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ENTREVISTA - LEÔNCIO MARTINS RODRIGUES
Crise trouxe os militares de volta ao palco político
Para cientista político, no entanto, atrito institucional entre governo e Forças Armadas é de pequena dimensão e não deve suscitar comparações com 1964
LEANDRO BEGUOCI
DA REPORTAGEM LOCAL
A CRISE institucional entre governo e Forças
Armadas é de pequena dimensão, mas
trouxe, como resultado, a volta dos militares à cena política brasileira, afirma o cientista político Leôncio Martins Rodrigues, 72, professor titular aposentado da USP e da Unicamp. Ele diz
que, apesar de semelhanças superficiais, o momento
atual não pode ser comparado com a revolta dos sargentos e fuzileiros navais que antecederam a queda de
João Goulart, em 1964. Havia outros elementos que
configuravam um quadro de guerra civil no país, diz
Leôncio. "As semelhanças estão na quebra da hierarquia, nos presidentes indecisos entre punir e premiar,
na tolerância inicial com o movimento dos sargentos e
no reaparecimento do poder militar na política", diz.
Para Leôncio, o presidente
Luiz Inácio Lula da Silva agiu
mais como político na crise, ao
indicar ministros ex-sindicalistas para negociar com controladores de vôo -já que estes fariam concessões que dificilmente a Aeronáutica faria.
Sobre a participação das Forças Armadas na política, marcada pela cultura autoritária e
de intervencionismo, Leôncio
afirma que a crise "trouxe os
militares para a política". Ele
ressalta que a crença dos regimes democráticos na América
Latina está abalada devido ao
reaparecimento de um populismo autoritário. "Trata-se de
um tipo de autoritarismo "civil",
populista de "esquerda'", mas
que não é semelhante ao dos regimes militares instalados na
década de 1960 na região.
FOLHA - O senhor vê algum paralelo entre a atuação do governo Lula
nesta crise e a gestão de João Goulart, em 1964, com os marinheiros?
Há algum paralelo nesta crise com
outras que o Brasil já viveu?
LEÔNCIO MARTINS RODRIGUES - Algumas semelhanças superficiais sempre existem. De outro
modo, a pergunta nem apareceria. As semelhanças estão na
quebra da hierarquia, na existência de presidentes indecisos
entre punir e premiar, na tolerância inicial com o movimento
dos sargentos e no reaparecimento do poder militar na política brasileira. Mas a dimensão
dos atos de rebeldia dos sargentos e fuzileiros navais na época
de Jango não tem comparação
com a "crise" atual, que não
chega exatamente a ser acontecimento que abale os alicerces
da República. A rebelião dos
marinheiros, na época de Jango, se conectava com outras
forças políticas da sociedade
brasileira dividida entre dois
projetos políticos antagônicos.
Era uma situação que prenunciava a guerra civil. Nada disso
existe hoje. Lula, os petistas e
os ex-sindicalistas que chegaram ao poder podem ter aspirações continuístas, mas não têm
um projeto revolucionário.
FOLHA - As Forças Armadas têm
um histórico de atuação política no
Brasil. Com a redemocratização, se
voltaram aos assuntos internos. Este episódio mostra que ainda têm
peso na política brasileira?
LEÔNCIO - O Brasil e outros países latino-americanos, como
sabemos, têm uma longa tradição de cultura autoritária e de
intervencionismo dos militares
na política. No momento, seria
possível alinhar tanto argumentos para dizer que chegamos a um ponto em que está
encerrada a era das intervenções militares na política nacional como para dizer que essa
eventualidade não aparecerá
mais no horizonte. Em começos da década de 1990, o cientista político Samuel Huntington escreveu um livro denominado "A Terceira Onda". A tese
era de que o mundo ocidental
(no sentido amplo) entrava numa terceira onda democrática,
com o fim do franquismo, do
salazarismo, das ditaduras comunistas européias e dos regimes militares latino-americano. Hoje, com o reaparecimento de um populismo de tipo autoritário na América Latina, a
crença na consolidação dos regimes democráticos nessa região está abalada. É certo que,
agora, se trata de um tipo de autoritarismo "civil", populista de
"esquerda", que não se assemelha aos regimes autoritários
instalados na década de 1960
quando as Forças Armadas, como instituição, assumiram o
poder. Ocorre que, apesar das
diferenças, todo enfraquecimento do regime democrático
representativo, por maior que
sejam suas deficiências, traz
para a arena política a instituição militar. Acabamos de ver
um exemplo nessa recente crise: o presidente Lula simplesmente capitulou ante a pressão
da Aeronáutica, legitimada pelo apoio das outras armas. Esse
talvez seja o efeito mais negativo da incompetência governamental no trato do problema
dos aeroportos. No final, trouxe
os militares para a política.
FOLHA - O senhor acha que as Forças Armadas se consideram as fiadoras da democracia brasileira?
LEÔNCIO - No momento, parecem que estão mortas as elaborações ideológicas que desembocavam na tese da fraqueza da
sociedade civil e na idéia das
Forças Armadas como fiadoras
da ordem e portadoras de um
projeto de desenvolvimento
que os políticos não seriam capazes de promover. Mas se movimentos "de massas" que correm por fora dos canais institucionais se avolumarem e o desprestígio da classe política continuar, a hipótese de um ressurgimento do poder militar não
pode ser jogada na lata de lixo
da História. Como isso pode
acontecer exatamente não se
pode prever. Mas sabemos que,
sempre, entre a liberdade e a
ordem, essa última acaba por
prevalecer. Muitos exemplos
mostram que as sociedades podem sobreviver sem liberdade,
mas não sem ordem.
