São Paulo, domingo, 8 de fevereiro de 1998

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LANTERNA NA POPA
Altruísmo e sensatez

ROBERTO CAMPOS
O cristianismo fez do altruísmo, por meio da virtude da caridade, o eixo do comportamento humano justo. Outras religiões e éticas também lhe reconheceram a valia, mas o pensamento cristão introduziu uma novidade revolucionária, a idéia da igualdade universal diante da Salvação. Era um comunismo "post mortem", que contagiou o mundo antigo num momento em que as massas, reduzidas ao sofrimento sem esperança por uma sociedade e uma cultura inerentemente cruéis, estavam prontas para qualquer luz que lhes alumiasse a vida, ainda que depois deste mundo.
Era, porém, uma visão salvacionista: o vale de lágrimas terreno não passava de um penoso vestibular da vida eterna, a que as pessoas chegariam apenas pela Redenção, depois de purgado o pecado original. Todo o foco da vida se deslocava, assim, para o fim dela. A lógica doutrinária dificultou à igreja conciliar as demandas da prática religiosa com as necessidades da vida terrena. O cristianismo não era o regimento interno de uma empresa fundada para durar e prosperar. Era uma sentença de liquidação.
Quase todas as religiões fazem algumas exigências ao seu pessoal "técnico", os seus clérigos. Mas a radicalidade cristã postulou a virtude terminal: "Se queres seguir-me, dá tudo o que tens aos pobres e acompanha-me". A castidade era o ideal, o casamento sendo tolerado por concessão às nossas imperfeições, antes tisnados, que somos, pelo pecado original. O Juízo Final parecia estar próximo.
Se a humanidade praticasse virtuosamente tal despojamento, sua carreira terrena teria se encerrado depressa. Ninguém perderia tempo em liquidar logo a fatura do lado de cá. O fim esperado do mundo, sempre adiado, não veio, entretanto, até agora. E o maior medo, na chegada do próximo milênio, parece que não passa do famoso "bug" dos "softs" de computadores, que só reservaram dois "bytes" para numerar os anos.
Antes da nossa era industrial, umas 5 de cada 6 pessoas se desgastavam na labuta do campo, quase sempre esfaimadas, produzindo um diminuto excedente que lhes era arrancado à força. O cenário do vale de lágrimas era plausível, nesse universo estático de lavradores e artesãos, e uma concepção religiosa que visse os juros como usura, condenasse o amor aos bens deste mundo e quisesse a fixação de preços e salários "justos" era concepção paternalista, até certo ponto amenizadora, desse tipo de economia. Muito antes, já Aristóteles combatia a "chrematistikè", a monetização crescente da vida pelo comércio. O que parecia natural, aliás, na tradição dos papas de grande força, como Bonifácio 8º, que se sentiam hierarquicamente acima dos soberanos "civis" e à vontade para regular todos os aspectos da existência, também aqui na Terra.
Na Era Moderna, porém, os homens descobriram que, em vez de ficar esperando pelo último suspiro, bem que podiam ir tratando de arrumar de modo mais agradável as coisas do lado de cá. A existência foi se dessacralizando, desviando-se do sobrenatural. O conhecimento, a ciência, a tecnologia, a economia começaram a dar safras gordas. Mas a industrialização, a urbanização e a monetização crescente de todos os valores aumentavam a ambivalência diante dos valores e opiniões tradicionais. Não sem alguma razão, Max Weber viu na ética protestante (que enxergava no sucesso terreno um sinal da Graça divina) a fonte do espírito capitalista. A igreja resistiu quanto pôde contra a heresia, a feitiçaria, a Reforma, a liberdade de escolha e, no século passado, a "modernidade". Mas como adaptar as sociedades às suas idéias de virtude "social" e "econômica"?
Posições formais na matéria são um tanto recentes. Salvo a "Sublimus Dei", de 1537, a favor dos índios, as encíclicas só voltaram a doutrinar sobre a sociedade e a economia em 1878, para condenar o socialismo ("Apostol. Muneris"), e fizeram uma pausa de mais de dez anos ("In Plurimis") para falar sobre a abolição da escravidão -quando até nosso lerdo governo imperial já tinha tomado providências...
