|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Mérito deve ser premiado, não os amigos, diz DaMatta
Para antropólogo, entrega indiscriminada de medalhas simboliza "ética da casa'
Segundo ele, caso poderia ser resumido na frase de um político da 1ª República: "Eu resisto a tudo, só não resisto a um pedido de um amigo"
FERNANDO BARROS DE MELLO
DA REDAÇÃO
O antropólogo Roberto DaMatta diz que a prática de entrega de medalhas no Brasil
simboliza o que ele já definiu
como a ética particularista da
casa, representada pela idéia
dos amigos e da proteção.
"O Brasil dá muitas medalhas, ou seja, tem muito mais
cacique do que índio, muito
mais general do que soldado e
muito mais medalhados do que
heróis." Para o professor, autor
dos clássicos "A Casa e a Rua" e
"Carnavais, Malandros e Heróis", "se a medalha é dada todo
mês, o seu valor é menor".
FOLHA - A entrega de medalhas
nos poderes Executivo, Legislativo e
Judiciário é uma prática bastante difundida. O que isso simboliza?
ROBERTO DAMATTA - A comenda
que recomenda é um reconhecimento de alguma qualidade,
feito ou gesto fora do comum,
realizado pela pessoa. O simbolismo da entrega tem a ver com
a quantidade de vezes que a
medalha é entregue.
Se a medalha é dada todo
mês, o seu valor é menor do que
uma medalha estilo Oscar, por
exemplo, dada uma vez por
ano, ou daquelas condecorações dadas por bravura.
Depois há um outro fator:
num mundo igualitário, se a
pessoa fala muito das suas comendas, vira um pateta.
FOLHA - Por que os poderes se sentem obrigados a homenagear?
DAMATTA - Há casos em que os
poderes consolidam e, acima de
tudo, legitimam seus amigos,
seus correligionários, seus confrades e aquelas pessoas que
admiram e respeitam.
Talvez exista, no caso do Brasil, em relação a outros sistemas, um certo exagero nisso. O
problema não é a condecoração, a questão é o seu numero e,
mais que isso, o número de
condecorados. É a velha inflação que fala do valor.
FOLHA - O senhor faz uma distinção entra a ética da casa (aquela dos
amigos e da família, que manda
proteger, ignorar e relevar) e a ética
da rua, do mundo público (do tratamento com isenção e da punição
exemplar). Estamos conversando
sobre qual ética nesse caso?
DAMATTA - Esse panorama que
vocês me passam confirma, lamentavelmente para mim, a
ética da casa. Isso mostra que
ela não acaba, pelo contrário, se
moderniza. Você está celebrando a ética da casa e eventualmente entram pessoas de fora.
Mas o centro da celebração é
você premiar as pessoas que já
se sabe que serão premiadas e
elas já sabem que serão premiadas. É a celebração da família.
Ninguém vai fazer um discurso de crítica para um avô
que vai fazer 80 anos. Da mesma forma, ninguém vai fazer
uma festa de aniversário para
aquele vizinho chato.
Quando, na verdade, contemplar o sucesso no mundo
moderno é também contemplar o sucesso que não foi aquele do amigo, do livro que você
gostaria que fosse, do time futebol ou o partido que não é o seu.
Isso que o Brasil tem que
aprender, o que nosso governo
tem que aprender.
FOLHA - E onde entra a medalha
nessa análise?
DAMATTA - Uma das coisas que
a medalha faz é criar pontes entre adversários, coisa que o governo, por exemplo, não consegue fazer. Mas a ética que tem
transparecido nos últimos
tempos é a ética partidária, do
sectarismo, não contempla
ponte e negociação.
O Brasil dá muitas medalhas,
ou seja, tem muito mais cacique do que índio, muito mais
general do que soldado e muito
mais medalhados do que heróis. Medalhados do "nosso time", porque o outro time não
tem ninguém que "mereça".
FOLHA - Quem recebe uma medalha fica em "dívida"? E quem entrega fica esperando algo em troca?
DAMATTA - Dependendo de
quem é a pessoa, fica. Imagine
um mau escritor ou um autor
sem obra definida recebendo
um prêmio central de uma academia de letras; ou um covarde
recebendo uma medalha de
bravura; ou um político que nada fez de relevante, ganhando
uma condecoração que contemple excepcionalidade.
FOLHA - O senhor já definiu malandragem como aquela ação que não
é algo que está bem dentro da lei,
mas que também não está completamente fora dela, uma área cinzenta. O caso das medalhas, que não é
ilegal, é uma área cinzenta?
DAMATTA - Alguns casos levantados mostram isso. O resultado pode ser sintetizado na frase
de um político da primeira República: "Eu resisto a tudo, só
não resisto a um pedido de um
amigo".
FOLHA - Isso é comum no exterior?
DAMATTA - Diria que países
igualitários, competitivos,
apreciam e valorizam prêmios
dados em disputas por grupos
isentos e sem sombra de conflito de interesse.
Texto Anterior: Fórum em Mato Grosso expõe placa com agradecimento a "Comendador" Arcanjo Próximo Texto: Elio Gaspari: Vocês são invasores, nós somos tenistas Índice
|