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São Paulo, segunda-feira, 07 de julho de 2003

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REFORMA EM DEBATE

Para Raul Velloso, desequilíbrio vem de benefícios assistenciais, cujos valores deveriam ser reduzidos

INSS não tem déficit, afirma economista

CLÁUDIA TREVISAN
EDITORA-ADJUNTA DE BRASIL

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Apesar de ausente da reforma da Previdência, o pagamento de aposentadorias e pensões aos trabalhadores do setor privado abocanha uma parcela cada vez maior da estrutura de gastos da União, ao mesmo tempo em que encolhe o percentual destinado a custeio e investimentos.
O economista Raul Velloso, especialista em contas públicas, afirma que esse movimento reflete a opção por um Estado assistencialista, que teria sido realizada pela Constituição de 88. Segundo ele, essa escolha fica clara nos dados sobre a despesa não-financeira da União: entre 1987 e 2001, saltou de 18,8% para 36,5% a parcela destinada ao INSS. No mesmo período, o percentual relativo a custeio e investimentos caiu de 50,7% para 17,4%.
Na origem da expansão dos gastos do INSS, estão os benefícios sociais concedidos a partir da Constituição, como a aposentadoria rural e a elevação do piso das aposentadorias para um salário mínimo. Na opinião de Velloso, esses benefícios não têm caráter previdenciário, mas assistencial, e deveriam ser excluídos das contas da Previdência.
Velloso vai além e propõe a redução no número desses benefícios e o consequente aumento de investimentos em educação e infra-estrutura. "O cobertor é curto", afirma o economista, que foi secretário para Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento de 1985 a 1991.
A seguir, os principais trechos da entrevista de Velloso à Folha:

Folha - Afinal, existe ou não déficit no INSS?
Raul Velloso -
Nós temos de separar o que é Assistência Social do que é Previdência. Se eu mantenho os dois misturados a impressão que dá é que nós temos um grande déficit previdenciário no Brasil, no INSS, e isso é mentira.
Se separar, eu vou poder adotar soluções que são específicas para problemas de Assistência Social, que não são os mesmos problemas de Previdência.

Folha - Então não há déficit?
Velloso -
Não tem, por quê? Pensa comigo. Primeiro porque a gente cobra, praticamente, a maior contribuição previdenciária do mundo, de 30%. É a segunda, pelos dados do Banco Mundial. Se extraio 30% da folha de pagamento do setor formal, significa que estou tirando receita para esse sistema em um grande volume. Só se nosso setor formal fosse minúsculo eu estaria com a receita pequena, e não é o caso. Ele é pequeno, mas não é minúsculo.
Em segundo lugar, a população do Brasil é relativamente jovem. Então, como é que há um rombo na Previdência? Se eu tenho muita receita e menos procura por benefício eu não deveria ter déficit. Mas os números do INSS mostram déficits elevados e crescentes. Tem alguma coisa errada.

Folha - E de onde vem o desequilíbrio?
Velloso -
O desequilíbrio não é da Previdência, porque há a mistura de benefícios assistenciais com os benefícios previdenciários, que na Europa ninguém faz, nem nos Estados Unidos. Lá eles separam Previdência Social de Assistência Social.

Folha - Qual é a diferença?
Velloso -
Na Previdência, o beneficiário contribui e na assistência, não. A assistência é uma obrigação do Estado de dar às camadas menos favorecidas da população aquilo que elas não conseguem acumular, que é uma aposentadoria mínima. Por que eu digo que é complicado misturar? Porque você fica falando só em déficit e, eventualmente, adota uma solução para a Previdência e acha que resolveu o problema todo. Aí, de repente, no mês seguinte vem a notícia de que o déficit da Previdência aumentou. Que diabo é esse? Você não tinha resolvido?

Folha - Mas separar a assistência também não resolve a questão fiscal, não é?
Velloso -
Não, mas resolve...

Folha - Ou seja, vamos saber que o déficit é com a assistência e não da Previdência, mas ele vai continuar a existindo.
Velloso -
Sim, mas aí não é desequilíbrio, porque eu não tenho receita específica para isso. Se não tenho contribuição, não posso falar em déficit. Não tem sentido você falar em déficit, porque déficit é a diferença entre contribuição e benefício. Se é uma obrigação do Estado, o que importa é saber se eu tenho recursos orçamentários para isso ou não.

