São Paulo, domingo, 7 de junho de 1998

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ELIO GASPARI
Betinho cassado

No dia 18 de agosto do ano passado, o deputado Sérgio Arouca esteve com FFHH e lhe deu uma boa idéia: que o governo condecorasse Betinho com a Ordem Nacional do Mérito. Seria uma homenagem póstuma a um brasileiro que lutou por muitas coisas na vida, menos por patacas de Brasília.
FFHH achou a idéia ótima e avisou que ia tomar as providências. Quase agradeceu.
Há duas semanas, saiu a lista das pessoas a quem o governo resolveu dar as condecorações. Alguns, como o economista Edward Amadeo, ganharam-na pelo mérito de estarem no ministério, pois assim funciona a rotina do crachá. Outros, como o senador Romero Jucá, por cortesia política. Um senhor de nome Chu Tung, por razões que não se conhecem. E Betinho? Nada.

O bonde de Itamar

O deputado Newton Cardoso fez saber ao senador José Sarney que retira a sua candidatura ao governo de Minas Gerais, se ele resolver botar o bloco na rua, disputando a Presidência da República.
É difícil que Sarney se lance, mas a sucessão mineira será a mais divertida do ano. Nela já aconteceram as seguintes maravilhas:
FFHH pôs a cabeça do governador tucano Eduardo Azeredo à venda, em troca da neutralidade do ex-presidente Itamar Franco durante a campanha.
Itamar poderá comprar a cabeça de Azeredo, mas não haverá de pagá-la. Ficará num estado de interessante neutralidade contra. Fará isso não só porque está zangado com FFHH, mas também porque a história segundo a qual mineiro compra bonde é lenda.
Newton Cardoso, que trabalha com outra faixa de compromissos, faz qualquer acordo, mas quer a sua contrapartida em mercadoria: cargos no ramo dos transportes.

O dever de Gustavo

Na semana passada, a ekipekonômica teve uma reunião com interlocutores preocupados com o congelamento social do governo.
Cada lado disse aquilo que era previsível, mas o presidente do Banco Central, Gustavo Franco, com a audácia que o caracteriza, informou mais ou menos o seguinte:
-Nós fizemos o nosso dever de casa, e vocês não conseguiram tornar mais produtivos os recursos da área social.
Afora que essa conversa de dever de casa é coisa de quem vive com saudades dos seus oito anos e da "aurora de minha vida, minha infância querida". São os seguintes os números produzidos pela ekipe da qual Franco é o mais audacioso personagem:
A dívida do governo federal (só o federal) era de R$ 5,8 bilhões em 1994. Por conta da taxa de juros que engorda gatos gordos globais, a dívida deste ano está projetada em R$ 30 bilhões. (Em números constantes, algo como R$ 22 bilhões.) Cresceu 3,5 vezes.
A diferença entre a dívida que recebeu e a que produziu corresponde ao total das despesas de todos os serviços federais de educação e saúde neste ano.
Pior: o governo conseguiu equilibrar suas despesas. Gasta menos do que arrecada. O déficit público equivalente a 7% do PIB é produto da taxa de juros da ekipekonômica.
Deixaram o Brasil na situação de um dono de armazém que ganha dinheiro com o negócio, mas arrisca falir porque não consegue pagar o que deve ao banco. E ainda falam em dever de casa.