No final do século passado, a aceleração do capitalismo industrial estava provocando formidáveis transformações. Desde então, nos grandes países industriais, a duração da vida humana praticamente dobrou, e a capacidade de produção material multiplicou-se várias vezes. Até no Brasil, não exatamente um exemplo de eficiência, o aumento foi de uns 60% desde 1940. E o PIB, de 1900 a 1980, cresceu uns 5% ao ano. Cifras antes inconcebíveis. Uma infinidade de preocupações pouco sacras começou a distrair as cabeças. A diversão deixou de ser um acontecimento solene ou folclórico e passou a obedecer ao toque de um prosaico botão. Para matar o tempo, não é mais preciso, como costumavam os romanos, matar na arena um magote de cristãos. Agora, sem sujar mãos nem consciências delicadas, a televisão oferece violência virtual sintética para todos os gostos, o radiozinho de pilha toca para qualquer mendigo, e o sexo é pintado e bordado de todas as formas. Até há programas eleitorais gratuitos, para estimular o patriotismo...
A anestesia raquidiana arquivou a obrigação de ter filhos na dor, o ar condicionado comutou a condenação dos filhos de Adão a comer o pão com o suor do rosto. E, para não estragar a festa, os governos distribuem camisinhas. E com os supermercados atuais, só um subdesenvolvido "in extremis" venderia a primogenitura por um prato de lentilhas. A Terra, em vez do vasto disco, de cujas beiradas as pessoas tinham medo de cair, passou a ser uma bola que gira em torno do Sol, apesar da condenação de Galileu pela igreja, há três séculos e meio. Passear na Lua, mandar geringonças a Marte ou transplantar corações já nem chama atenção. A clonagem começou por Dolly, uma simbólica doce ovelhinha, e pode não estar longe até a clonagem de políticos.
Entre os extremos da solidariedade altruísta e do egoísmo darwiniano da luta sem tréguas pela sobrevivência dos mais aptos, o bom senso sugeriria um tempero adequado às circunstâncias. É possível. Os democráticos ingleses, que aceitaram, durante a guerra, um racionamento igualitário, reclamaram de volta, 40 anos depois, com mrs. Thatcher, suas liberdades tradicionais, que o Estado-babá estava abafando.
Na economia e na tecnologia, o futebol da globalização tem atrapalhado as cabeças. Os industrializados aceleram na estrada da informação, enquanto os 4/5 da humanidade que ficaram para trás se reproduzem (graças à ciência daqueles, teoricamente poderiam dobrar a população a cada 20 anos) e mais reivindicam do que tocam para diante. A velha idéia da luta de classes está sendo suplantada pelas diferenças geradas por um implacável processo de acumulação de conhecimento. Um trabalhador de enxada faz-se em poucos anos com alimentação rudimentar, e, se dos dez filhos, dois sobreviverem, está garantida a mão-de-obra. Para um trabalhador "high tech" de hoje, são precisos talvez uns 25 anos (a que custo? US$ 250 mil, US$ 300 mil?), seguidos de uma atualização contínua.
Altruísmo é uma virtude indispensável às sociedades humanas. Mas, enquanto virtude, tem de ser "internalizada" na alma das pessoas, num esforço nunca acabado de formação. Os sistemas econômicos e políticos não são sujeitos morais, são entidades que funcionam com suas leis e burocracias. Sociedades antigas confundiam a lei e a virtude e não tinham a menor idéia do "indivíduo". A religião cultuava os deuses locais, da cidade, e não se distinguia do civismo. Os totalitarismos e fundamentalismos deste século mostraram como é terrível a virtude que uma autoridade acha que nos deve enfiar de fora para dentro, para o nosso próprio bem. E disso às formas sorrateiras de embutir preferências ideológicas na governança coletiva vai só uma questão de grau. Esse é o risco trágico dos socialismos: sufocar a liberdade sob o pretexto de implantar a igualdade...


Roberto Campos, 80, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).



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