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NO PLANALTO
"Samba do Judiciário Doido", eis o hit do Carnaval
JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA
Carnaval ... Boa hora para
esmiuçar a partitura do
"Samba do Judiciário Doido". É o
hino dos blocos de sujos. Blocos
como o "Unidos do TRT de São
Paulo".
A dinâmica da música é amalucada. Ouve-se primeiro o batuque
do Ministério Público. Soa fortíssimo.
Segue-se o baticum da ala dos
réus. Coisa polifônica. Várias melodias simultâneas. Todas executadas numa mesma tonalidade
de improvável inocência.
Súbito, o som decresce. Até resumir-se a um esvoaçar de folhas.
Dezenas delas. Só o juiz Nicolalau
atravessou no pentagrama mais
de 40 recursos judiciais.
O timbre, agora "pianíssimo",
escapa à percepção geral. Ninguém se dá conta dos entraves
que transformam o processo numa sucessão de breques e "staccatos".
O samba parece não ter mais
fim. O acorde final desemboca
sempre num "ritornello". Os juízes são compelidos a reiniciar a
música. "Da capo."
O processo do TRT paulista encontra-se no STJ (Superior Tribunal de Justiça). Abaixo, detalhes
de sua tramitação:
1) a pedido do Ministério Público, o STJ instaurou, em 99, inquérito para apurar desvios de R$
169,5 milhões da obra do prédio
do TRT;
2) pouco depois, o STF (Supremo Tribunal Federal) concluiu
que a Constituição de 88 sepultara a regalia do "foro especial". Ex-autoridades, como o juiz Nicolalau, deveriam ser julgadas na primeira instância do Judiciário. O
inquérito desceu à 1ª Vara Federal de São Paulo;
3) em 2000, a procuradora federal Janice Ascari denunciou o juiz
Nicolalau e os empresários Luiz
Estevão (ex-senador), Fábio
Monteiro de Barros e José Eduardo Correa Ferraz. Acusou-os de
formação de quadrilha, peculato,
falsidade ideológica e corrupção
(ativa e passiva, conforme o caso).
4) em 2002, o juiz Cassem Maz-
loum condenou Nicolalau a três
anos de cana por tráfico de influência, uma acusação que não
constava da denúncia. Absolveu
os empresários;
5) havia evidências rijas contra
o ex-senador Estevão. Entre as
quais extratos bancários atestando a transferência de recursos para Nicolalau no exterior. Maz-
loum tachou as provas de "ilícitas";
6) pretextando inocência, Nicolalau recorreu de sua condenação. A procuradora Ascari também se insurgiu contra a sentença. Pediu a ampliação da pena de
Nicolalau e a revisão da absolvição dos empresários;
7) Nicolalau requereu o envio
do caso ao STJ. Alegou que, como
ex-juiz, tinha direito a "foro especial". Mazloum negou. Os autos
foram ao TRF (Tribunal Regional
Federal) de São Paulo;
8) receoso de que, longe da Presidência da República, pudesse
vir a ser importunado por promotores e juízes em início de carreira, FHC sancionou, no apagar
das luzes de seu governo, uma lei
controversa. Estendeu o "foro especial" às ex-autoridades;
9) baseando-se na nova lei, o
juiz Mazloum terminou por enviar, em 2003, os autos do TRT
paulista para o STJ. O Ministério
Público esperneou. A lei de FHC
não poderia retroagir para beneficiar Nicolalau, condenado seis
meses antes;
10) o STJ comprou a tese. E determinou a devolução da encrenca para São Paulo. Lá se vão quase três anos. E o processo permanece em Brasília. Graças a uma
sucessão de recursos ajuizados pelos advogados dos réus;
12) o STJ rejeitou, um a um, todos os recursos. Desqualificou-os
muitas vezes. Há "nítido propósito de protelar", anota uma sentença. Os recursos "somente visam adiar o julgamento", registra
outra. "É nítido o caráter protelatório dos embargos", lê-se numa
terceira;
13) dez dias atrás, Luiz Estevão
foi ao STF. Ressuscitando a tese
do "foro privilegiado" de Nicolalau, rogou a manutenção do processo no STJ;
14) em decisão liminar (provisória), o presidente do Supremo,
Nelson Jobim, deferiu o pedido do
ex-senador. Até segunda ordem, o
caso deve mesmo ser julgado pelo
STJ;
15) sacoleja daqui, rebola dali, o
debate volta ao início sem ter roçado o essencial: quando serão
julgados, afinal, os acusados? Pode-se imaginá-los, braços desenhando serpentes no ar, cantando: "Tanto riso, ohhh (!!!) quanta
alegria. Mais de mil palhaços no
salãooooo...";
16) o juiz Mazloum, aquele que
inocentara os empresários, foi arrancado do baile. Pilhado nos
grampos da Operação Anaconda,
descobriu-se que, sob sua jurisdição, aviavam-se, além de sentenças, negócios. Pegou dois anos de
cana;
17) beneficiado pelas regras da
prescrição -esquindô, esquindô-, Nicolalau já se livrou de
duas acusações: formação de
quadrilha e estelionato;
18) livrando-se das demais, pode pôr a mão em US$ 4 milhões.
Depositada em seu nome na Suíça, a grana encontra-se bloqueada, à espera de uma sentença que
faculte a repatriação;
19) além do processo em que divide o banco dos réus com Luiz
Estevão e Cia., Nicolalau é protagonista solitário de outro litígio.
Acusado de lavar o dinheiro, foi
sentenciado a cinco anos de prisão. Condenou-o, também nesse
caso, o juiz Cassem Mazloum;
20) Nicolalau recorreu da sentença. Dessa vez, porém, Maz-
loum mandou o processo para o
TRF de São Paulo, não para o
STJ. Curiosamente, Nicolalau
deixou barato. Não fez questão
do "foro privilegiado";
21) repetindo o seu colega Sepúlveda Pertence, Nelson Jobim, o
presidente do STF, disse na semana passada que o Judiciário virou
"arquipélago de ilhas de pouca
comunicação". O "congestionamento" de processos, vaticinou
ele, "levará à paralisação completa do sistema";
22) processos como o do TRT de
São Paulo cobrem Jobim de razão. O caso de Nicolalau, corrupto sem corruptores, segue em ritmo de "partido alto", marcado
pelo acompanhamento de palmas. Palmas para juiz dançar;
23) numa fase em que o Judiciário parece cantarolar Noel
-"Agora vou mudar minha conduta"-, réus com dinheiro para
o advogado continuam enfiando
pelas frinchas da lei recursos ilimitados. No centro da roda, a Justiça, cega, samba a esmo. Numa
mão, traz a balança desregulada.
Noutra, a espada sem fio. E se
pergunta: "Mas com que roupa?"
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