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JANIO DE FREITAS
A violência pela violência
Exemplos recentes ilustram uma realidade que nos recusamos a ver: a violência no Brasil mudou de nível
O
INTENSO INTERESSE da imprensa e a extensa repercussão do espancamento, por um
grupo de rapazes, de uma moça na
Barra da Tijuca não decorreram, pelo
que pude depreender, do ato de
agressão absurda e covarde. O que
não quer dizer que a solidariedade à
moça e a repulsa à covardia não sejam sinceros. Mas violências assim e
ainda mais covardes e absurdas são
inúmeras todos os dias, e não provocam reação proporcional, nem geram muito mais sentimento do que
uma certa agitação do medo já incorporado.
A classe social e econômica dos
agressores, senão também a topográfica do antipatizado novorriquismo
da Barra, foi o componente essencial
entre os fatores que fermentaram a
imprensa e expandiram a indignação. Também por isso, além de nossa
brasileira distração, mais uma vez
deixamos de dar a atenção devida a
uma parte fundamental, no sentido
mesmo de estar na origem, da motivação dos rapazes universitários.
A agressão não buscou aproveitar a
desproteção da moça, final de madrugada em um ponto ermo de ônibus,
para saciar a ânsia de violência física.
Sua alegação, "pensávamos que era
uma prostituta", suscitou todas as
justas recriminações morais e humanas, quase dispensáveis, de tão óbvias.
A motivação do grupo, porém, não foi
a de castigar uma prostituta porque
prostituta, foi a de agredir para roubar
a bolsa de uma prostituta - no que se
enganou quanto à pessoa, mas não no
resultado da intenção.
"É uma quadrilha especializada
em roubar bolsas de prostitutas", diz
a polícia depois de saber de mais investidas idênticas do grupo. Roubar
bolsas de prostitutas: o que desejariam, esses rapazes de nível universitário, das bolsas de mulheres que
precisam se vender nas ruas de madrugadas vazias? Que proveitosos
frutos poderiam obter acima do que
têm nos próprios bolsos, sejam bolsos de emergentes ou de já emergidos? E, depois das agressões e dos
roubos, a deliciosa diversão de ir "jogando pela janela do carro as coisas
da bolsa".
A idéia de roubar prostitutas para
nada provém só do prazer de provocar as aflições em que, já tão desprovidas, essas moças se vêem de repente, sem dinheiro nem para a passagem, sem os pertences miúdos, sem o
possível documento, sem a chave,
sem nada, rasgadas na roupa e na
carne igualmente baratas. Não é o assalto, propriamente. Não é a agressão
física que atrai. É a perversidade em
estado puro.
O assassinato de um casal diante
do filho de sete anos, já feito o roubo
no carro; o incêndio de outro casal já
roubado também no carro, aquele e
este casos paulistas sem explicação
possível que não a perversidade pura.
Os assassinatos, na Zona Sul carioca,
de pessoas depois de assaltadas por
adolescentes em sinais de trânsito. O
menino João Hélio arrastado no carro roubado. Os tiros a esmo, só para
atingir rodas de desconhecidos ou
passantes anônimos, episódios de
todos os dias. O tratamento feroz dado por bandos armados a moradores
de favelas. A cegueira furiosa dos
combates entre criminosos e policiais. Estão aí exemplos só para ilustrar uma realidade que nos recusamos a ver: a violência no Brasil mudou de nível.
Já vivemos o estado da violência
pela violência, a violência só por perversidade, pelo prazer da maldade e
do sofrimento alheio: a violência
que não tem mais nenhum tipo de
restrição.
Não adianta pensar ainda na violência urbana e na segurança pública com as idéias convencionais, que
prevalecem absolutas. A realidade
está em outro estágio, e cresce nele a
cada dia, em extensão social e em
profundidade dos efeitos. Mas onde
e quem pensar sobre isso, eis o mistério.
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