São Paulo, domingo, 08 de maio de 2005

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RELIGIÃO

Em novo livro, Reginaldo Prandi analisa assédio evangélico sobre religiões afro-brasileiras e vê declínio do catolicismo no país

"Católicos devem encolher", diz sociólogo

Jorge Araújo/Folha Imagem
O sociólogo Reginaldo Prandi, estudioso das religiões, que lança nesta semana o livro "Segredos Guardados", que tem como tema central a situação do candomblé


VANESSA ALVES BAPTISTA
DA REDAÇÃO

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL

A eleição de Bento 16 deve acentuar o desinteresse da Igreja Católica pela América Latina e ampliar a perda de fiéis em países como o Brasil. Ambas as tendências apenas reafirmam o legado de João Paulo 2º, cujo perfil reacionário foi em parte mascarado pela figura afável e midiática.
São análises do sociólogo Reginaldo Prandi, 58, professor titular da USP e um dos mais renomados estudiosos da religião no país. Segundo ele, a Igreja Católica perde não apenas fiéis mas importância e presença política diante do crescimento dos chamados neopentecostais, mais ágeis e mais sintonizados com as demandas do que chama de mercado da fé.
Um dos efeitos da ofensiva neopentecostal no país é o cerco cada vez maior às religiões afro-brasileiras, com quem dividem uma religiosidade ancorada mais em práticas rituais e menos em preceitos morais -traço predominante no catolicismo.
Este é um dos assuntos tratados em "Segredos Guardados", livro que Prandi lança nesta semana e tem como tema central a radiografia do candomblé no país. Diferentemente da umbanda, que declina, o candomblé se expandiu nas últimas décadas, em grande medida pela adesão da classe média branca aos terreiros. A origem desse fenômeno, diz Prandi, remonta à contracultura dos anos 60 e 70, quando sobretudo a Bahia se tornou uma fonte de experiência mística e de vida alternativa para jovens universitários.
Hoje, a sobrevivência do candomblé depende menos de seus devotos do que da clientela que mantém com a religião uma relação esporádica, de consumidor que paga em troca de serviços. Leia a seguir trechos da entrevista, realizada na última quarta-feira, na casa do sociólogo.

Folha - O sr. identifica na hipertrofia ritual e na falência moral traços cada vez mais presentes na experiência religiosa. A comoção em torno da morte do papa João Paulo 2º não desafia essa tese?
Prandi
- Eu acho que a morte do papa é como uma final de Copa do Mundo. A grande maioria das pessoas torce por um time, mas não se interessa muito em acompanhar o campeonato. Mas, naquele momento, de quatro em quatro anos, há uma mobilização geral. Isso é algo que está controlado pelas TVs, pelos jornais.
Com o papa acontece a mesma coisa. No geral, as pessoas não estão nem um pouco interessadas no que o papa pensa ou fala. Os católicos têm pouca idéia do que acontece no governo papal. É claro que eles serão afetados pela política do papa, mas depois que ela tenha atingido a paróquia.
O que impressionou muito na eleição do novo papa é que a Igreja Católica mostrou a cara dela. Uma igreja conservadora, reacionária. Um conservadorismo quase globalizado. Quem chama a atenção para isso é [o sociólogo] Antônio Flávio Pierucci [com quem Prandi escreveu "A Realidade Social das Religiões no Brasil"]. Ele diz que, com essa eleição, caiu a máscara da igreja. De repente, viu-se que todos os cardeais são conservadores.

Folha - Mas havia opções menos conservadoras. O próprio d. Cláudio Hummes era visto como alguém mais aberto.
Prandi
- Acredito que d. Cláudio tenha ficado até um pouco incomodado, porque, na verdade, ele era o menos pior de todos. Nenhum cardeal brasileiro tinha a estatura dos antigos bispos do país. Eles se aposentaram, e a igreja não conseguiu substituí-los, pois não houve essa preocupação. Ao contrário, a preocupação do Vaticano foi reprimir a produção de grandes pensadores. Hoje quem tem alguma importância na igreja brasileira está na oposição.
A escolha do novo papa serviu também para vermos melhor como os cardeais que representaram a igreja brasileira no conclave são pessoas inexpressivas.

Folha - O que a América Latina perde com a eleição de Bento 16?
Prandi
- A América Latina já havia perdido muito com o papado de João Paulo 2º, que deu as costas para a região. Esse desinteresse deve se agravar. A igreja teve um surto de progressismo com João 23 e Paulo 6º, mas depois voltou a ser a velha igreja reacionária de sempre. Agora, reassume essa posição com mais clareza.

