grande vencedor do debate.


MARCELO COELHO, colunista da Folha, escreve aos sábados


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