São Paulo, Domingo, 05 de Dezembro de 1999


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AMAZONAS

Ordem da Santa Cruz proíbe festa, música, adornos e bebida usada durante os rituais das aldeias

Seita muda hábitos dos índios ticunas

Patrícia Santos/Folha Imagem
Criança ticuna da comunidade Niterói, na margem do Solimões, mostra cruz da Ordem de Santa Cruz, seita que proíbe rituais


ELVIRA LOBATO
enviada especial ao Alto Solimões

Índios ticunas que habitam o Alto Solimões, no Amazonas, modificaram seus hábitos culturais por imposição de uma seita fanática -a Ordem Cruzada Apostólica Evangélica ou Ordem da Santa Cruz- que atua na região desde o início dos anos 70.
A seita proíbe a principal festa dos ticunas, a ""festa da moça nova", que comemora a primeira menstruação das jovens índias e o ingresso delas na vida adulta.
O consumo do pajuarú -bebida que é feita com a fermentação da mandioca, usada nos rituais- , a música e os adornos são também proibidos.
A ordem foi criada pelo mineiro José Francisco da Cruz, o irmão José, que acreditava ter recebido a missão divina de sair pelo mundo para pregar o evangelho, carregando uma cruz. Ele chegou ao Solimões em 1972, vindo do Peru, onde também fez seguidores. Após sua morte, em 1982, aos 68 anos, a seita se dividiu.
Um peruano, que assumiu o nome de irmão José, e o brasileiro Walter Souza Neves disputam o comando da organização. Em 1990, eles chegaram a travar uma batalha no rio Juí (um afluente do rio Içá), com seguidores armados com paus e pedras.
Walter Neves se diz legítimo sucessor do fundador da seita e tem mais adeptos entre os ribeirinhos, ditos ""civilizados".
Ele mora em uma vila com cerca de 2.000 seguidores na margem do Juí, onde está o túmulo do irmão José, e diz controlar 40 comunidades no Brasil e 54 no Peru.
Já o peruano, que se autodenomina Francisco da Cruz, conseguiu maior aceitação nas aldeias indígenas, pois os ticunas acreditam que tenha incorporado o espírito de irmão José.
Ele controla 34 aldeias (a maioria ticuna) e está construindo uma igreja na margem do rio Jandiatuba, no município São Paulo de Olivença, onde se instalou com cerca de 800 seguidores.

Sob o domínio da cruz
Uma grande cruz de madeira, colocada na entrada das aldeias, identifica à distância os redutos da seita. Os seguidores levam uma cruz de madeira no pescoço, usam roupas que cobrem quase todo o corpo e seguem normas rígidas de comportamento.
As comunidades têm uma estrutura organizacional ditada pela seita, com presidente, diretores, delegado e ""polícia" nomeados pelo pastor. A população indica os nomes, que podem ser aprovados ou rejeitados pelo pastor. A estrutura é adotada pelas duas facções beligerantes.
A comunidade Niterói -que fica na margem do Solimões, a 190 km da fronteira com a Colômbia- segue a facção do pastor Walter Neves.
O ""presidente" da comunidade, Simão Ramires, diz que os moradores vão à igreja duas vezes ao dia. Ao ser indagado sobre seu maior sonho, afirma: ""Ir para o céu". E sobre o maior medo, responde, sem hesitar: ""O inferno".
Ramires diz que a proibição da bebida trouxe grande benefício para a comunidade: ""Não há mais brigas e as famílias vivem na paz de Deus". Afirma que a entrada de sacerdotes de outras religiões não é admitida na aldeia e que, se um morador deixar a seita, é obrigado a se mudar com a família.
Separação de marido e mulher é assunto fora de questão. ""Se os casais estão em crise, eles devem procurar o "delegado" da comunidade, e ele vai resolver quem tem razão", prossegue Ramires.
O líder ticuna Cristóvão Pereira, da aldeia Nova Galiléia -uma das comunidades da reserva Vui-Uata-In- é seguidor da pastor peruano Francisco da Cruz. Uma vez por mês, as cinco famílias que moram na aldeia saem de casa de madrugada para visitarem a igreja que está sendo construída junto ao rio Jandiatuba. É um dia inteiro de viagem, explica Pereira, que fala com dificuldade o português.
Ele conta que cada uma das famílias leva farinha de mandioca e banana em pagamento do dízimo e que raras vezes eles têm dinheiro para entregar ao pastor: ""Está na Bíblia que é preciso dar o dízimo, mas só às vezes é que a gente consegue juntar R$ 3,00 ou R$ 5,00 para dar".
Entre as áreas de reserva ticuna que estão sob influência do pastor peruano estão as de Mariaçu, Belém do Solimões, Feijoal e Campo Alegre, cada uma com várias aldeias. Segundo a Funai (Fundação Nacional do Índio), existem 32 mil ticunas, vivendo em 116 aldeias, no Alto Solimões.
A Funai diz ter conhecimento da atuação da Ordem da Santa Cruz nas comunidades indígenas e diz que não expulsa os líderes da seita das reservas porque já estão no local há vários anos e a retirada deles poderia ser ainda mais traumática para os índios.

Troca de acusações
A Folha localizou em Iquitos, no Peru, o pastor Walter Neves, que se declara sucessor nomeado pelo irmão José. Em entrevista por telefone, ele disse que vai pedir ao governo federal a expulsão do peruano Francisco Cruz, a quem acusa de arrancar dinheiro dos índios.
Walter Neves diz que era carpinteiro naval (construtor de embarcações) em Tabatinga, quando conheceu irmão José e se tornou seu seguidor. Ele admite que as práticas impostas pelas seita ferem as tradições dos ticunas, mas diz não ver problemas nisso: ""Índio é inocente e é preciso que haja uma pessoa que o ensine a ser cristão. A doutrina de Jesus Cristo é superior ao sistema do índio."
O pastor Francisco Cruz não pôde ser localizado, pois não há telefone ou outro meio de comunicação onde vive. Um de seus seguidores, Paulo Batalha dos Santos, líder da comunidade Monte Santo, afirma que o pastor Walter Neves não teve competência para dar seguimento ao trabalho do irmão José e que, por isso, o peruano se instalou no Brasil.
O antropólogo João Pacheco de Oliveira Filho, professor de pós-graduação de antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e estudioso dos ticunas, afirma que eles mantêm a identidade cultural, apesar da convivência com a seita.
Segundo o antropólogo, os ticunas reinterpretam os princípios da seita de acordo com a visão de mundo deles. ""A figura do irmão José, que se declarava onipresente e onisciente, tem lugar na cosmologia ticuna", afirma. Ele lembra que os ticunas estão em contato com ""civilizados" há 300 anos e preservam a língua.


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