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São Paulo, segunda-feira, 07 de julho de 2003

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ENTREVISTA DA 2ª

SONIA ROCHA

Economista analisa mudança de perfil de pobres e afirma que país "patina" no combate à pobreza

"Chamada da fome foi equivocada"

MARTA SALOMON
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A economista Sonia Rocha foi uma das primeiras a detectar que a redução da pobreza produzida pelo Plano Real se esgotara no fim de 96 e o número de pobres voltara a crescer nas regiões metropolitanas, depois de um efeito combinado da estabilidade de preços, principalmente dos alimentos, e do aumento do salário mínimo de 42% no ano anterior. Na época, causou espanto.
No livro "Pobreza no Brasil -Afinal de que se trata?", lançado recentemente, ela avança na mudança do perfil dos pobres brasileiros. Numa espécie de heresia aos ouvidos da política social de Lula, centrada inicialmente no combate à fome, Rocha diz que a maioria dos pobres não é faminta, tem TV em cores e geladeira em casa, ainda que lhes falte esgoto. "A chamada da fome foi equivocada, sem dúvida", diz.
A economista não arrisca um palpite sobre como vai se comportar a pobreza no mandato de Lula, mas torce por uma recuperação do nível de emprego até o fim do ano, depois do ajuste que marcou o primeiro semestre do governo, à custa de mais desemprego e da queda na renda dos trabalhadores.
"A gente está patinando", resume. "Se melhora um pouquinho ou se piora um pouquinho, estamos com contingentes muito grandes de pobres, e certamente nesse período, como houve aumento da inflação, deve ter havido aumento da desigualdade. Então é o pior panorama que se pode imaginar: pobreza nos mesmos patamares e o agravamento da nossa chaga nacional que é a desigualdade de renda", conclui.
Defensora da tese de que o gasto social não precisa crescer, mas sua qualidade precisa melhorar, a coordenadora de projetos do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas defende a polêmica revisão do financiamento das universidades federais depois da reforma da Previdência. A seguir a entrevista feita por telefone na última quinta-feira.

Folha - Existe um novo perfil de pobre no Brasil?
Sonia Rocha -
As características do pobre brasileiro, tal como a sociedade brasileira, vêm se modificando. Considerando os pobres como 35% da população brasileira, podemos dizer que esse contingente de pessoas tem um tipo de vida completamente diverso dos pobres dos anos 70. Naquela década, o país era ainda largamente agrícola, e os pobres residentes na área rural correspondiam a mais da metade dos pobres.
Por conta do processo de urbanização e do próprio declínio mais acentuado da pobreza rural do que a urbana, os pobres rurais representam 18% dos pobres brasileiros, cerca de 10,3 milhões de pessoas num total de 57,7 milhões de pobres brasileiros em 2001. Só o fato de os pobres serem hoje essencialmente urbanos e metropolitanos representa uma mudança estrutural fundamental.

Folha - O seu livro diz que o pobre brasileiro não segue o padrão africano, não passa fome, como o governo Lula faz acreditar.
Rocha -
Nem precisamos ir tão longe para constatar a mudança do perfil de pobres no Brasil. Mesmo de ano para ano, como pode-se verificar com base na Pnad (pesquisa domiciliar por amostragem realizada pelo IBGE) ocorrem mudanças importantes de melhoria do nível de escolaridade e do acesso a serviços públicos. As mudanças mais notáveis ocorreram em relação a itens de conforto do domicílio, como a posse de eletrodomésticos: em 1992, 25% dos pobres tinham TV em cores em casa, mas em 1999, 81% dispunham disso.
Quando nos referimos a 35% da população brasileira como pobre, não se trata de pobreza "africana", mas de um nível de renda abaixo do necessário para garantir as condições de vida adequadas. E, mesmo com renda baixa, é possível adquirir bens duráveis, via compras a crédito ou outras estratégias como aparelhos de segunda mão ou aparelhos doados. Ao fazer outras opções de consumo que podem parecer supérfluas a analistas desavisados, os pobres estão eventualmente sacrificando gastos ditos essenciais, como os de alimentação, e adotando outras estratégias, como alimentação no local de trabalho ou obtenção de cestas básicas, de modo a maximizar seu nível de bem-estar.
Naturalmente, quanto mais baixa a renda mais adversas serão as condições de vida, como as dos indigentes.

Folha - O último capítulo do livro menciona crescimento do número de indigentes entre 99 e 2001, de 8,74% para 10,15%, que chama a atenção. Haveria alguma causa, seria uma tendência recente?
Rocha -
Se a gente pode falar de alguma tendência, é de uma redução de indigentes mais forte do que o número de pobres, que são uma parcela maior. À medida que você atende as situações mais críticas -e isso não tem nem a ver com mercado de trabalho, mas com benefícios previdenciários, por exemplo-, você ameniza as situações de carência mais crítica. Esse aumento da indigência não seria uma tendência, mas algo isolado no tempo.

