São Paulo, domingo, 08 de maio de 2005

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TEOLOGIA DERROTADA

No livro, teólogo noticia uma nova Igreja Católica, cujos protagonistas seriam os pobres

Obra que impôs silêncio a Boff é reeditada

RAFAEL CARIELLO
DA SUCURSAL DO RIO

"Daqui a pouco, um outro há de propor que, dentro das igrejas, garçons passem bandejas de salgadinhos, mães-bentas, caldo de cana, grapete e chica-bon."
Não foi exatamente assim, mas Nelson Rodrigues entendeu bem que a atualização da Igreja Católica, da missa e a opção pelos mais pobres defendidas na década de 60 por d. Hélder Câmara deflagrariam radicalização maior. O auge desse processo se dá em 1981, quando o teólogo Leonardo Boff publica o livro "Igreja: Carisma e Poder", agora relançado pela editora Record.
Nele, Boff faz o anúncio do nascimento de uma nova igreja, em que os protagonistas seriam os pobres, que tomariam do clero a exclusividade sobre "os meios de produção religiosa" e trabalhariam nesse mundo pelo Reino -"utopia cristã que concerne ao destino terminal do mundo" mas que também "se encontra em processo dentro da história".
Os ventos do mundo e da história, no entanto, pegaram o projeto de Boff no contrapé. Os protagonistas passavam a ser os conservadores Ronald Reagan, presidente dos EUA, Margaret Thatcher, primeira-ministra britânica, e João Paulo 2º.
Parte da teoria que sustenta o livro seria colocada em xeque. Ao analisar a igreja como instituição, hierarquia e "poder", Boff usa arcabouço sociológico "de certa inspiração neomarxista", como disse o cardeal Joseph Ratzinger em carta ao brasileiro (as acusações da Congregação para a Doutrina da Fé, chefiada então pelo atual papa, contra a obra e as defesas do teólogo da libertação compõem apêndice do livro).
Boff relaciona diferentes "práticas eclesiais", comportamentos históricos da igreja, a distintos momentos históricos e modos de produção, e associa a hierarquia católica ao capitalismo. "Criou-se, num longo processo histórico que pode ser descrito, um modo dissimétrico de produção religiosa; verificou-se também, dizendo-o numa linguagem analítica (sem querer conotar moralmente), um processo de expropriação dos meios de produção religiosa por parte do clero contra o povo cristão", escreve.
O centro do argumento de Boff por uma igreja nova é, no entanto, teológico. Ele faz a distinção entre "cristianismo" e "catolicismo", entendendo esse último como "a tradução do Evangelho para a vida concreta dos que crêem".
O teólogo também propõe mudanças radicais na própria organização da igreja, denunciando o que considera "violações dos direitos humanos". Diz ser ilógica a argumentação que exclui as mulheres "do acesso aos cargos ministeriais ligados ao sacramento da Ordem". A nova igreja, mais democrática, mais inclusiva de leigos e mulheres, aconteceria concretamente nas Comunidades Eclesiais de Base, onde "a fé constitui a grande porta de entrada para a problemática social".
As conseqüências dessa pregação são conhecidas: em 1985, foi imposto a Boff um silêncio obsequioso e o afastamento da cátedra de teologia. É aí que está talvez a maior atualidade do livro, com suas críticas ao "centralismo e autoritarismo" da igreja.
O teólogo descreve a atuação da Congregação para a Doutrina da Fé como "um processo doutrinário kafkiano, no qual o acusador, o defensor, o legislador e o juiz são a mesma Sagrada Congregação e as mesmas pessoas". Em 1992, após ser informado de que voltaria a sofrer as mesmas punições e receber a "sugestão" que deixasse o país e o continente, Boff renunciou ao ministério presbiterial.
Suas idéias, no entanto, foram derrotadas menos pela hierarquia da igreja do que pela história e pelo mundo.


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