FOLHA - Uma das constantes na
história brasileira foi a conciliação.
Uma das poucas instituições a negar
a conciliação, à exceção da redemocratização, foram as Forças Armadas. O sindicalismo é conciliador?
LEÔNCIO - A idéia da reconciliação na nossa história é algo que
necessita de uma definição
mais precisa. Na ditadura do
Estado Novo de Getúlio, os
opositores foram para a cadeia
ou para o exílio. O mesmo
aconteceu durante os regimes
militares que sucederam à queda de João Goulart. É certo que,
em 1980, houve a anistia. Mas
isso aconteceu em todos os países latino-americanos, quer dizer, não é uma singularidade
nossa. Quanto ao sindicalismo,
eu concordaria que o sindicalismo, em toda parte, não é revolucionário, o que não quer dizer
que seja conciliador. No nosso
caso, entendo que o sindicalismo é, antes de tudo, prudente.
Tem baixo poder de fogo, vive
das verbas obtidas compulsoriamente graças ao modelo corporativo e busca ampliar sua
influência e renda por vias burocráticas, por meio de alianças
com parcelas da classe política
e outras instâncias do poder.
Por outro lado, as Forças Armadas freqüentemente sabem
ser conciliadoras. A "reabertura política" de 1980 é um exemplo.
FOLHA - Qual a dimensão desta crise institucional? É possível prever
mais conflitos entre governo e militares?
LEÔNCIO - Entendo que se trata
de uma crise de pequena dimensão. O presidente Lula
abandonou os controladores,
cedeu à alta oficialidade da Aeronáutica, postergou a "desmilitarização". No final, demonstrou claramente que ficou do
lado da "ordem". É possível,
contudo, que novos problemas
apareçam mas dificilmente eles
oporão o presidente às Forças
Armadas. Pelo contrário. Devemos esperar novos mimos presidenciais ao poder militar porque Lula sabe avaliar perfeitamente e com muito pragmatismo a relação de forças. Aguardemos para ver quem substituirá o ministro Waldir Pires.
FOLHA - Por que o governo tende a
ficar parado em situações de crise?
LEÔNCIO - Um dos fatores que
emperra o governo é o grande
número de ministérios dividido entre muitos partidos e concedidos por razões políticas. A
rotatividade na ocupação dos
ministérios é elevada. Os indicados ocupam postos para os
quais não se sabe exatamente a
qualificação. Há também um
número elevado de conselhos,
comissões e outros órgãos que,
para funcionar adeqüadamente, necessitam da presença de
ministros e/ou seus representantes que nem sempre têm vagas em suas agendas. Sem subestimar as dificuldades de
conduzir adeqüadamente a
máquina burocrática brasileira, há o fato salientado por todos: o presidente, mais do que
administrar, prefere viajar,
sentir o "cheiro do povo", ir para o palanque, inaugurar obras
e tudo o mais que aumente seu
cacife eleitoral.
FOLHA - O governo colocou o ministro do Trabalho e, depois, do Planejamento (ambos egressos do sindicalismo) para negociar com os sargentos militares. É correto dizer que
o governo usou uma lógica sindicalista nesta negociação?
LEÔNCIO - A idéia de o presidente ter atuado como sindicalista
encontra base no passado de
Lula. Mas convém salientar
que, no caso dos controladores,
o presidente estaria mais próximo do papel de patrão negociando com seus empregados.
Minha impressão é de que o
presidente Lula agiu mais como político. Do sindicalismo,
Lula está afastado há mais de
20 anos. Ademais, a atividade
política nas democracias é também uma permanente negociação, conchavos, acordos, ameaças e concessões. Julgo que Lula indicou ministros ex-sindicalistas para negociar porque
achou que eles seriam mais
competentes do que os militares na missão de pôr fim ao movimento, fazendo concessões
que os oficiais da Aeronáutica
dificilmente fariam. No caso da
negociação conduzida pelo ministro Paulo Bernardo, do ponto de vista imediato, as concessões aos grevistas permitiram
pôr fim à greve, mas não levaram em conta as reações dos
militares e as conseqüências
político-institucionais do atropelo das normas e valores que
regem as Forças Armadas. O
resultado é que o presidente
Lula teve que voltar atrás logo
em seguida.
FOLHA - Como o sr. avalia a atuação do presidente Lula no episódio?
LEÔNCIO - O presidente, altos
membros de seu ministério e o
próprio ministro da Aeronáutica saíram mais do que chamuscados do episódio. Recapitulemos: inicialmente, o presidente, a bordo da aeronave presidencial, manda um ministro
importante de seu governo negociar com os controladores,
fazer promessas, ceder e prometer muito mais do que poderia, inclusive de que não haveria punições. No final, o presidente conseguiu descontentar
a todos e reforçar a impressão
de que, além de mau administrador, não é um interlocutor
confiável. Mas é preciso reconhecer que -circunscrevendo
a avaliação da atuação do presidente apenas à situação de pandemônio instalada nos aeroportos- o presidente tinha que
agir rápido, de longe e com "a
faca no pescoço", para plagiar o
ministro Paulo Bernardo. O
grande erro foi deixar a situação dos aeroportos chegar aonde chegou. Além disso, de algum modo, o governo passava
aos controladores de vôo a
crença de que, pressionado, o
governo cederia.
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