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ENTREVISTA DA 2ª
SONIA ROCHA
Economista analisa mudança de perfil de pobres e afirma que país "patina" no combate à pobreza
"Chamada da fome foi equivocada"
MARTA SALOMON
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
A economista Sonia Rocha foi
uma das primeiras a detectar que
a redução da pobreza produzida
pelo Plano Real se esgotara no fim
de 96 e o número de pobres voltara a crescer nas regiões metropolitanas, depois de um efeito combinado da estabilidade de preços,
principalmente dos alimentos, e
do aumento do salário mínimo de
42% no ano anterior. Na época,
causou espanto.
No livro "Pobreza no Brasil
-Afinal de que se trata?", lançado
recentemente, ela avança na mudança do perfil dos pobres brasileiros. Numa espécie de heresia
aos ouvidos da política social de
Lula, centrada inicialmente no
combate à fome, Rocha diz que a
maioria dos pobres não é faminta,
tem TV em cores e geladeira em
casa, ainda que lhes falte esgoto.
"A chamada da fome foi equivocada, sem dúvida", diz.
A economista não arrisca um
palpite sobre como vai se comportar a pobreza no mandato de
Lula, mas torce por uma recuperação do nível de emprego até o
fim do ano, depois do ajuste que
marcou o primeiro semestre do
governo, à custa de mais desemprego e da queda na renda dos
trabalhadores.
"A gente está patinando", resume. "Se melhora um pouquinho
ou se piora um pouquinho, estamos com contingentes muito
grandes de pobres, e certamente
nesse período, como houve aumento da inflação, deve ter havido aumento da desigualdade. Então é o pior panorama que se pode
imaginar: pobreza nos mesmos
patamares e o agravamento da
nossa chaga nacional que é a desigualdade de renda", conclui.
Defensora da tese de que o gasto
social não precisa crescer, mas
sua qualidade precisa melhorar, a
coordenadora de projetos do Instituto Brasileiro de Economia da
Fundação Getúlio Vargas defende
a polêmica revisão do financiamento das universidades federais
depois da reforma da Previdência. A seguir a entrevista feita por
telefone na última quinta-feira.
Folha - Existe um novo perfil de
pobre no Brasil?
Sonia Rocha - As características
do pobre brasileiro, tal como a sociedade brasileira, vêm se modificando. Considerando os pobres
como 35% da população brasileira, podemos dizer que esse contingente de pessoas tem um tipo
de vida completamente diverso
dos pobres dos
anos 70. Naquela
década, o país era
ainda largamente
agrícola, e os pobres residentes na
área rural correspondiam a mais
da metade dos
pobres.
Por conta do
processo de urbanização e do próprio declínio mais
acentuado da pobreza rural do que
a urbana, os pobres rurais representam 18% dos
pobres brasileiros, cerca de 10,3
milhões de pessoas num total de
57,7 milhões de
pobres brasileiros
em 2001. Só o fato
de os pobres serem hoje essencialmente urbanos e metropolitanos representa
uma mudança estrutural fundamental.
Folha - O seu livro diz que o pobre
brasileiro não segue o padrão africano, não passa fome, como o governo Lula faz acreditar.
Rocha - Nem precisamos ir tão
longe para constatar a mudança
do perfil de pobres no Brasil. Mesmo de ano para ano, como pode-se verificar com base na Pnad
(pesquisa domiciliar por amostragem realizada pelo IBGE)
ocorrem mudanças importantes
de melhoria do nível de escolaridade e do acesso a serviços públicos. As mudanças mais notáveis
ocorreram em relação a itens de
conforto do domicílio, como a
posse de eletrodomésticos: em
1992, 25% dos pobres tinham TV
em cores em casa, mas em 1999,
81% dispunham disso.
Quando nos referimos a 35% da
população brasileira como pobre,
não se trata de pobreza "africana", mas de um nível de renda
abaixo do necessário para garantir as condições de vida adequadas. E,
mesmo com renda
baixa, é possível adquirir bens duráveis,
via compras a crédito
ou outras estratégias
como aparelhos de
segunda mão ou aparelhos doados. Ao fazer outras opções de
consumo que podem
parecer supérfluas a
analistas desavisados,
os pobres estão eventualmente sacrificando gastos ditos essenciais, como os de alimentação, e adotando outras estratégias,
como alimentação no
local de trabalho ou
obtenção de cestas
básicas, de modo a
maximizar seu nível
de bem-estar.
Naturalmente,
quanto mais baixa a
renda mais adversas
serão as condições de
vida, como as dos indigentes.
Folha - O último capítulo do livro menciona crescimento do número de indigentes entre 99 e 2001, de 8,74%
para 10,15%, que chama a atenção.
Haveria alguma causa, seria uma
tendência recente?
Rocha - Se a gente pode falar de
alguma tendência, é de uma redução de indigentes mais forte do
que o número de pobres, que são
uma parcela maior. À medida que
você atende as situações mais críticas -e isso não tem nem a ver
com mercado de trabalho, mas
com benefícios previdenciários,
por exemplo-, você ameniza as
situações de carência mais crítica.
