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REFORMA AGRÁRIA / A FAVOR
As duas novas reformas agrárias
PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO
ESPECIAL PARA A FOLHA
REFORMA-SE algo que
não está funcionando a
contento. Altera-se então a forma de alguma coisa,
sem alterar sua substância. Por
isso mesmo, uma mesma coisa
pode ser reformada várias vezes. Com a estrutura agrária
acontece exatamente o mesmo.
Todas as vezes em que ela emperra a realização do projeto de
algum grupo social importante,
esse grupo propõe uma reforma agrária.
Na época moderna, o motivo
principal das reformas agrárias
foi a rigidez da estrutura agrária herdada da Idade Média
porque impedia o pleno funcionamento do mercado capitalista e das instituições capitalistas
no campo. De modo geral, essas
reformas agrárias foram distributivistas -promoviam a desapropriação de grandes latifúndios e seu parcelamento em lotes familiares.
Nos anos 50 do século passado foi esse tipo de reforma
agrária que entrou na agenda
política do país, proposta apresentada pelas demais forças
progressistas, racionalizada pela Cepal, sob o argumento do
atraso do setor agrícola e dos
seus efeitos no processo inflacionário, e incorporada pelos
governos que "compraram" a
ideia do presidente Kennedy,
o qual viu a possibilidade de
evitar a propagação da Revolução Cubana num processo moderado de distribuição das terras dos latifúndios latino-americanos.
A proposta de reforma agrária deu ensejo a um intenso debate teórico em torno do problema da terra. O golpe de 1964
encerrou o debate, o qual só foi
reaberto 20 anos depois, agora
sustentado por novas organizações populares e novos partidos de esquerda. Muitos intelectuais -inclusive os que hoje
a renegam- encarregaram-se
de justificá-la teoricamente.
Não se tratava mais da reforma de 1964, porque os militares, nos seus 20 anos de governo, haviam realizado a modernização do campo sem distribuição massiva de terra, porém
a um preço social e ecológico altíssimo. Tratava-se de corrigir
essas distorções. Portanto, tratava-se agora de reforma agrária social, destinada a humanizar o capitalismo agrícola e a
preservar o meio ambiente.
Hoje o governo Lula praticamente enterrou esse tipo de reforma agrária. Por isso os movimentos populares foram levados a radicalizar sua pressão
sobre a terra. Além das ocupações, promoveram marchas, fechamento de estradas, danificação de pedágios e, ultimamente, danificação de instalações e plantações de propriedade de grandes agronegócios.
Em uma sociedade anestesiada, incapaz de sensibilizar-se por argumentos racionais,
que se move unicamente pressionada por gestos ostensivos,
tais atitudes se justificam pelo
estado de necessidade, pois não
há outra forma de chamar a
atenção para o descaso criminoso do governo com a população rural.
Qual a leitura a ser feita então a respeito de fatos como a
derrubada de laranjais da fazenda Cutrale; a danificação
das mudas de transgênicos na
Syngenta; a ocupação dos latifúndios do banqueiro Dantas
no Pará?
Esses e outros gestos publicitários visam bloquear um processo de reforma agrária atualmente em plena marcha e, ao
mesmo tempo, propor um projeto alternativo de reforma.
O processo de reforma a ser
bloqueado está sendo executado aceleradamente.
Origina-se
na contrarrevolução neoliberal
dos anos 90 e na nova divisão
internacional do trabalho que
dela decorreu.
Essa nova divisão alterou o lugar da economia
brasileira no mercado capitalista internacional e isto está a
exigir a transformação rápida
da sua atual estrutura agrária, a
fim de que os grandes agronegócios internacionais montem
uma formidável economia exportadora de quatro produtos
altamente demandados pelas
economias que lideram a nova
fase do capitalismo -soja, álcool de cana de açúcar, carne e
madeiras.
O grande capital internacional assumiu por conta própria a
realização dessa reforma e a está implementando, mediante a
compra de terras e de empresas
agrícolas, de que é exemplo a
compra da Usina Santa Elisa
pelo grupo Dreiffyus.
Por ação e por omissão, o governo Lula apoia entusiasticamente essa nova reforma agrária. Por omissão, quando paralisa o raquítico programa de assentamentos da "reforma agrária social"; por ação: quando
edita leis que permitem legalizar 67 milhões de hectares de
terras griladas na Amazônia,
a fim de que os grileiros (convertidos em proprietários legais) as vendam aos grandes
agronegócios para produção de
soja e para criação de gado nessas terras; quando realiza pesados investimentos na transposição das águas do rio São Francisco, a fim de criar uma economia exportadora de frutas tropicais, comandada pelos grandes agronegócios e destinada
a países do hemisfério norte;
quando prorroga a entrada em
vigor de leis que protegem as
florestas.