Folha - Mas está claro que, embora o crescimento econômico não garanta sozinho menos desigualdade de renda, vide o "milagre econômico" dos anos 70, a desaceleração do crescimento é um veneno que faz aumentar a pobreza?
Rocha -
Isso ficou muito claro num período em que a gente tinha flutuações conjunturais fortes. Na década de 80, era uma gangorra. Ali foi tiro e queda. Num ano ruim de crescimento da economia, o efeito é imediato sobre a pobreza. Isso é natural, porque o grosso da renda é renda associada ao trabalho e à inserção no mercado de trabalho, o que depende do ritmo da economia.

Folha - E quando há corte em gastos públicos como agora, e queda de investimentos em saneamento, por exemplo, qual é a relação?
Rocha -
Você não melhora na mesma proporção, mas você não perde. Mesmo quando houve cortes de gastos públicos no passado recente, quando se extinguiu o BNH (Banco Nacional de Habitação), por exemplo, e investimentos no setor urbano foram desestruturados, falou-se em impactos perversos. Ainda assim, houve uma melhoria contínua em saneamento básico ao longo do tempo. Em água, principalmente, as melhorias são grandes. Em esgoto, ainda temos déficits muito importantes, mesmo naqueles locais em que quase tudo em termos de bem público é universal, como São Paulo. Tem água universalizada, eletricidade universalizada, o acesso à escola universal, mas você não tem esgoto.

Folha - Até aqui, o desenho da política social do governo Lula lhe parece capaz de dar conta do problema da pobreza ou ela ainda está baseada num perfil equivocado de pobreza, de um pobre faminto?
Rocha -
A chamada da fome foi equivocada, sem dúvida. Mas o caminho que o governo parece estar tomando, de transferência de renda e ações integradas como escolarização, saneamento, é o caminho. Até isso leva tempo.

Folha - O esboço do Plano Plurianual, que parece sustentar na teoria o "espetáculo de crescimento" de que o presidente Lula fala, tem como meta aumentar o consumo dos pobres. Isso parece realista?
Rocha -
Parece-me que não existe nenhum problema em atender à demanda se houver mercado. É uma questão de renda: iniciativas de microcrédito vão nesse sentido, assim como a transferência de renda. Mas não existe uma solução milagrosa. É tudo trabalho de formiguinha.

Folha - Parece claro que, por conta das metas de superávit primário (economia para pagamento de juros) com que o governo Lula se comprometeu , a capacidade de expansão dos programas de transferência de renda é limitada. Isso não é uma barreira ao combate à pobreza?
Rocha -
Para isso, são fundamentais as reformas, que vão na direção correta, embora não se possa falar numa reforma definitiva. Na reforma tributária, por exemplo, estamos perpetuando coisas absurdas como a CPMF, um anacronismo, um imposto burro. Outras coisas no Imposto de Renda teriam de ser corrigidas, porque o impacto distributivo é zero quando consideramos as deduções, que beneficiam pessoas de renda mais alta. Mas é politicamente complicado. Na reforma da Previdência, há privilégios insustentáveis.

Folha - O seu livro aponta como um dos consensos no combate à pobreza a reestruturação dos gastos sociais, para que eles sejam dirigidos aos realmente mais pobres. E, além da reforma da Previdência, quando se fala nisso, fala-se em mexer no financiamento das universidades públicas. Seria o próximo tema da agenda?
Rocha -
Certamente vai ter de entrar na agenda porque canaliza uma fatia importante dos gastos em educação. É um tema politicamente delicado, você vê que o governo entrou no debate e saiu rapidinho. Mas alguma coisa tem de ser pensada quanto a isso, é inevitável.

Folha - Sem querer apelar para sua bolinha de cristal, é possível ter previsões sobre como se comportará a pobreza nos próximos anos?
Rocha -
Bolinha de cristal é um perigo. Mas se você me perguntar se eu acho que vai melhorar no segundo semestre em relação ao primeiro, eu direi: certamente. A gente deve começar a ter alguma retomada agora, uma melhoria do nível de emprego no segundo semestre, até por razões conjunturais, um certo esgotamento do processo de ajuste. A questão é saber se a gente vai conseguir recuperar a situação de 2002, que não era brilhante. O que quer dizer, finalmente, que a gente está patinando. Se melhora um pouquinho ou se piora um pouquinho, estamos com contingentes muito grandes de pobres, e certamente nesse período, como houve aumento da inflação, deve ter havido aumento da desigualdade. Então é o pior panorama que se pode imaginar: pobreza nos mesmos patamares e o agravamento da nossa chaga nacional que é a desigualdade de renda.


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