Folha - João Paulo 2º era uma figura afável, doce, mais palatável do que Bento 16. Isso camuflou o rumo que ele deu ao seu papado?
Prandi
- Ele tinha um carisma que o tornava muito popular nas visitas que fazia. Mas sempre foi um papa muito reacionário.

Folha - Com a eleição de Ratzinger, a igreja não corre o risco de encolher ou de não se expandir? A ênfase na doutrina, na ortodoxia, não é uma posição de muito risco?
Prandi
- Claro que é. Mas uma coisa que a mídia não falava durante os funerais e a eleição do papa é que o Brasil perdeu muitos católicos sob João Paulo 2º. Hoje somos um país que tem só 75% de católicos. Grande parte deles desinteressados da vida religiosa. A pequena expansão que a Igreja Católica teve na África e na Ásia não é suficiente para compensar a perda na América Latina. Perdeu também politicamente. As outras religiões têm uma visibilidade muito grande. As catedrais dos crentes estão concorrendo com as catedrais dos católicos em termos de visibilidade, de importância.
No plano político-partidário, o catolicismo não tem nenhuma facilidade de se colocar, enquanto os evangélicos fazem suas cadeiras nas casas legislativas.
João Paulo 2º levou a igreja para um caminho complicado. O catolicismo vai continuar perdendo fiéis. Ele tinha uma importância política que hoje não tem mais. No Brasil, a Igreja Católica chegou a ser um dos atores sociais que falavam pela massa. Hoje ela não fala por ninguém.

Folha - Por que a religião evangélica avança sobretudo na parcela mais pobre da população?
Prandi -
Os evangélicos descobriram que teriam de tratar dos problemas mais comezinhos da vida diária, da sobrevivência das pessoas. Eles apostaram na chamada teologia da prosperidade. Do sucesso financeiro, que, na verdade, é um sucesso pequeno. Aquele que permite manter o filho na escola, comprar os móveis de quarto em 24 prestações. Nas neopentecostais, passa-se a idéia de que Deus está ao seu lado para ajudar na superação das dificuldades. É mais eficiente do que a promessa das religiões afro-brasileiras de conquista das coisas através dos trabalhos mágicos, das oferendas às divindades.

Folha - O sr. faz um paralelismo entre esses dois rituais?
Prandi -
O rito, a magia, que eram muito fortes nas religiões afro-brasileiras, agora também são muito fortes nas evangélicas e também progrediram no catolicismo, sobretudo entre os carismáticos. A história da religião mostrava que ela caminhava no sentido de ficar muito mais ligada ao mundo dos valores.
Houve um refluxo, agora a religião é usada para pedir, para alcançar coisas que não só dizem respeito à sua vida espiritual mas também à sua vida material. É uma volta ao mundo do ritual.

Folha - A organização empresarial das igrejas evangélicas e o controle que elas têm de parte dos veículos de comunicação não são decisivos para explicar seu êxito?
Prandi
- As igrejas que mais crescem não são necessariamente as que dispõem de canais de TV. A audiência dessas igrejas na TV é muito pequena. O que ainda conta é a presença do fiel no templo. O que mudou muito é que hoje o templo está mais adaptado à vida na grande metrópole. Há grandes templos que funcionam 24 horas.

Folha - O encolhimento das religiões africanas se deve à migração para as neopentecostais?
Prandi
- Nós não temos estatísticas sobre isso, mas, na experiência de campo, é freqüente o relato de que, quando alguém deixa o candomblé ou a umbanda é porque virou crente. Às vezes, é a própria mãe-de-santo que se converte. Na TV, nos programas evangélicos, se vê o tempo todo esse aliciamento. No Rio de Janeiro, as coisas já andaram piores, com violência na rua, nas periferias, ataques aos terreiros.

Folha - Isso não derruba a tese da tolerância religiosa no país? Não vivemos hoje um processo de intolerância com papéis invertidos?
Prandi
- Sim, continua a haver uma luta de Davi contra Golias, mas com a inversão de papéis. Na verdade, ao mesmo tempo em que as religiões evangélicas são muito agressivas com as afro-brasileiras, elas também têm de se defender. Elas se queixam de serem vistas como religiões de segunda categoria, de serem chamadas de "religiões de cinema fechado".
Hoje nossa sociedade é muito tolerante em matéria religiosa. Isso não significa, porém, que as religiões sejam. A sociedade se abre, mas as religiões se fecham.


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