Esse aumento da indigência não
seria uma tendência, mas algo
isolado no tempo.
Folha - Mas está claro que, embora o crescimento econômico não
garanta sozinho menos desigualdade de renda, vide o "milagre econômico" dos anos 70, a desaceleração do crescimento é um veneno
que faz aumentar a pobreza?
Rocha - Isso ficou muito claro
num período em que a gente tinha flutuações conjunturais fortes. Na década de 80, era uma gangorra. Ali foi tiro e queda. Num
ano ruim de crescimento da economia, o efeito é imediato sobre a
pobreza. Isso é natural, porque o
grosso da renda é renda associada
ao trabalho e à inserção no mercado de trabalho, o que depende do
ritmo da economia.
Folha - E quando há corte em gastos públicos como agora, e queda
de investimentos em saneamento,
por exemplo, qual é a relação?
Rocha - Você não melhora na
mesma proporção, mas você não
perde. Mesmo quando houve cortes de gastos públicos no passado
recente, quando se extinguiu o
BNH (Banco Nacional de Habitação), por exemplo, e investimentos no setor urbano foram desestruturados, falou-se em impactos
perversos. Ainda assim, houve
uma melhoria contínua em saneamento básico ao longo do
tempo. Em água, principalmente,
as melhorias são grandes. Em esgoto, ainda temos déficits muito
importantes, mesmo naqueles locais em que quase tudo em termos de bem público é universal,
como São Paulo. Tem água universalizada, eletricidade universalizada, o acesso à escola universal,
mas você não tem esgoto.
Folha - Até aqui, o desenho da política social do governo Lula lhe parece capaz de dar conta do problema da pobreza ou ela ainda está
baseada num perfil equivocado de
pobreza, de um pobre faminto?
Rocha - A chamada da fome foi
equivocada, sem dúvida. Mas o
caminho que o governo parece estar tomando, de transferência de
renda e ações integradas como escolarização, saneamento, é o caminho. Até isso leva tempo.
Folha - O esboço do Plano Plurianual, que parece sustentar na teoria o "espetáculo de crescimento"
de que o presidente Lula fala, tem
como meta aumentar o consumo
dos pobres. Isso parece realista?
Rocha - Parece-me que não existe nenhum problema em atender
à demanda se houver mercado. É
uma questão de renda: iniciativas
de microcrédito vão nesse sentido, assim como a transferência de renda. Mas não
existe uma solução milagrosa. É tudo trabalho de formiguinha.
Folha - Parece
claro que, por
conta das metas de superávit
primário (economia para pagamento de juros) com que o
governo Lula se
comprometeu ,
a capacidade de
expansão dos
programas de
transferência
de renda é limitada. Isso não é
uma barreira ao
combate à pobreza?
Rocha - Para
isso, são fundamentais as
reformas, que
vão na direção
correta, embora não se possa falar numa reforma definitiva. Na reforma tributária, por exemplo, estamos perpetuando coisas absurdas como a
CPMF, um anacronismo, um imposto burro. Outras coisas no Imposto de Renda teriam de ser corrigidas, porque o impacto distributivo é zero quando consideramos as deduções, que beneficiam
pessoas de renda mais alta. Mas é
politicamente complicado. Na reforma da Previdência, há privilégios insustentáveis.
Folha - O seu livro aponta como
um dos consensos no combate à
pobreza a reestruturação dos gastos sociais, para que eles sejam dirigidos aos realmente mais pobres.
E, além da reforma da Previdência,
quando se fala nisso, fala-se em
mexer no financiamento das universidades públicas. Seria o próximo tema da agenda?
Rocha - Certamente vai ter de
entrar na agenda porque canaliza
uma fatia importante dos gastos
em educação. É um tema politicamente delicado, você vê que o governo entrou no debate
e saiu rapidinho. Mas alguma coisa tem de ser
pensada quanto a isso, é
inevitável.
Folha - Sem querer apelar para sua bolinha de
cristal, é possível ter previsões sobre como se
comportará a pobreza
nos próximos anos?
Rocha - Bolinha de
cristal é um perigo. Mas
se você me perguntar se
eu acho que vai melhorar no segundo semestre
em relação ao primeiro,
eu direi: certamente. A
gente deve começar a ter
alguma retomada agora,
uma melhoria do nível
de emprego no segundo
semestre, até por razões
conjunturais, um certo
esgotamento do processo de ajuste. A questão é
saber se a gente vai conseguir recuperar a situação de 2002, que não era
brilhante. O que quer dizer, finalmente, que a
gente está patinando. Se melhora
um pouquinho ou se piora um
pouquinho, estamos com contingentes muito grandes de pobres, e
certamente nesse período, como
houve aumento da inflação, deve
ter havido aumento da desigualdade. Então é o pior panorama
que se pode imaginar: pobreza
nos mesmos patamares e o agravamento da nossa chaga nacional
que é a desigualdade de renda.
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