São Paulo, domingo, 06 de fevereiro de 2005

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NO PLANALTO

"Samba do Judiciário Doido", eis o hit do Carnaval

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

Carnaval ... Boa hora para esmiuçar a partitura do "Samba do Judiciário Doido". É o hino dos blocos de sujos. Blocos como o "Unidos do TRT de São Paulo".
A dinâmica da música é amalucada. Ouve-se primeiro o batuque do Ministério Público. Soa fortíssimo.
Segue-se o baticum da ala dos réus. Coisa polifônica. Várias melodias simultâneas. Todas executadas numa mesma tonalidade de improvável inocência.
Súbito, o som decresce. Até resumir-se a um esvoaçar de folhas. Dezenas delas. Só o juiz Nicolalau atravessou no pentagrama mais de 40 recursos judiciais.
O timbre, agora "pianíssimo", escapa à percepção geral. Ninguém se dá conta dos entraves que transformam o processo numa sucessão de breques e "staccatos".
O samba parece não ter mais fim. O acorde final desemboca sempre num "ritornello". Os juízes são compelidos a reiniciar a música. "Da capo."
O processo do TRT paulista encontra-se no STJ (Superior Tribunal de Justiça). Abaixo, detalhes de sua tramitação:
1) a pedido do Ministério Público, o STJ instaurou, em 99, inquérito para apurar desvios de R$ 169,5 milhões da obra do prédio do TRT;
2) pouco depois, o STF (Supremo Tribunal Federal) concluiu que a Constituição de 88 sepultara a regalia do "foro especial". Ex-autoridades, como o juiz Nicolalau, deveriam ser julgadas na primeira instância do Judiciário. O inquérito desceu à 1ª Vara Federal de São Paulo;
3) em 2000, a procuradora federal Janice Ascari denunciou o juiz Nicolalau e os empresários Luiz Estevão (ex-senador), Fábio Monteiro de Barros e José Eduardo Correa Ferraz. Acusou-os de formação de quadrilha, peculato, falsidade ideológica e corrupção (ativa e passiva, conforme o caso).
4) em 2002, o juiz Cassem Maz- loum condenou Nicolalau a três anos de cana por tráfico de influência, uma acusação que não constava da denúncia. Absolveu os empresários;
5) havia evidências rijas contra o ex-senador Estevão. Entre as quais extratos bancários atestando a transferência de recursos para Nicolalau no exterior. Maz- loum tachou as provas de "ilícitas";
6) pretextando inocência, Nicolalau recorreu de sua condenação. A procuradora Ascari também se insurgiu contra a sentença. Pediu a ampliação da pena de Nicolalau e a revisão da absolvição dos empresários;
7) Nicolalau requereu o envio do caso ao STJ. Alegou que, como ex-juiz, tinha direito a "foro especial". Mazloum negou. Os autos foram ao TRF (Tribunal Regional Federal) de São Paulo;
8) receoso de que, longe da Presidência da República, pudesse vir a ser importunado por promotores e juízes em início de carreira, FHC sancionou, no apagar das luzes de seu governo, uma lei controversa. Estendeu o "foro especial" às ex-autoridades;
9) baseando-se na nova lei, o juiz Mazloum terminou por enviar, em 2003, os autos do TRT paulista para o STJ. O Ministério Público esperneou. A lei de FHC não poderia retroagir para beneficiar Nicolalau, condenado seis meses antes;
10) o STJ comprou a tese. E determinou a devolução da encrenca para São Paulo. Lá se vão quase três anos. E o processo permanece em Brasília. Graças a uma sucessão de recursos ajuizados pelos advogados dos réus;
12) o STJ rejeitou, um a um, todos os recursos. Desqualificou-os muitas vezes. Há "nítido propósito de protelar", anota uma sentença. Os recursos "somente visam adiar o julgamento", registra outra. "É nítido o caráter protelatório dos embargos", lê-se numa terceira;
13) dez dias atrás, Luiz Estevão foi ao STF. Ressuscitando a tese do "foro privilegiado" de Nicolalau, rogou a manutenção do processo no STJ;
14) em decisão liminar (provisória), o presidente do Supremo, Nelson Jobim, deferiu o pedido do ex-senador. Até segunda ordem, o caso deve mesmo ser julgado pelo STJ;
15) sacoleja daqui, rebola dali, o debate volta ao início sem ter roçado o essencial: quando serão julgados, afinal, os acusados? Pode-se imaginá-los, braços desenhando serpentes no ar, cantando: "Tanto riso, ohhh (!!!) quanta alegria. Mais de mil palhaços no salãooooo...";
16) o juiz Mazloum, aquele que inocentara os empresários, foi arrancado do baile. Pilhado nos grampos da Operação Anaconda, descobriu-se que, sob sua jurisdição, aviavam-se, além de sentenças, negócios. Pegou dois anos de cana;
17) beneficiado pelas regras da prescrição -esquindô, esquindô-, Nicolalau já se livrou de duas acusações: formação de quadrilha e estelionato;
18) livrando-se das demais, pode pôr a mão em US$ 4 milhões. Depositada em seu nome na Suíça, a grana encontra-se bloqueada, à espera de uma sentença que faculte a repatriação;
19) além do processo em que divide o banco dos réus com Luiz Estevão e Cia., Nicolalau é protagonista solitário de outro litígio. Acusado de lavar o dinheiro, foi sentenciado a cinco anos de prisão. Condenou-o, também nesse caso, o juiz Cassem Mazloum;
20) Nicolalau recorreu da sentença. Dessa vez, porém, Maz- loum mandou o processo para o TRF de São Paulo, não para o STJ. Curiosamente, Nicolalau deixou barato. Não fez questão do "foro privilegiado";
21) repetindo o seu colega Sepúlveda Pertence, Nelson Jobim, o presidente do STF, disse na semana passada que o Judiciário virou "arquipélago de ilhas de pouca comunicação". O "congestionamento" de processos, vaticinou ele, "levará à paralisação completa do sistema";
22) processos como o do TRT de São Paulo cobrem Jobim de razão. O caso de Nicolalau, corrupto sem corruptores, segue em ritmo de "partido alto", marcado pelo acompanhamento de palmas. Palmas para juiz dançar;
23) numa fase em que o Judiciário parece cantarolar Noel -"Agora vou mudar minha conduta"-, réus com dinheiro para o advogado continuam enfiando pelas frinchas da lei recursos ilimitados. No centro da roda, a Justiça, cega, samba a esmo. Numa mão, traz a balança desregulada. Noutra, a espada sem fio. E se pergunta: "Mas com que roupa?"


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