São Paulo, segunda-feira, 06 de março de 2000


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DIREITOS HUMANOS
Recém-eleito para comissão da OEA, ex-deputado acha que houve avanços no governo FHC
Bicudo vê atraso de 200 anos no Brasil

João Wainer - 26.mai.99/Folha Imagem
Bicudo, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA


KAMILA FERNANDES
da Agência Folha

Recém-eleito presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), o advogado, jornalista e ex-deputado pelo PT Hélio Bicudo, 77, disse estar otimista em relação à evolução dos direitos humanos no país, apesar de, na sua opinião, ainda existir um "atraso de 200 anos".
Em entrevista exclusiva concedida por telefone à Agência Folha, em Washington (EUA), Bicudo afirmou que uma das razões disso se deve ao fato de o assunto ser considerado prioritário pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, embora, segundo ele, ainda existam muitas falhas.
O advogado se destacou, durante o regime militar, como o principal nome que comandou o desmonte do "esquadrão da morte", grupo de extermínio que atuava na Baixada Fluminense, no Rio.
Leia trechos da entrevista.

Agência Folha - Não é contraditório falar de direitos humanos em um país em que a cultura da violência está enraizada, como mostram as chacinas em São Paulo e as guerras entre quadrilhas rivais do narcotráfico no Rio de Janeiro?
Hélio Bicudo -
A gente tem de ser um pouco otimista, porque, na verdade, os direitos humanos no Brasil, que até alguns anos atrás eram jogados na lata do lixo, estão recebendo uma atenção diferente. O próprio presidente Fernando Henrique disse que os direitos humanos são o fundamento do Estado democrático.

Agência Folha - Em janeiro, o governador do Rio, Anthony Garotinho (PDT), afirmou, sobre a morte de seis pessoas em uma favela: "Não houve chacina. Houve a morte de seis bandidos procurados pela polícia. É diferente quando morre uma pessoa de bem, um trabalhador". O que o sr. pensa da declaração?
Bicudo -
Acho que ele está completamente equivocado, porque pessoas foram eliminadas. Quem comete um crime deve ser julgado por um juiz imparcial, de acordo com a lei. Se essas pessoas eram bandidos, deveriam ser processadas e julgadas, tendo direito de defesa, e depois condenadas e levadas à prisão, se fosse o caso. Um governador de Estado, ao tomar essa posição, mostra que pouco entende de democracia.

Agência Folha - Na opinião do sr., por que a tortura continua sendo uma prática comum no país, mesmo após o fim do regime militar?
Bicudo -
É uma questão de o Ministério Público começar a atuar. Temos uma lei que penaliza a tortura, mas se sabe que ela continua existindo nas delegacias de polícia, nas atuações da PM, e não vejo processos instalados contra pessoas que tenham praticado a tortura. O Ministério Público deve exercer o controle externo da polícia, caso contrário, a Justiça vai continuar nas mãos da polícia.

Agência Folha - O sr. acha que a Lei da Mordaça (que proíbe autoridades de divulgar informações sobre processos em andamento que violem o sigilo legal, a intimidade, a imagem e a honra das pessoas), se implementada, vai prejudicar o trabalho da Justiça?
Bicudo -
Enquanto o Ministério Público apurava furto de pé-de-chinelo, ninguém estava ligando, podia falar o que quisesse, mas, na hora que sobe o nível da apuração, chegando aos poderosos, vem o estribo. Essa é a lei das classes privilegiadas, que não querem transparência na atuação da Justiça. É contra tudo o que se possa dizer de um Estado democrático, estabelece a desigualdade, porque, se você falar sobre a atuação de um ladrão de galinha, ninguém se importa. Agora, se você disser que fulano de tal se aproveitou da sua posição no Banco Central para fazer remessas de dinheiro para a sua conta no exterior, cai a casa. Quando fiz as investigações sobre o "esquadrão da morte", a maneira de eu me proteger fisicamente era dizendo o que estava acontecendo.

Agência Folha - Como está o processo do massacre em Eldorado do Carajás na comissão?
Bicudo -
Não posso mexer em processos do Brasil, mas ele está correndo. Quando presidi a Comissão de Direitos Humanos da Câmara, em 1997, fizemos um julgamento simbólico e, por unanimidade, o governo brasileiro foi condenado. Semana passada, o governo federal veio à comissão, no primeiro dia da minha gestão, dizendo que quer reconhecer a responsabilidade sobre todas as denúncias que estão aqui, cerca de 40, inclusive as de Eldorado, Corumbiara e Carandiru.

Agência Folha - Como o sr. vê a atuação do governo FHC na questão dos direitos humanos?
Bicudo -
A atuação do Fernando Henrique foi positiva, ainda que muita coisa não tenha saído do papel. Algumas coisas -como a passagem dos crimes de homicídio doloso, cometidos por PMs, da Justiça Militar para a Justiça comum, a definição do crime de tortura, a indenização às famílias dos desaparecidos políticos- são positivas. Quando o presidente diz que os direitos humanos são política de Estado e sem eles não existe um Estado democrático, está dando um recado geral. É claro que muito pouca coisa foi feita na área da reforma agrária, da criança e do adolescente, sobre o problema da prostituição infantil, do trabalho escravo, do trabalho infantil. Como estamos atrasados 200 anos em matéria de direitos humanos, isso não pode ser resolvido em um ou dois mandatos. Não se sabe nada sobre direitos humanos no Brasil.

Agência Folha - Qual o principal problema que o sr. deverá enfrentar na comissão?
Bicudo -
Existem alguns países da OEA que não estão interessados na manutenção do sistema de direitos humanos, porque ele foi instituído para proteger as pessoas contra os Estados, e, quando se percebe isso, os Estados começam a colocar obstáculos. Estamos lutando desde 99 contra isso. Felizmente, é a minoria.


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