Uma ameaça da foz do crime

Formou-se um enclave de delinquência na região de Foz do Iguaçu. Aquilo que parece um formigueiro de senhoras com sacolas fazendo compras para reforçar o orçamento doméstico tornou-se um santuário de contrabandistas, traficantes de drogas e de dólares. Pelas estimativas da Secretaria da Receita Federal, lavam-se na região US$ 7,5 bilhões por ano. Pelas contas da revista americana "Forbes", há ali um comércio de US$ 1 bilhão por mês, transformando o eixo Foz do Iguaçu-Ciudad del Este num dos maiores entrepostos comerciais do mundo, talvez o único movido a contrabando.
Números desse tamanho pouco têm a ver com as sacoleiras que circulam pelo Brasil, comprando roupas ou badulaques para revender nas cidades em que vivem. O que há ali hoje é o maior foco de baderna e criminalidade instalado no país. Foi tão longe a contravenção que funciona em Foz do Iguaçu uma Associação Brasileira das Sacoleiras e dos Laranjas. Denominam-se laranjas as pessoas que fingem ir como turistas a Ciudad del Este, no Paraguai, onde têm direito a comprar US$ 150 em mercadorias. São prepostos de contrabandistas, usados apenas para trazer muambas de valor muitas vezes superior ao limite legal.
Boa parte desses negócios vem do contrabando de cigarros e bebidas (mercadorias que estão fora do limite da isenção). Não se pode dizer que as grandes empresas fabricantes de cerveja e cigarros sejam coniventes com esse contrabando, mas elas também não são capazes de exibir um registro de rigor fiscal destinado a impedir que seus produtos se transformem num fluxo de muamba.
Só no mundo dos cigarros, a Receita Federal já apreendeu -e estocou- uma quantidade de maços suficiente para abastecer 1,2 milhão de fumantes por um ano inteiro. É possível que algo como 20% do consumo de cigarros brasileiro esteja abastecido por essa rede de contrabando. Isso custa ao Tesouro um ervanário equivalente aos R$ 450 milhões que o Banco do Nordeste promete emprestar ao lavradores e fazendeiros afetados pela seca.
Essa situação e esses números são coisas relativamente velhas, mas nos últimos meses as quadrilhas que controlam a delinquência de Foz do Iguaçu deram sinais de que se julgam mais fortes que o Estado brasileiro. Diante de um aperto na fiscalização dos ônibus, os comerciantes paraguaios reagiram fechando por quase uma semana a ponte da Amizade. Num lance menos visível, radicalizaram feio.
No dia 24 de abril, o chefe da Alfândega de Foz do Iguaçu ia em seu carro quando lhe dispararam oito tiros. Erraram (ou quiseram errar) todos. Corbari, um catarinense com três anos de serviço público, rejeitou a possibilidade de ser transferido para outra cidade e disse ao secretário da Receita, Everardo Maciel, que preferia continuar no posto. Dias depois recebeu a carta que vai publicada no quadro abaixo. Não era brincadeira, pois há poucos dias a casa de seus pais, no interior de Santa Catarina, foi varejada por intrusos. (Maciel decidiu tirá-lo momentaneamente da região, mantendo-o no cargo.) Pior: um delegado especial da Polícia Federal que está investigando o caso também foi ameaçado.
Os bandidos de Foz do Iguaçu compraram uma briga com o Estado brasileiro. Será um prazer acompanhar a sua capacidade de reprimir esse tipo de delinquentes. Até agora a Receita reagiu aprofundando a fiscalização, numa ofensiva que mobilizou 340 pessoas. A Polícia Federal acredita que já puxou o fio de uma meada que termina em poderosos comerciantes, passando por funcionários da Receita e até mesmo por policiais. Supõe ter identificado os autores dos tiros contra Corbari e crê que um dos bandidos foi assassinado na semana passada, numa queima de arquivo.
Há um ano, os poderosos de Roraima acharam que poderiam resolver suas pendências com a Viúva matando o chefe do escritório da Receita em Boa Vista. O secretário Everardo Maciel anunciou que iria a forra, baixou na cidade, trabalhou com a Polícia Federal e encarcerou-se a quadrilha, da qual fazia parte o segundo homem da Polícia Civil no Estado. Agora acaba de ser preso um dos maiores empresários de Roraima, Paulo Barrudada.

A voz da bandidagem

Este é o texto da carta recebida pelo chefe da Alfândega de Foz do Iguaçu, Jackson Corbari. Vão respeitadas as ênfases do autor.
"Você é mesmo um idiota total, louco varrido, irresponsável e filho
da puta.
Você pode até brincar de herói dentro desse seu deslumbramento adolescente, mas é uma pena que sua brincadeira custará caríssimo.
Meu amigo, você VAAI MOORRER!!!!!!
Não quis entender o recado anterior (escrito e cumprido).
Então explico pela última vez. Se não for você, será sua mulher, seu pai, sua mãe, ou algum ente querido seu.
NÃO ESTOU BRINCANDO!!!!
Você pode até achar que está seguro, mas é uma questão de honra para mim.
Eu vou mostrar que te pegarei, mesmo que você esteja protegido pela segurança do presidente dos Estados Unidos.
Seu vagabundo, agora estou com mais RAIVA de você, porque VOCÊ está querendo usar a instituição Receita Federal para se promover.
Embora qualquer um que fizesse o que você fez morreria também, mesmo que apoiado pelo diabo.
Só você sabe a cagada que fez.
Esclareço, outrossim, que a dra. Maria Angélica (chefe da Delegacia da Receita em Foz do Iguaçu) não é o alvo, pois saiu logo atrás de você e foi para casa tranquilamente.
Deus está do meu lado, pois Ele sabe que cumpro a minha parte."

