São Paulo, domingo, 06 de janeiro de 2008

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Mérito deve ser premiado, não os amigos, diz DaMatta

Para antropólogo, entrega indiscriminada de medalhas simboliza "ética da casa'

Segundo ele, caso poderia ser resumido na frase de um político da 1ª República: "Eu resisto a tudo, só não resisto a um pedido de um amigo"

FERNANDO BARROS DE MELLO
DA REDAÇÃO

O antropólogo Roberto DaMatta diz que a prática de entrega de medalhas no Brasil simboliza o que ele já definiu como a ética particularista da casa, representada pela idéia dos amigos e da proteção. "O Brasil dá muitas medalhas, ou seja, tem muito mais cacique do que índio, muito mais general do que soldado e muito mais medalhados do que heróis." Para o professor, autor dos clássicos "A Casa e a Rua" e "Carnavais, Malandros e Heróis", "se a medalha é dada todo mês, o seu valor é menor".

 

FOLHA - A entrega de medalhas nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário é uma prática bastante difundida. O que isso simboliza?
ROBERTO DAMATTA -
A comenda que recomenda é um reconhecimento de alguma qualidade, feito ou gesto fora do comum, realizado pela pessoa. O simbolismo da entrega tem a ver com a quantidade de vezes que a medalha é entregue. Se a medalha é dada todo mês, o seu valor é menor do que uma medalha estilo Oscar, por exemplo, dada uma vez por ano, ou daquelas condecorações dadas por bravura. Depois há um outro fator: num mundo igualitário, se a pessoa fala muito das suas comendas, vira um pateta.

FOLHA - Por que os poderes se sentem obrigados a homenagear?
DAMATTA -
Há casos em que os poderes consolidam e, acima de tudo, legitimam seus amigos, seus correligionários, seus confrades e aquelas pessoas que admiram e respeitam. Talvez exista, no caso do Brasil, em relação a outros sistemas, um certo exagero nisso. O problema não é a condecoração, a questão é o seu numero e, mais que isso, o número de condecorados. É a velha inflação que fala do valor.

FOLHA - O senhor faz uma distinção entra a ética da casa (aquela dos amigos e da família, que manda proteger, ignorar e relevar) e a ética da rua, do mundo público (do tratamento com isenção e da punição exemplar). Estamos conversando sobre qual ética nesse caso?
DAMATTA -
Esse panorama que vocês me passam confirma, lamentavelmente para mim, a ética da casa. Isso mostra que ela não acaba, pelo contrário, se moderniza. Você está celebrando a ética da casa e eventualmente entram pessoas de fora. Mas o centro da celebração é você premiar as pessoas que já se sabe que serão premiadas e elas já sabem que serão premiadas. É a celebração da família. Ninguém vai fazer um discurso de crítica para um avô que vai fazer 80 anos. Da mesma forma, ninguém vai fazer uma festa de aniversário para aquele vizinho chato.
Quando, na verdade, contemplar o sucesso no mundo moderno é também contemplar o sucesso que não foi aquele do amigo, do livro que você gostaria que fosse, do time futebol ou o partido que não é o seu. Isso que o Brasil tem que aprender, o que nosso governo tem que aprender.

FOLHA - E onde entra a medalha nessa análise?
DAMATTA -
Uma das coisas que a medalha faz é criar pontes entre adversários, coisa que o governo, por exemplo, não consegue fazer. Mas a ética que tem transparecido nos últimos tempos é a ética partidária, do sectarismo, não contempla ponte e negociação.
O Brasil dá muitas medalhas, ou seja, tem muito mais cacique do que índio, muito mais general do que soldado e muito mais medalhados do que heróis. Medalhados do "nosso time", porque o outro time não tem ninguém que "mereça".

FOLHA - Quem recebe uma medalha fica em "dívida"? E quem entrega fica esperando algo em troca?
DAMATTA -
Dependendo de quem é a pessoa, fica. Imagine um mau escritor ou um autor sem obra definida recebendo um prêmio central de uma academia de letras; ou um covarde recebendo uma medalha de bravura; ou um político que nada fez de relevante, ganhando uma condecoração que contemple excepcionalidade.

FOLHA - O senhor já definiu malandragem como aquela ação que não é algo que está bem dentro da lei, mas que também não está completamente fora dela, uma área cinzenta. O caso das medalhas, que não é ilegal, é uma área cinzenta?
DAMATTA -
Alguns casos levantados mostram isso. O resultado pode ser sintetizado na frase de um político da primeira República: "Eu resisto a tudo, só não resisto a um pedido de um amigo".

FOLHA - Isso é comum no exterior?
DAMATTA -
Diria que países igualitários, competitivos, apreciam e valorizam prêmios dados em disputas por grupos isentos e sem sombra de conflito de interesse.


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