Folha - E tem?
Velloso -
Aí a questão não se coloca em termos de déficit, mas em saber o seguinte: é muito grande essa despesa comparada com o total? Qual é o peso dela? Isso mudou nos últimos anos? Eu não tenho dados de 87 completos [desagregados], mas presumo, pelos indícios que eu tenho, que os gastos assistenciais passaram de uns 5%, 6% do total a 20% do total da despesa. Esse é o item que mais cresceu na pauta. Você me pergunta: mas por que você desconfiou, foi atrás e viu isso? Porque a Constituição mandou fazer isso.
Ela mandou ampliar o alcance das aposentadorias rurais, que antes não alcançavam todo mundo. Então, da noite para o dia aumentou. A Constituição disse ainda que nenhum benefício poderia ser menor do que um salário mínimo. Antes, havia benefícios de meio salário mínimo.
A Constituição criou vários programas novos e universalizou o atendimento médico.
Mas se fizeram isso, não deveriam ter criado fontes de receita? Deveriam e criaram. Carimbaram as contribuições sociais que, depois, foram engrossadas pela CPMF [Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira]. O problema é que erraram na dose, porque criaram tantas fontes, que acabaram abocanhando quase todo o Orçamento.
Esqueceram de verificar que o cobertor é curto. Por mais que eu espremesse os investimentos, o pessoal ativo, eu ia ter outras despesas subindo, como a Previdência dos servidores. Como o Orçamento é um só, não adianta carimbar porque o governo vai lá e encontra um jeito de tirar de onde sobra e botar onde falta.

Folha - Qual a opção que se fez na Constituição de 88 em relação à função do Estado brasileiro?
Velloso -
É a Assistência Social. Você fez essa opção na Constituição e foi mais longe. Você criou até receitas, além do que você poderia, razoavelmente, fazer.

Folha - Em detrimento do quê? Velloso - Infra-estrutura, pessoal e Previdência dos servidores. Mas, só que, ao mesmo tempo, a mesma Constituição abriu o janelão do Regime Jurídico Único, que permitiu que pulasse gente do INSS para o regime do servidor, que paga aposentadoria integral. Então, ele aumentou outro item sem dar a fonte. O que o ministério está fazendo aqui? Pega parte da receita que iria destinar à Assistência Social e paga os servidores aposentados. As pessoas que dizem que não há déficit na Seguridade Social se esquecem que há o pessoal ativo, há outros gastos, há investimentos, está certo? Quando soma tudo isso, não dá.

Folha - Mas em um país tão desigual como Brasil, essa opção pela Assistência Social não é legítima?
Velloso -
Não, pelo seguinte: porque tem setor na miséria e a falta de cidadania. Acho que tem de ser equilibrado, que você tem de fazer assistência e tem de investir também naquilo que vai tirar a pessoa da assistência. Estou mais preocupado em como é que eu tiro o sujeito da folha de assistência lá na frente.
Eu tenho que cuidar das crianças, tenho que cuidar dos adultos, alfabetizar, dar a ele condições de cidadania, entendeu? Esse é um ponto crucial. Em vez de eu pegar todo o meu dinheiro, esperar o sujeito ficar inútil e bancá-lo, eu vou botar um pouco no inútil- desculpe a expressão inútil, você entende o que eu estou querendo dizer- e, no entanto, evitar que surjam novos inúteis, senão eu vou perpetuar a miséria e a desgraça sempre. É ou não é?

Folha - Esse investimento em Assistência Social não teve impacto sobre os números de pobreza?
Velloso -
Teve pelo seguinte: porque na hora que você dá um aumento, na hora que você amplia as medidas de pobreza, os indicadores melhoram, claro. Na hora que eu passo a pagar um salário mínimo para as pessoas que ganhavam menos de um salário mínimo, melhorei, não melhorei? Mas perpetuei ali, ele não vai sair do salário mínimo nunca mais.

Folha - O sr. defende o aumento de investimentos em outras áreas?
Velloso -
A escolha é dura porque não estou escolhendo só entre assistência e educação. Eu também tenho de fazer infra-estrutura, porque é difícil você entrar em áreas que exigem investimentos maciços e nas quais não há um ambiente regulatório amigável. Veja se um sujeito que investe em distribuição de energia elétrica no mundo se disporia hoje a vir para o Brasil. Nunca mais vai vir ninguém. Achar que o setor privado vai ocupar todos os setores de infra-estrutura é um sonho de uma noite de verão.

Folha - Ou seja, a sociedade brasileira tem de fazer uma opção?
Velloso -
Isso, essa opção não pode ser só Assistência Social. Um país tão carente de educação, saúde e infra-estrutura não se pode dar ao luxo de concentrar recursos em Assistência Social.

Folha - Com o sr. diz que o cobertor é curto, seria necessário então cortar esses gastos assistenciais?
Velloso -
Isso é o correto, é necessário tirar da Assistência Social e dar mais para a educação e infra-estrutura. Mas antes de fazer isso, que é difícil politicamente, eu tentaria melhorar a eficácia desse gasto, para atender as mesmas pessoas com menos dinheiro.

Folha - O gasto que o sr. considera assistencial corresponde a 20% da despesa. Que percentual seria razoável em sua opinião?
Velloso -
Não sei, só sei que é menos. O razoável é que os outros itens subam, logo esse tem que cair, porque é o que mais subiu.


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