O doutor Rennó e seu terno sem bolso

Já que o governo vai mudar a composição do Conselho da Petrobrás, mantendo o doutor Joel Rennó na presidência da empresa, bem que se poderia incluir um item na agenda dos novos petrocratas. Trata-se de refletir sobre o programa de perfuração e produção de óleo na bacia de Campos. Ele soma contratos de quase US$ 2 bilhões nas mãos de uma só empresa, a Marítima. Não há companhia no mundo correndo risco tão extravagante.
Duas unidades de perfuração, contratadas no ano passado para entrega em 18 meses, estão sendo montadas no Canadá. Quem conhece o andamento das obras garante que mal se cortou o aço. Uma plataforma semi-submersível, de nome P-36 (ex-Spirit of Columbus) destinada à área de Roncador, foi negociada por mais de um ano e contratada em 1997, sem concorrência. Valia a pena, à luz das excelsas virtudes do equipamento e da proposta. Coisa de US$ 400 milhões. Agora se viu que os turbo-geradores da plataforma estão abaixo do que se precisa.
Ou encomendaram sem saber o que queriam ou contrataram sem saber o que compravam. A correção dessa insuficiência e de outros incrementos pode custar mais de US$ 80 milhões. Coisa do PetroCaos do doutor Rennó. Os negócios são bons quando são contratados, mas como Asmodeu mora nos detalhes, as contas não fecham na hora de montar os equipamentos. Muito menos os prazos. A P-36 deveria estar em operações no ano que vem.
Noutro lance, a PetroCaos abriu uma concorrência para comprar outra unidade de produção (equipamento que tira o petróleo das rochas do fundo do mar e o embarca nos navios). Correu tudo bem, mas se descobriu que entre as propostas viera uma unidade de características diversas. Chamava-se DB-100 e achou-se que ela poderia ser útil no campo de Marlim Sul. Coisa de US$ 195 milhões. A unidade foi mandada para um estaleiro em Cingapura, onde deveria passar por alterações rotineiras. Pois agora descobriu-se que os motores do equipamento não têm a força necessária para fazer o serviço contratado. Solução: tomar mais US$ 40 milhões à Viúva para pagar as adaptações.
Se os fornecedores do doutor Rennó na vida privada fizessem com ele aquilo que ele permite que se faça com as compras públicas da Petrobrás, aconteceriam coisas assim:
Compraria um apartamento na Lagoa. Ao entrar, descobriria que o único vaso sanitário do edifício está na casa do porteiro.
Iria a uma loja de roupas, sairia com um terno e, ao vesti-lo, veria que não tinha bolsos. Nem aquele onde se põe a carteira.
Compraria um telefone que chama, mas não atende, lata de cerveja que precisa de abridor, carro sem rodas e palito usado.

Ruth está certa

Ruth Cardoso está certa e faz bem à inteligência nacional que ela tenha dito que os saques são um fenômeno antigo e rotineiro nas secas do Nordeste. É bom porque tira o problema de baixo do tapete. Finge-se que os saques são uma novidade para assustar quem tem medo de assombração e para jogar a culpa nos adversários políticos da ocasião.
Aos fatos.
A primeira referência aos saques é da Fala do Trono de 1879, de d. Pedro 2º. Ele saudou o fim da seca de 77 e se referiu à "enérgica repressão do crime" com a qual se conseguiu que fosse "mantida a segurança individual e respeitada a propriedade".
É dessa seca que sai o primeiro retirante-saqueador da literatura nacional, o coronel Manuel de Freitas, do romance "A Fome", de Rodolfo Teófilo, um farmacêutico cearense, personagem fantástico. A primeira edição desse livro é de 1890.
Em 1970, em plena ditadura, deram-se saques em diversas cidades do Nordeste. A feira de Arapiraca foi saqueada, e o poeta Curió das Alagoas ensina: "Já viu redemoinho? É igual".
Na seca de 1979, quando ainda havia tucanos no exílio, deram-se pelo menos 20 saques no Nordeste. No dia em que o ministro do Interior desembarcou na cidade de Canindé (CE), houve saque em Morada Nova. Não existia MST (que hoje, sem dúvida, saqueia onde pode).
Naquele tempo se dizia que os saqueadores eram insuflados por gente da oposição. Gente como o professor Fernando Henrique Cardoso, que hoje fala em "indústria da fome".

Vance fez pior

Em algum lugar de Brasília deve haver um funcionário deprimido, julgando-se o mais incapaz dos ineptos. É o cidadão que inadvertidamente passou adiante, para divulgação, os documentos secretos das negociações dos presidentes do Peru e do Equador em torno da área de litígio de fronteira que já levou os dois países à guerra.
Para melhorar o estado de sua alma, vale lembrar que um dos mais competentes negociadores da diplomacia americana, o secretário de Estado Cyrus Vance, fez coisa pior. Visitou o Brasil em novembro de 1977 e, depois de uma reunião com o presidente Ernesto Geisel, esqueceu na mesinha ao lado do sofá uma pasta de papel com nove folhas de documentos.
Eram as anotações mais sucintas e secretas de seus itens de conversação com o Itamaraty. Lembravam que se devia "entrar duro" na questão nuclear (à época o Brasil desenvolvia um projeto megalomaníaco com a Alemanha que poderia resultar, entre outras coisas, na fabricação de uma bomba atômica). Trazia também uma lista de pessoas que tinham sido torturadas.
Como os diplomatas são pessoas bem educadas, quem sabe da história jura que a pasta foi devolvida a Vance sem ser aberta.

Serjão avisou

Fica aqui o registro de que no final de março o ministro Sérgio Motta tentou mostrar a FFHH que sua posição nas pesquisas não era tão boa quanto parecia. Sustentava que a contração econômica estava afastando a classe média do governo. Como nunca deixou de dizer que, sem crescimento econômico, FFHH acabaria ofendendo os eleitores, não teve crédito.
Serjão xingava, gritava e atropelava, mas ao final dizia que a estabilidade econômica haveria de segurar a reeleição.



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