Requisito indispensável para
o êxito dessa reforma agrária
dos ricos é calar os movimentos
sociais do campo, especialmente aquele que, aqui e no exterior, simboliza a luta da população pobre pela terra: o MST. O
capital transnacional não vai
aonde pode correr riscos.
O serviço que os intelectuais
hoje dedicados a desmoralizar
o MST prestam a essa nova reforma agrária consiste em fornecer argumentos pseudamente racionais para justificar a criminalização desse movimento.
A outra reforma agrária -a
dos movimentos autênticos do
campo e das forças sociais progressistas- visa contrarrestar a
reforma concentradora dos
agronegócios e atender às necessidades de 6 milhões de famílias pobres do campo. Trata-se de consolidar a agricultura
familiar -que responde tanto
pela maior porcentagem da
produção de alimentos quanto
da oferta de empregos no campo e de desapropriar todos os
imóveis de tamanho superior a
1.000 hectares, a fim de redistribuir essas terras à população
rural sem terra.
O MST e a CPT (órgão da
CNBB) levantaram essa bandeira, cabendo às forças progressistas que ainda restam na
nação empunhá-la e levá-la
adiante.
A estrutura agrária que se
formará nesse processo criará a
base material requerida para
viabilizar um rigoroso processo
de zoneamento agroecológico
da produção e um programa de
descentralização do abastecimento alimentar da população.
A prioridade que deverá ser dada a esses objetivos não é incompatível com o aproveitamento da demanda externa pelas "commodities" agrícolas
porque o país possui uma enorme quantidade de terras.
Os desertores da reforma
agrária, que hoje se ocupam de
intrigar a opinião pública contra o MST, não conseguem separar o fato social do movimento político: o MST é um movimento político socialista que,
diante do fato social representado pelo conflito fundiário, organiza a luta de uma das partes
do conflito -a população rural
sem terra- do mesmíssimo
modo que a CNA; a bancada ruralista; os partidos da direita; a
grande mídia (com matérias escandalosamente facciosas); e
os intelectuais a serviço desses
interesses organizam a luta da
outra parte no conflito: o agronegócio.
Para que o debate sobre as
duas reformas agrárias seja racional, é preciso pôr de lado a
impostura da imparcialidade.
Este analista toma partido
-está do lado dos sem-terra- e
é deste ponto de vista que interpreta racionalmente a realidade do campo. Quem diz não estar de lado nenhum, mas do lado do Brasil, não está dizendo a
verdade: o Brasil não tem lado
no conflito agrário, porque é
impossível realizar uma reforma que atenda ao mesmo tempo quem quer a concentração e
quem quer a desconcentração
da propriedade rural.
Contudo há uma crítica a ser
feita à ocupação da fazenda da
Cutrale. Segundo a empresa, os
ocupantes destruíram 7.000
pés de laranja. Erraram: deviam ter destruído 70 mil (o
que nem seria muito notado
numa fazenda de 1 milhão de
pés) a fim de chamar mais a
atenção para o fato de que essa
fazenda ocupa ilegalmente terras públicas com a conivência
do Poder Judiciário. Muito
mais do que 70 mil são as vidas
de crianças estão sendo destruídas pelo desemprego agrícola; pelos salários escandalosamente baixos dos trabalhadores rurais; pela precariedade
das habitações rurais -fonte de
doenças que destroem vidas.
O MST está certíssimo na sua
tática de luta. Só lhe falta proclamar com maior vigor e clareza a cumplicidade de Lula na
reforma agrária do agronegócio
e cobrar mais apoio dos partidos de esquerda, das igrejas, da
universidade, dos ecologistas
(que precisam sair de cima do
muro e assumir a luta camponesa), bem como exigir do Poder Judiciário e do Ministério
Público, cujos juízes e promotores permitem o protelamento indefinido ações de desapropriação e não fiscalizam as violências policiais cometidas
contra os lavradores nas reintegrações de posse, o cumprimento de suas obrigações.
O MST deve cobrar: a população rural é credora e não devedora.
PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO, 79, é presidente
da Abra (Associação Brasileira de Reforma
Agrária) e ex-consultor da FAO (Organização
das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação). Foi deputado federal constituinte pelo PT-SP e candidato a governador de São Paulo pelo
mesmo partido em 1990. Em 2005, filiou-se ao
PSOL, partido pelo qual concorreu ao governo de
São Paulo em 2006.
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